Ontem, para fazer esquecer a melhoria da perspetiva da notação da dívida soberana pela agência americana Moody’s, surgida na véspera (ver aqui), apareceu a liderar a oposição de direita o rancoroso Professor Aníbal.
Substituiu Marcelo, convicto de que, à semelhança das águas residuais, que podem ser recicladas, os ativos tóxicos podem ser branqueados.
Aníbal Cavaco Silva, catedrático de Literatura pela Universidade de Goa, Grande Colar da Ordem da Liberdade por desvario de Marcelo, não se livrará do passado onde teve a sorte de as intrigas de Marcelo e as assinaturas falsas o fazerem, na Figueira da Foz, presidente do PSD contra o democrata João Salgueiro.
Marcelo, Júdice e Santana Lopes fizeram-no PM; Marcelo, Durão Barroso e Ricardo Salgado, ingratamente abandonado, prepararam na vivenda do último a sua candidatura vitoriosa a PR.
Mas não se julgue que o político videirinho foi apenas um salazarista beneficiado com a democracia, a que pretendeu abolir, conluiado com Passos Coelho, os feriados identitários do País, 5 de Outubro e 1.º de Dezembro.
Com o reiterado absentismo na Universidade Nova, para dar aulas na Católica, obrigou o reitor, Alfredo de Sousa, que o fizera catedrático, a levantar-lhe o processo disciplinar que o despediria por faltas injustificadas. Teve a sorte de ter como ministro da Educação João de Deus Pinheiro que lhe relevou as faltas e receberia em recompensa o Min. dos Negócios Estrangeiros.
O ressentido salazarista não foi apenas venal na docência, “mísero professor” no léxico cavaquista, foi igualmente no negócio das ações da SLN, para ele e filha, e no suspeito negócio da Vivenda Gaivota Azul, na Praia da Coelha.
Apesar de exigir que se nasça duas vezes para alguém ser tão sério como ele, há boas razões para pensar que sobra uma. Os seus negócios foram tão nebulosos como as razões do preenchimento da ficha na Pide, com erros de ortografia.
Ontem, o Professor Aníbal veio bolçar o ódio que o devora, depois de ter sido obrigado a dar posse ao primeiro Governo de António Costa, de ter então esbracejado e denunciado à União Europeia o perigo de um PM apoiado pelo PCP e BE. Exigiu que António Costa pedisse a demissão, apareceu nas televisões, rádios e cassetes piratas, e regressou aos sais de fruto enquanto a oposição de direita continuará a ser liderada por Marcelo.
O homem é assim, o salazarista inculto e primário que o marcelista culto, empático e igualmente perverso está a substituir com mais êxito.
Contas feitas, percebe-se que os ganhos resultantes do notável desempenho do PIB não foram parar às mãos dos pensionistas, nem dos trabalhadores do sector privado, nem dos funcionários públicos, todos com aumentos em 2022 aquém da inflação: foram parar às mãos do Estado e da banca. Os banqueiros nacionais cavalgam a onda de euforia com taxas de juro nos empréstimos que são um garrote para famílias e empresas e remuneram a poupança dos clientes com taxas a rondar o zero. E com isso festejam o “sucesso” da sua gestão, anunciando lucros extravagantes aos accionistas e atribuindo-se os correspondentes prémios pornográficos de gestão. “É o mercado a funcionar”, diz o presidente da Associação de Bancos, Vítor Bento. Não, não é: é exactamente o contrário, é um pequeno mercado, funcionando em concertação, a deturpar as regras do jogo. E, por isso, quando o banco público anuncia um comportamento mais decente, logo aparece um banqueiro (António Esteves, no último Expresso) a defender que não faz sentido haver um banco público e que a CGD deveria ser privatizada. Parece que já não se lembra que isso foi feito no passado e que, após várias peripécias pouco edificantes, os banqueiros nacionais que não correram a vender os bancos a estrangeiros acabaram a ser resgatados pelo Estado depois de indecorosas falências. Custou-nos para cima de 20 mil milhões de euros, que poderiam ter sido gastos em tantas coisas mais de que o país precisa e cuja gratidão a classe demonstra agora e assim uma vez mais.
