(António Guerreiro, in Público, 03/02/2023)

Pode o capitalismo ser substituído por algo pior?
Na sua edição de 30 de Dezembro, a revista alemã Der Spiegel, um dos mais importantes semanários europeus, que sempre conviveu muito pacificamente e até em comunhão activa com o capitalismo liberal, apresentava na capa uma montagem – é a imagem acima -, de um retrato de Marx em que o mostra com um pin ao peito (onde se consegue ler “There is no Planet B”) e de mangas arregaçadas, exibindo os braços tatuados com desenhos de flores e o título da sua obra maior: Das Kapital. O título dessa capa do Der Spiegel, traduzido em português, é o seguinte : “Afinal Marx tinha razão?” E o subtítulo é: “Por que razão o capitalismo já não funciona”.
Este subtítulo é uma citação do depoimento do bilionário dos Estados Unidos, Ray Dalio, investidor e gerente de fundos, que o autor do artigo, em registo romanesco, imagina todas as manhãs na sua vivenda de 2000 metros quadrados a ler O Capital e não o Wall Street Journal.
Desde a capa ao artigo para que ela remete, o pressuposto é o de que o capitalismo clássico já não responde aos problemas emergentes no nosso tempo e, pelo contrário, até os agrava. Temos assim um artigo que se inscreve na longa lista de anúncios (sempre desmentidos) da superação ou fim do capitalismo. E sempre que há esse anúncio, como sabemos, as razões de Marx são convocadas e actualizadas.
Tantas vezes isto acontece que já percebemos muito bem que a chave marxiana utilizada nas declarações que antecipam o óbito do capitalismo significa pura e simplesmente o que Fredric Jameson afirmou sentenciosamente: “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. E aí temos, como resposta simétrica às sucessivas profecias da morte do capitalismo, a ideia de um capitalismo eterno e a-histórico. Em suma: um capitalismo teológico.
Mas há quem já tenha mostrado com argumentos fortes que o capital já morreu. Trata-se de uma australiana chamada McKenzie Wark (informação irrelevante: é uma mulher trans), cada vez mais lida e citada, sobretudo nos Estados Unidos e em Inglaterra, onde publicou, na importantíssima editora Verso, em 2019, Capital Is Dead. A quem este título promete um horizonte de felicidade, é preciso avisar que o subtítulo põe a hipótese de o capitalismo ter sido substituído por algo pior: Is This Someting Worse?
Essa “outra coisa” pior que Wark vê emergir para além do capitalismo (que existe ainda, ela não o nega) e acima dele (ou seja, realizando a anunciada “superação”, mas não sob a forma de promessa de um futuro radioso), tem como protagonista uma nova classe dominante que detém e controla a nova mercadoria produtora de valor: a informação.
A esta classe chama McKenzie Wark a “classe vectorialista”, na medida em que possui os vectores extensivos da comunicação, que atravessam o espaço, e os vectores intensivos da computação, que aceleram o tempo. O que ela possui já não são os meios de produção (as maiores empresas multinacionais já não fabricam os produtos que vendem), como acontecia com a classe capitalista, mas os vectores de informação: ela possui os direitos de autor, as patentes, as marcas, os sistemas logísticos que geram e vigiam a disposição e os movimentos de todos os recursos, os instrumentos financeiros. E é daí, da informação como nova mercadoria, que se extraem quantidades astronómicas de valor.
Com a “classe vectorialista” já estamos “noutra coisa” qualitativamente diferente da produção capitalista, defende Wark. Sob a condição dessa “outra coisa”, as formas de valorização são muito mais abstractas. Agora, o poder sobre a cadeia de valor já não tem que ver com a propriedade e o controlo dos meios de produção.
McKenzie Wark reconhece que muitas das intuições analíticas de Marx continuam a ser importantes, mas ele não podia prever o que a informação fez ao capitalismo. Por isso, continuar a pensar sob o prisma de O Capital é insistir num capitalismo eterno e não perceber que ele já chegou ao seu fim e foi substituído por algo pior. A classe que na análise de Wark está em oposição à classe vectorialista é aquela a que ela chama a “classe dos hackers”. Em 2004, ela publicou A Hacker Manifesto, na Harvard University Press, que acaba de ser traduzido em Portugal por Francisco Nunes (que também assina um prefácio) e publicado por uma editora chamada DeStrauss.
Os hackers são, para Wark, aqueles que fazem a informação, que fazem a diferença, mas não têm os meios para extrair o valor daquilo que fazem. Capital Is Dead é uma revisão de Um Manifesto Hacker (assim se chama a tradução portuguesa). Quando escreveu o Manifesto, Wark não previu as mais sofisticadas técnicas de captura de valor impostas posteriormente à criação — uma captura que se desloca para um nível cada vez mais abstracto.
