O céu está agora cinzento, o tempo incerto, alternado o sol e a chuva, numa primavera sob o medo da pandemia, ainda com receio doa recidiva do vírus que nos afastou dos amigos e da família.
A comunicação social, tão dada a evocar mortes, parece ter esquecido o nascimento do abutre de Santa Comba Dão, daquele pérfido seminarista que, segundo a Irmã Lúcia foi enviado pela Providência Divina, o organismo da Segurança Social Celeste que escolhe políticos sem recurso ao incómodo sufrágio popular.
Faz hoje 132 anos que nasceu o sinistro ditador que acreditava na bondade de Cerejeira e na eficácia de uns pontapés dados a tempo como profilaxia dessas ideias nefastas, que a Inglaterra exportava, de um exótico regime conhecido por democracia.
Não há notícia de missas de sufrágio, novenas de ação de graças ou orações por alma do ditador. Vergonha ou amnésia, os próprios herdeiros espirituais renunciaram à herança e envergonham-se de dar testemunho público da saudade pelo torcionário que tinha sobre a mesa de trabalho a fotografia de Mussolini.
E vejam lá, leitores, a ironia do calendário! Benito Mussolini, que assinou os acordos de Latrão, que também foi enviado pela Providência divina, segundo o Papa de turno com quem se obrigou a tornar obrigatório o ensino da religião católica nas escolas públicas italianas e a quem entregou um avantajado óbolo do tesouro italiano, Benito Mussolini – dizia –, foi executado no dia de hoje, há 76 anos, no Lago Como, quando tentava a fuga para a Suíça. Os guerrilheiros italianos travaram-lhe o passo.
A tarde continua cinzenta e incerto o tempo neste dia de pesadas efemérides, um nascimento e um óbito, de dois crápulas que jamais deviam ter nascido.
Como se as catástrofes naturais, a explosão demográfica e as agressões ambientais não bastassem para enegrecer o futuro e infernizar o presente, chegaram à chefia dos países mais poderosos do mundo uma série de dirigentes perigosos, nacionalistas, autoritários e belicistas.A China e Rússia, onde a democracia liberal é desconhecida, têm líderes autoritários.
Os EUA, Brasil, Índia e Filipinas, em eleições formalmente livres, não lograram melhores líderes. As teocracias do Médio Oriente são o que se sabe. Benjamin Netanyahu, Israel, é um perigo global e Mohammad bin Salman, Arábia Saudita, assassino de longo curso.
Quando julgávamos que a impreparação, a truculência e a inanidade seriam punidas nas urnas, eis que surgem, legitimados pelo voto, o mitómano agressivo e belicista Trump, o delinquente imbecil e demente Bolsonaro, o grotesco assassino Duterte e o nacionalista belicoso Narendra Modi.Da Hungria à Turquia, da Polónia à Sérvia, da Chéquia à Albânia, na Europa Central e do Leste, sob o pretexto da luta contra o coronavírus, aumentam os países autoritários e são cada vez mais repressivos.
Os regimes despóticos aumentam em número e ampliam a repressão dentro de cada país. Os ataques à liberdade de imprensa, a neutralização das oposições, a desvalorização dos parlamentos e a captura do poder judicial são instrumentos dos novos líderes, que usam o nacionalismo, a xenofobia e o medo para se perpetuarem no poder.
A corrupção é uma arma usada contra a democracia, o único sistema em que é possível denunciá-la, sem qualquer prova de que essa lepra, que corrói o poder, seja mais intensa e frequente nos regimes democráticos do que nas ditaduras.A insegurança e o medo são inimigos da democracia e a retórica dos líderes autoritários vive da sua exploração.
Ao ambiente que, no século passado, criou as condições para os regimes ditatoriais, junta-se agora uma pandemia para facilitar a vitória dos demagogos, que prometem ordem e segurança em troca do silêncio e da submissão.As novas tecnologias, que permitiram democratizar a informação, cedo foram usadas por quem detinha a capacidade de as capturar ao serviço dos poderes autoritários que proliferam.
Não há uma opinião pública esclarecida, participativa e empenhada, na defesa da nossa civilização, onde a liberdade e a defesa dos direitos humanos gozem generalizado apoio. À medida que as consciências adormecem, o medo nos tolhe e o desânimo se instala, esmorece a vigilância cívica e ficamos mais expostos a ser vigiados e oprimidos por biltres que vão assaltando o poder.