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO
Mas, no lugar deles, eu usaria de cautela. Este tom de arrogância com que hoje se nos dirigem é certamente ainda herdeiro da crença em tempos anunciada por Fernando Ulrich sobre a paciência dos portugueses: “Ai, aguentam, aguentam!” Pois eu não estaria tão certo. A história por vezes dá cambalhotas imprevistas e nada lhes garante que da próxima vez em que estiverem por baixo e em pânico alguém tenha pena deles.
2 Há dias, a TVI passou uma notável reportagem acerca de um tema sobre o qual também já aqui escrevi: a revolução ferroviária em Espanha, comparada com o que se passa em Portugal. Para tudo resumir rapidamente, a Espanha agarrou na oportunidade dos dinheiros europeus, que nós destinámos não se consegue perceber bem a quê, para levar a cabo uma verdadeira revolução do transporte ferroviário. Enquanto nós ainda insistíamos na pré-histórica “bitola ibérica”, convencidos de termos a companhia deles, eles investiam tudo na bitola europeia e na alta velocidade, deixando-nos a ruminar sozinhos com a “bitola lusa” e a lamentar que eles se tenham desinteressado de reactivar o Lusitânia Expresso. Enquanto eles compravam comboios ultramodernos e confortáveis, Pedro Nuno Santos (P.N.S.) gabava-se de ter comprado barato a sucata da Renfe para a mandar restaurar em Gaia. Enquanto eles, no espaço de três anos, encheram o mapa de Espanha de linhas de alta velocidade, e continuam, nós apostámos em melhorar linhas caducas, sempre ultrapassando os prazos e preços das empreitadas e nunca garantindo com isso comboios mais rápidos. Enquanto eles abriam a exploração das linhas a operadores estrangeiros, atraindo franceses e italianos em concorrência com a estatal Renfe, o sempre visionário P.N.S. declarava que “a ferrovia é importante de mais para não ser exclusivo português” e o TGV, se um dia chegasse, seria um negócio tão bom para a CP que estava fora de questão abri-lo à iniciativa privada. Conclusão: enquanto nós continuamos basicamente com um serviço ferroviário igual ao que havia em meados do século passado, em Espanha a linha de alta velocidade abrange já milhares de quilómetros ligando o país todo e os seus comboios são três vezes mais rápidos do que os nossos e cinco vezes mais baratos — o que teve como consequência imediata multiplicar por quatro o número de passageiros, serem todos rentáveis e fazer mais pela redução da poluição atmosférica do que dezenas de vácuos discursos. É a diferença entre fazer política para as juventudes partidárias e os congressos do partido ou fazer política de serviço público.
Ao contrário do que P.N.S. defendia, qualquer tentativa para dar finalmente aos portugueses um verdadeiro serviço ferroviário tem de começar obrigatoriamente pelo encerramento desse cancro chamado CP, que já demonstrou bastas vezes não ser regenerável. E é óbvio que não será também com João Galamba, o discípulo ideológico e metodológico de P.N.S., que isso se fará. Enquanto todos os comentadores e os ditos “opositores” andam salivando de entusiasmo com os episódios, menos que menores, de Galamba, o seu adjunto, o computador, o SIS e outras coisas que não têm que ver com nenhuma política ou ausência dela, aquilo que interessa passa-lhes ao lado. Por exemplo, a forma como Galamba, o fura-greves de serviço ao Governo, pôs fim às intermináveis greves dos maquinistas da CP na semana passada. Confrontado com um caderno reivindicativo que, entre outras exigências impossíveis de satisfazer numa empresa eternamente deficitária, contemplava a extraordinária reivindicação de “horários compatíveis com a vida familiar” (imagine-se o mesmo exigido para aviação, aeroportos, serviços de saúde, forças de segurança, etc.), o que fez Galamba? Suprimiu o revisor nos comboios onde a afluência o não justificava, e o dinheiro que a CP pagava aos revisores passará a pagar, em acréscimo, aos maquinistas — pois que, como se compreende, é mais difícil conduzir um comboio que não tem um revisor lá atrás, nas carruagens. Resultado: acabou a greve dos maquinistas e vão começar greves dos outros trabalhadores da CP, que se dizem discriminados. Melhor ainda: como isto foi negociado directamente pelo ministro, passando por cima da administração da empresa, e estes não se demitiram depois de terem sido assim desautorizados e humilhados, imagine-se o regabofe que será agora a gestão daquilo. E a isto — atirar dinheiro para cima das greves, sem uma ideia de futuro, e assistir tranquilamente à degradação contínua de um serviço essencial para o país — chamam pomposamente “a ferrovia”!
3 Num momento em que o SNS atravessa uma crise que faz duvidar da sua própria sobrevivência, a promoção da saúde pública — titulada por uma Secretaria de Estado com o mesmo nome — não teria mãos a medir, se não com as drásticas medidas de fundo necessárias, ao menos com uma infinidade de outras, que, não sendo drásticas, poderiam, com imaginação, facilitar a vida de quem espera em vão pela ajuda pública em matéria de saúde. Mas, não alcançando tais altos voos e à míngua de fazer prova de vida, a senhora que tutela a tal Secretaria de Estado lançou mão do mais habitual dos expedientes: novo pacote de sanções contra a Rússia, perdão, contra os fumadores. A sua proposta de lei, caninamente aprovada em Conselho de Ministros, não contém uma só medida que promova ou defenda a saúde pública ou proteja os direitos dos não fumadores: é apenas um (mais um) castigo infligido gratuitamente aos fumadores, e porque sim. Proibir, como ela diz, impante, os fumadores de practicamente fumar em todos os lugares ao ar livre seria eficaz se ao mesmo tempo proibisse todos os veículos de circular na via pública ou os paquetes de Lisboa, a maior fonte de poluição atmosférica da cidade, de se manterem com as caldeiras a funcionar enquanto estão atracados. Restringir a venda de tabaco apenas às tabacarias vai obrigar os fumadores a gastar mais tempo e gasolina à procura de postos de venda e vai reduzir o negócio a muitas pequenas lojas, mas não vai impedir um único fumador de deixar de o ser. Convidar os concessionários das praias a proibir os fumadores de fumar nos seus espaços é atribuir-lhes um direito, inconstitucional, de estabelecerem a lei num espaço do domínio público marítimo e convidá-los à parceria fascisto-higiénica da sua mentora. Quanto à nobre intenção, que resta, de proteger a saúde dos fumadores de si mesmos, é coisa que não cabe nas funções governativas da senhora — da minha saúde ocupo-me eu, estalinismos dispenso. A sua propostazinha é apenas o conhecido e ancestral reflexo irresistível da tentação ditatorial do pequeno funcionário: gozar os seus 15 minutos de fama e de poder absoluto, remédio efémero para as suas frustrações ou vaidades pessoais.
Mas a democracia, minha cara secretária de Estado, distingue-se dos demais regimes não apenas por ser o governo legítimo de uma maioria sobre uma minoria mas, sobretudo, por ser aquele em que uma maioria respeita os direitos de uma minoria. Espero bem que a Assembleia da República, que, por iniciativa do PAN, já concedeu aos animais muito mais direitos do que hoje os fumadores têm, lhe explique isto quando for votar a sua vergonhosa proposta de lei.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
(António Garcia Pereira, in NoticiasOnline, 17/05/2023)
Desde há bastante tempo que se vêm verificando acontecimentos preocupantes, mas a memória histórica e a firmeza de princípios devem fazer-nos reagir, pois é precisamente a permanente desvalorização desses mesmos princípios, a narcotização colectiva que nos é imposta pela lógica do instantâneo, o individualismo extremo e a busca do sucesso a todo o custo, que nos vêm impedindo de despertar para o combate cívico que, porém, se torna a cada dia mais imperioso e urgente.