Uma das consequências de uma doença contemporânea da política em democracia nos dias de hoje é o cada vez maior policiamento do pensamento, das imagens, das informações e da linguagem. É um efeito de uma outra tendência dos nossos dias, o incremento do tribalismo que define também as suas fronteiras pela posse ou recusa de léxico que serve de marca de identidade. São processos muito perigosos para a democracia porque não se desenvolvem na fronteira entre democracia e ditadura, mas sim no interior da democracia e dos seus processos de funcionamento. São doenças em que o agressor não vem de fora, mas de dentro, em que o corpo sadio se destrói a si próprio.
São doenças que têm a ver com a cultura e a sociedade, mas que são potenciadas pela existência de ecologias patológicas, a mais importante das quais são as redes sociais, um ambiente miasmático tão pernicioso como um lago sulfuroso, em que a primeira coisa a perder-se é a verdade, ou mesmo a procura da verdade e, logo a seguir, vai a liberdade. O problema é que a pior resposta a este processo é a censura e são as proibições, como se o enxofre se fosse embora por se esconder o lago com tapumes. Pelo contrário, os miasmas do lago reforçam-se com os tapumes e os fumos tóxicos impedem-nos de ver os problemas reais que estão na origem do crescimento do ressentimento, da exclusão, do recalcamento, da marginalização, no interior da democracia. Não vemos, nem queremos ver, depois tapamos o dique com o dedo e os gases com os tapumes.
A verdade é que se somam todos os dias verdadeiras proibições de utilização de vocábulos e expressões, com a constituição de um léxico proibido, dependente de grupos de pressão, e de modismos, aplicados nas redacções dos órgãos de comunicação social e em redes sociais, que permitem insultos, insinuações, falsidades, processos de intenção, mas cortam objectivamente a liberdade de expressão, que – tem que se dizer isto mil vezes – é feita para proteger o direito de dizer coisas com que não concordo, que me indignam, e que me enojam, mas que têm o direito de ser ditas.
Este caminho censório não se limita às palavras e estende-se às imagens e mesmo às notícias. Já denunciei aqui a prática do Facebook de fazer cortes daquilo que considera atentar contra as suas regras comunitárias. Mas, o mais grave é a completa barreira a qualquer contestação dos seus critérios e a uma discussão e eventual recurso de decisões arbitrárias, é uma censura por ignorância e proselitismo. O mal é que este tipo de práticas censórias se estende para o conjunto da comunicação social, como foi a reveladora resposta a um artigo de Fátima Bonifácio, mas, mais grave ainda, é a censura noticiosa. Um dos exemplos que já referi – bastante se não completamente solitário – foi a ausência de cobertura jornalística às manifestações de apoio a Bolsonaro feitas por elementos da comunidade brasileira em Portugal, sendo que, no fim, foi a candidatura escondida no silêncio que acabou por ser vitoriosa em Portugal. Há aqui um falhanço profissional do jornalismo, mas também uma censura subjectiva ou objectiva, daquilo que não queremos ver, nem falar, porque o abominamos.
A verdade, por muito que custe, é que a censura à direita radical, da extrema-direita aos grupos identitários e “étnicos”, vem da esquerda, sem perceberem que numa sociedade democrática podem atacá-los politicamente com veemência, mas têm que lhes dar o direito da liberdade de expressão e organização, até aos limites constitucionais. E digo assim, moderando-me, porque eu pessoalmente entendo que a constituição é iliberal face ao extremismo de direita, e que uma sociedade democrática sadia suporta bem o extremismo no âmbito da lei, mas é muito mais fragilizada por uma censura que é difusa, discricionária e dependente das modas.
Tudo isto vem a propósito, como se imagina, da admoestação de Ferro Rodrigues a André Ventura sobre a excessiva utilização da palavra “vergonha” e “vergonhoso” nas suas intervenções parlamentares. Fez mal, não porque Ventura se sinta muito incomodado pela “vergonha” do seu país, personificada nos seus colegas políticos e parlamentares, mas porque o policiamento da linguagem é um caminho perigoso e sem retorno.
Deixem lá o homem falar para a sua clientela de indignados profissionais nas redes sociais e, se querem tirar-lhe o terreno à “vergonha”, denunciem antes as “vergonhas” que ele oculta e que o fazem ser o que é, até porque não vão faltar razões, se estiverem atentos e tiverem paciência para falarem com razão.
Eu não me sinto muito contente por ter que estar a defender gente que considero pouco recomendável, mas não deixarei de o fazer se entender que a sua liberdade de expressão estiver a ser posta em causa. Porque, muito pior do que a “vergonha” de André Ventura, são as palmas entusiásticas do grupo parlamentar do PS aos propósitos censórios de Ferro Rodrigues.