Devido ao chamado “caso do computador” do ex-assessor do ministro Galamba, falou-se agora alguma coisa do SIS e da sua actuação completamente fora dos respectivos limites legais, já que, não sendo um órgão de polícia criminal, não pode tomar quaisquer medidas de polícia. Todavia, a (esquecida) verdade é que já há umas décadas foi tornado público que o SIS andava a seguir e a vigiar dirigentes políticos, sindicais e até de associações de estudantes, tendo mesmo sido revelado o nome de um dos envolvidos nessas “operações”. Como se soube também que um capitão dos Serviços Secretos Militares da África do Sul (“evacuado” para Portugal no fim do regime do apartheid), de nome Peter Groenwald, fora preso e apanhado com inúmero e altamente sofisticado equipamento de escutas telefónicas, tendo confessado que trabalhava para o SIS e identificado quanto ganhava, quem eram os seus superiores e qual fora o último “trabalho” desempenhado. E, todavia, esses espiões ilegais e quem os chefiava puderam safar-se impunes porque o Ministério Público – o tal “campeão” da luta contra a alta criminalidade… – não quis levar as investigações até ao fim. Em suma, operações ilegais e mesmo pidescas puderam ser branqueadas e esquecidas, e os dados e informações com elas obtidos “convenientemente” mantidos em algum ficheiro secreto.
Na sequência do ataque às Torres Gémeas a 11/09/2001, intensificou-se de forma praticamente imparável a lógica, recauchutada e modernizada, das teorias do III Reich do “Direito Penal do inimigo” (que deve ser perseguido e aniquilado por qualquer forma), de que os fins justificam os meios, de que a “autoridade executiva máxima” (ou seja, o “Chefe” supremo), porque encarnando os supostos interesses da colectividade, tem legitimidade “natural” para tudo fazer, digam as leis e as Constituições o que disserem. E, assim, também tudo aquilo que ele afirma será verdade, por mais gritante que seja a respectiva mentira – por exemplo, se George Bush declara que os EUA não praticam a tortura contra prisioneiros, então mesmo as maiores atrocidades praticadas em prisões como a de Abu Ghraib, no Iraque, não são tortura…
Ora, entre nós, as sucessivas reformas do Processo Penal, intensificando uma tendência repressiva e policial que já vinha de antes – sempre, note-se bem, em nome do combate ao terrorismo, e às formas mais violentas de criminalidade, bem como aos crimes “de colarinho branco” e de branqueamento de capitais –, passaram a permitir coisas que nem no tempo da Pide se passavam, tais como entradas em casa dos cidadãos a altas horas da noite ou prisões sem culpa formada durante todo um ano. E possibilitaram mesmo a instituição e consolidação de um modelo de Processo Penal em que, como se tem visto, o Ministério Público está transformado num autêntico “Estado dentro do Estado”, em que faz o que quer e não o que devia, em que não tem que prestar contas a ninguém do que foi a sua actividade, e em que é dono absoluto, sem qualquer controlo jurisdicional efectivo, da primeira e mais importante fase dos processos-crime (o inquérito), tendo a fase seguinte (a instrução) sido reduzida a uma inutilidade, para não dizer uma farsa. De par com tudo isto tem sempre andado, e de forma sucessivamente agravada, a autêntica náusea das sempre impunes e cirúrgicas (mas sempre toleradas, elogiadas e até incentivadas por super-procuradores e super-juízes) violações do segredo de justiça, que cada vez mais foram servindo para, numa lógica digna da Inquisição, propiciar “julgamentos” na praça pública e condenações tão sumárias quanto irremediáveis.
A desvalorização dos princípios éticos e cívicos (para além dos jurídicos…) mais básicos fez com que, de uma forma geral, os responsáveis políticos e partidários, mesmo os ditos de esquerda, adoptassem a posição sumamente oportunista de apoiarem toda a sorte de desmandos policiais e judiciários (bem como políticos) se eles visavam adversários políticos, só se lembrando de protestar (mas ainda assim sempre muito timidamente) quando esses mesmos desmandos tocavam nas suas próprias hostes. E fez também com que se fosse procurando impor como normal, e até digna de elogio, a busca do poder, do dinheiro e do “sucesso” social, político e económico. E, assim, por exemplo, os corruptos, os corruptores, os autores das grandes fraudes financeiras e todos os seus cúmplices, encobridores e facilitadores, permanentemente glorificados como banqueiros, gestores, políticos e empreendedores de sucesso, e até presidencialmente condecorados por isso, apenas são censurados se e quando são enfim apanhados!…
O processo de imposição do pensamento dominante, senão mesmo único, já vem de longe, mas também sempre sem uma resistência democrática digna desse nome. Por exemplo, não obstante a proclamação formal na Constituição do princípio da igualdade de tratamento de todas as candidaturas, sempre se foi verificando, e designadamente sob o pretexto dos famigerados “critérios jornalísticos” – como se estes se pudessem sobrepor aos preceitos e princípios da Lei Fundamental do País!… –, a discriminação e a censura dos candidatos que não interessavam aos interesses dominantes. Chegou-se ao ponto de, nas eleições de 2006 para Presidente da República, em que havia 6 candidatos, as televisões, a começar pela pública RTP, organizarem debates com apenas 5. E as “eminências democráticas” deste país mantiveram-se então mudas e quedas, sem sequer perceberem que, a se deixarem ir por esse caminho, um dia chegaria a sua vez…
É óbvio que a cumplicidade com este tipo de práticas fascizantes de organização e funcionamento da sociedade se aprofundaram e se agravaram em períodos de mais marcada crise. No tempo da Tróica e do governo PSD/CDS, e sob a invocação da chamada emergência financeira, valeu praticamente tudo para impor a diminuição de salários e pensões, o aumento dos tempos de trabalho, a facilitação e drástico embaratecimento dos despedimentos e contratos precários e a violenta restrição dos direitos e prestações sociais! Do mesmo passo que a Constituição era considerada um “empecilho”, que não deixava os “dedicados” governantes trabalharem devidamente, os críticos e divergentes eram mandados calar ou, pelo menos, emigrar…
Depois, aquando da pandemia da covid-19, e sob o pretexto de outra emergência, agora sanitária, assistimos ao revivescer e agravar deste tipo de concepções e de práticas: actos gravemente restritivos de direitos e liberdades fundamentais adoptados pelo governo da “geringonça” em frontal violação da Constituição (o Tribunal Constitucional haveria de, e “a título póstumo” porque o fez apenas cerca de dois anos depois, declarar por 23 vezes a inconstitucionalidade de tal tipo de actos), com o Primeiro-Ministro a declarar acintosamente que o governo fazia o que entendia em defesa dos interesses da comunidade e que iria – como efectivamente foi! – continuar a fazer o mesmo “diga a Constituição o que disser”. Os críticos, os opositores ou simplesmente os opositores foram então por completo isolados, achincalhados e silenciados. E, ao mesmo tempo, incentivou-se e procurou-se normalizar o apelo à delação, apontando como normais, e até dignas de elogio, situações em que cidadãos foram, por exemplo, multados e até detidos pelas autoridades policiais por estarem a comer uma sandes no interior do seu próprio carro, após terem sido denunciados por um “bufo” mais zeloso. Tudo isto, recorde-se, sempre em nome da alegada “legitimidade dos fins” e com muitos dos que se pretendem democratas e, mais, de “esquerda”, a olharem para o lado ou até a apoiarem declaradamente este estado de coisas.
Com a guerra na Ucrânia, a lógica maniqueísta (e salazarista) do “quem não é por nós, é contra nós!”, foi levada a extremos inenarráveis: corte de estações televisivas, saneamento de comentadores, proibição de obras de arte, interdição de artistas e desportistas, simplesmente por serem russos ou por terem opiniões consideradas pró-russas, etc. Já tivemos ataques miseráveis por trolls nas redes sociais e até saneamentos sumários na Universidade (caso de Coimbra).
E, independentemente das reservas, críticas e oposições que alguns (talvez até a grande maioria) possam ter relativamente às opiniões e posições dos que não concordam e não se identificam nem com Zelensky e o seu regime, nem com a Nato nem com a União Europeia e as suas políticas, será que ninguém se apercebe que essa é precisamente a lógica dos regimes mais ditatoriais e da legitimação das suas maiores atrocidades e que um dia vai ser usada contra eles, eventualmente com novos gritos de: “Tudo pela Nação, nada contra a Nação!”?
É importante que isto se diga, até porque, nesta questão da guerra da Ucrânia, como na da Pandemia ou na da Tróica e da crise financeira, quem está em minoria num determinado momento pode afinal ter razão, e a essência da Democracia não é o esmagamento, pelas maiorias da ocasião, das minorias, mas, pelo contrário, é a salvaguarda destas! E a instigação da desconfiança, do medo e do ódio pelo outro, porque ele é diferente em origem social ou étnica, cor da pele, simpatia política ou fé religiosa é, afinal (como bem sabemos e não deveríamos esquecer), o terreno onde crescem as mais venenosas serpentes da Política. Mas também a este propósito os democratas da nossa praça, desde que alinhados com o poder e confortavelmente instalados nos interesses dominantes, de nada parecem querer saber…
Herdámos do Fascismo, e nunca a erradicámos verdadeiramente, uma concepção e uma estrutura do Estado e da sua Administração que vê nas pessoas comuns do Povo, não cidadãos que devem respeitar e servir, mas sim súbditos sobre quem têm a faculdade majestática de exercer o poder. A completa opacidade da nossa Administração Pública, a sua recusa sistemática em disponibilizar os documentos e a informação a que os cidadãos têm legal e constitucional direito (como se fosse um qualquer e enorme segredo nuclear saber-se em que estado se encontra um determinado processo, quantos funcionários tem um determinado serviço ou quem tomou, e com que fundamentos, uma determinada decisão). E complemento directo desta forma opaca e anti-democrática de funcionar é a prática, frequentíssima (até já a vimos no caso da TAP), de classificar de “confidencial” ou de “secreto” tudo aquilo que não convém ao Poder que seja conhecido.
Querem convencer-nos de que é normal e até inevitável o uso descarado, ostensivo e compulsivo da manipulação e da mentira como forma de gerir e governar, e também a gestão “científica” do medo como forma de assegurar o exercício e a manutenção do Poder. É, aliás, isso mesmo que explica a enorme dimensão e gravidade que uma calamidade como a do assédio moral no local de trabalho assume no nosso País, calculando-se que atinja já bem mais de meio milhão de trabalhadores.
Temos hoje, pois, uma sociedade cada vez mais dominada pela lei do medo. O medo de falar e sobretudo de criticar. O medo de ser despedido e perder o emprego. O medo de não conseguir pagar a casa e perder o tecto. O medo de ser denunciado como “diferente” ou “divergente” e ser prejudicado por isso. O medo de ser acusado falsamente, mas nem por isso deixar de ver a sua vida profissional, pessoal, social ou até política destruída para sempre. Tudo isto com os órgãos e instituições, supostamente encarregues de fiscalizar os actos dos órgãos e agentes do Estado e dos demais poderes, públicos e privados, e de garantir a protecção dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (dos Tribunais às Entidades Reguladoras e Fiscalizadoras, passando pela Provedoria da Justiça), transformados em reais inutilidades ou “poços sem fundo”, muito fortes com os mais fracos, mas fraquíssimos com os fortes, e, sobretudo, manifestamente incapazes de desempenharem a função que supostamente lhes está atribuída.
Vivemos hoje num país – independentemente do que dizem o Governo, os seus apoiantes e uma Imprensa cada vez mais parecida com o SNI (Secretariado Nacional de Informação) de Salazar e Caetano – com um milhão e trezentos mil cidadãos sem médico de família, onde todos os dias se fecha um serviço de urgência e onde cada vez mais cidadãos têm de ir de madrugada para as portas dum Centro de Saúde ou percorrer dezenas de quilómetros para procurarem os serviços de saúde a que têm indeclinável direito. Um país onde a subida real dos preços dos produtos de primeira necessidade é o dobro da inflação “oficial” e onde começam de novo a aumentar as execuções e os despejos. Um país em que de um ano para o outro desapareceram (isto é, emigraram) cerca de 100.000 jovens trabalhadores altamente qualificados e em que a perda do poder de compra é muito superior aos miseráveis aumentos salariais dos trabalhadores públicos e privados. Este é também o país em que se exige toda a sorte de sacrifícios a quem trabalha, mas onde os Bancos e as grandes empresas, designadamente da Indústria Farmacêutica, da Energia, dos Combustíveis e das Grandes Superfícies acumulam lucros gigantescos, da ordem das centenas de milhões de euros. Um país em que, apesar de ter uma extraordinária localização geo-estratégica, uma magnífica orla costeira, um mar da Zona Económica Exclusiva maior que toda a União Europeia e portos (a começar por Sines) com excelentes condições de operação, não tem Marinha digna desse nome nem de Pesca, nem Mercante, nem de Guerra, não tem ferrovia e temos estado a destruir a transportadora aérea para ir agora privatizá-la à pressa e a preço de saldo, como já foi feito com a EDP, a GALP e os CTT, por exemplo.
E, todavia, e não obstante todos os dias, mas sempre a custo, dada a enorme e pegajosa teia de interesses envolvidos, se descobrirem casos de corrupção e de abuso de Poder (de que, porém, apenas alguns já há muito vinham falando), tudo se mantém no essencial na mesma. Ou seja, sob o argumento – aparentemente correcto, mas substancialmente hipócrita – de “à Justiça o que é da Justiça, à Política o que é da Política”, ninguém da área desta, em particular aqueles que se proclamam de esquerda, quer verdadeiramente discutir aquilo que conduz em linha recta à produção e eternização deste tipo de situações.
E quando assim é, torna-se “normal” que dirigentes e forças políticas, que se dizem defensores da Democracia, desvalorizem e silenciem casos gritantes (como o do SIS) de teorias e práticas verdadeiramente fascizantes, com estas concordem e as subscrevam – sempre, é claro, em nome da “modernidade” e do “pragmatismo” –, pratiquem o silenciamento das vozes incómodas e de todas as formas de discriminação e perseguição aos seus opositores, contemporizem e beneficiem com as fraudes financeiras e a corrupção, apoiem revisões constitucionais (como a que o PS e o PSD estão silenciosamente a cozinhar) para se permitirem internamentos compulsivos sem mandado de um juiz, ou concordem com medidas de autêntico “fascismo sanitário”, como a nova legislação do tabaco.
Um dia também eles vão acordar sentados em cima das baionetas, porquanto é precisamente neste terreno pantanoso do oportunismo político que podem crescer e desenvolver-se (e até obter apoio, designadamente eleitoral, daqueles que irão esmagar a seguir) os (neo)nazis, como sempre fizeram ao longo da História, primeiro com pezinhos de lã, em demagógica gritaria contra a corrupção e em discurso contra os “outros” (sejam eles os ciganos, os imigrantes ou simplesmente os que são ou pensam de forma diferente), mas depois, logo que se apanhem com o poder nas mãos… botas cardadas e facas afiadas.
É caso então para perguntar: onde estão os escritores e artistas, os Homens e Mulheres da Cultura, as elites universitárias? Onde estão as Ordens Profissionais, em particular a dos Advogados? Onde estão a Provedora de Justiça e as Associações de defesa dos direitos dos cidadãos? Onde estão, enfim, a Esquerda e aqueles que deveriam ser os seus princípios de sempre, ou seja, a defesa dos mais fracos e dos mais pobres, a vigorosa denúncia da corrupção, dos compadrios, das trafulhices e das mentiras, a constante luta conta todos os arbítrios e abusos (venham eles de onde vierem), o combate permanente contra a pobreza e todas as formas de injustiça social, o efectivo e contínuo controlo democrático sobre todas as formas de poder e sobre todos os dirigentes? Pois não é evidente que tem sido a renegação e o abandono desses mesmos princípios que nos está a conduzir até onde nos encontramos e, pior, para onde poderemos caminhar rapidamente?…
O que devem fazer então os que não se renderam definitivamente à lassidão dos princípios e à corrupção das consciências? Rendermo-nos? Não, de todo! Porque nós somos, nós temos que ser, a Resistência e, por isso, deveremos fazer aquilo que nos lembra o belíssimo poema “Antes que seja tarde”, de Manuel da Fonseca: