A escalada da guerra na Ucrânia e o discurso dos valentes

(Carmo Afonso, in Público, 12/10/2022)

Pretender a vitória total da Ucrânia significa pretender a derrota total da Rússia. Há mesmo quem acredite que, caso Putin seja confrontado com uma derrota total neste conflito, não recorrerá a armas nucleares como já ameaçou?


Tenho lido muitas vezes que o caminho das negociações para a paz que alguns, entre os quais me incluo, defendem, é o discurso típico de uma candidata a Miss Universo. Esta é a forma como se ridiculariza quem entende que esta guerra não pode acabar bem.

Na semana passada, Raphael S. Cohen e Gian Gentile da Rand Corporation (Rand) – uma organização que quem quer perceber como funciona o mundo, ou porque funciona assim, deve conhecer – anunciavam que os Estados Unidos e os seus aliados devem continuar a apoiar a Ucrânia até que o país alcance uma “vitória total”.

Depois da pesquisa, que sugiro que façam sobre a Rand, ficarão a saber a importância que têm as suas indicações. Como curiosidade, mas bem exemplificativa do que estou a falar, digo-vos que o chief strategist da Rand, Herman Kahn (1922-1983), foi a inspiração para a personagem Dr. Strangelove no filme de Stanley Kubrik, com o mesmo nome, de 1964. Basicamente a Rand dita e acompanha a geoestratégia dos Estados Unidos desde o final da II Guerra Mundial.

Se a Rand vem a público apontar como objectivo uma vitória total da Ucrânia, ficamos a saber que é essa a orientação que está a ser seguida. Do que vejo, leio e presencio, esta é também a visão partilhada pela maioria dos portugueses. Há uma clara maioria que acredita que não se deve falar com Putin, que não há diálogo com tiranos e invasores e que devemos, sim, apoiar a Ucrânia na sua defesa estratégica e militar e rumo à vitória. São os mesmos que acreditam que essa vitória é possível e que se está no bom caminho para a atingir.

Se o discurso de quem defende negociações de paz é típico de Miss Universo, este discurso é próprio de valentes, aqueles que, sem medir o perigo, perguntam: quantos são, quantos são?

A guerra está a ganhar contornos cada vez mais drásticos. Assistimos a uma escalada que, obviamente, será penosa e dolorosa para todos, até para quem vê ao longe. Um país está a ser dizimado enquanto, dos nossos sofás, somos irredutíveis nas questões de princípio.

Pretender a vitória total da Ucrânia significa pretender a derrota total da Rússia. Há mesmo quem acredite que, caso Putin seja confrontado com uma derrota total neste conflito, não recorrerá a armas nucleares como já ameaçou? Não querem diálogo ou negociações com Putin, mas confiam no seu código ético. Isto é inimaginável. Putin não ficará a acenar com o lenço branco da rendição no cenário (muito improvável) da sua derrota. Quem defende a derrota total da Rússia aceita que milhares, ou milhões de vidas, fiquem em risco e que nos lancemos colectivamente num abismo.

    E já agora: aos que responderem afirmativamente à pergunta acima, digo que confiar que Putin não usará armas nucleares, caso seja confrontado com a sua derrota, tem potencial discursivo de Miss Mundo.

    A direção apontada pela Rand é a da destruição da Europa: se Putin ganhar a guerra ou se Putin perder a guerra. Venha o Diabo e escolha.

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    Aparentamos estar no mesmo lado que os Estados Unidos, mas, enquanto o nosso aliado vai colhendo benefícios da continuação do conflito e dando indicações em conformidade, a Europa condenou-se a revelar todas as suas fragilidades: a dependência energética e militar, a vulnerabilidade face ao aumento generalizado de preços e todos os revezes do afastamento de um eixo euro-asiático que, com a Alemanha, se desenhava. Para além disso existem, claro, as questões de princípio. Mas os princípios não ditam a intensificação de uma guerra que pode alastrar e que envolve as duas principais potências militares mundiais. A guerra passa-se no território ucraniano mas, como tantos têm referido, esse território é o tabuleiro onde jogam xadrez os dois jogadores que conhecemos.

    O presidente da Ucrânia tem demonstrado coragem, mas não bom senso. O seu recente pedido de adesão à NATO é um bom exemplo dessa falta e talvez um prenúncio de falta de entendimento com Washington. Até para a visão belicista dos Estados Unidos, este pedido não faz sentido. Não será de Zelensky que partirá a iniciativa de parar. É certo que não foi sua a iniciativa de começar.

      Portugal dança a música que ouve e faz algum sentido que não tenhamos o atrevimento de passar uma música diferente. Seria, como dizem os ingleses, “to punch above one´s weight”. Mas temos a obrigação de refletir. Já estivemos mais perto do momento ideal para negociar e estamos cada vez mais longe de o repetir. Mas sabemos, ou deveríamos saber, que não existe nenhuma alternativa não suicidária à mesa das negociações e que ser o adulto da sala nunca será sinal de fraqueza.

      A Ucrânia tem resistido e conta com o apoio do mundo ocidental. Se isso é suficiente para manter uma guerra também serve para manter uma posição de força a negociar a paz.


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      Sondagem ICS/ISCTE – Maioria já corta no lazer, gás, luz e água

      (David Dinis e Sofia Miguel Rosa in Expresso, 23/09/2022)

      Portugueses reduzem consumo. Um terço teve de cortar em bens de primeira necessidade e 19% em despesas de saúde. Prestação da casa é risco para 57%.


      Se já são 48% os portugueses que dizem viver com dificuldade com os seus atuais rendimentos — mais sete pontos do que há seis meses —, como é que todos se estão a adaptar à subida histórica da inflação? A maioria com cortes em despesas de lazer, mas também muitos com cortes em produtos essenciais para o dia a dia, conclui a sondagem realizada pelo ICS/ISCTE para o Expresso e a SIC.

      A primeira resposta faz parte de todos os livros de história económica: é no lazer que as famílias cortam primeiro quando têm de controlar os gastos. Assim, 72% dos portugueses admitem ter lidado com o aumento de preços evitando “despesas com atividades de lazer, tais como pas­seios, refeições fora de casa, hobbies, cinema ou espetáculos”.

      Mas não chega. Em cima disto, 62% dos que responderam ao inquérito dizem ter “diminuído o uso de eletricidade, gás e/ou água em casa”, num contexto de aumento generalizado dessas contas. É também uma maioria, demonstrando como o aperto já chega a grande parte da classe média.

      Os dados detalhados provam isso mesmo: entre os que têm dimi­nuído estes consumos encontram-se 54% dos que assumem ainda viver de forma confortável ou satisfatória, também 54% dos portugueses com qualificações superiores e 67% dos que estão em plena idade laboral, entre os 45 e os 64 anos. E quase dois terços dos reformados — 63% — têm reduzido estes consumos, que se distribuem de forma igualitária entre simpatizantes do PS ou do PSD, eleitores de esquerda ou de direita.

      Mas há quem tenha sido obrigado a fazer mais: 37% dos que responderam à sondagem dizem ter já reduzido o “consumo de alguns produtos de necessidade” — mais de um terço dos portugueses. Ao passo que cerca de um em cada cinco, 19%, afirma ter cortado “em despesas de saúde, tais como consultas ou medicamentos”. Os dados são consistentes com o número de respostas desiludidas com as medidas anunciadas pelo Governo para fazer face à alta de preços (ver texto nestas páginas).

      Olhando para a frente, cerca de dois terços dos inquiridos dizem-se “muito” ou “algo” preocupados com a possibilidade de deixarem de conseguir pagar as contas de luz, de água ou de gás. E 57% exprimem o mesmo grau de preocupação “de conseguir pagar a renda ou a prestação da casa”. Subdividindo, são 26% muito preocupados com esse cenário e 31% “algo” preocupados com ele. O que se sabe é isto: o Banco Central Europeu fez dois aumentos sucessivos dos juros de referência nos últimos meses e prepara-se para fazer outros nos próximos meses.

      Mais distante, mas já nos 43%, está o medo de perder o emprego no futuro próximo: 22% dos inquiridos dizem mesmo ter “muito” medo disso, 21% “algum”. Mas mais de um terço – 37% – diz que não tem não está “nada preocupado” com a possibilidade de perder o emprego e 17% dos inquiridos estão só “um pouco preocupados”. Isto quando vários organismos internacionais já admitem que o país (e a Europa) está a caminho de uma recessão.


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      Como se faz um preço? Com lucros e salários

      (Raquel Varela, in Facebook 15/09/2022)

      Sem surpresa, quando disse aqui que os preços são exclusivamente fixados por lucros ou salários, muitos perguntaram “então e as matérias-primas, a energia, o mercado…a oferta e a procura?”. Alguns, com a ignorância atrevida dos tempos que correm, lembraram-se de dizer que eu não era economista (a certificação do “especialista”). Aqui fica a explicação de um economista Adriano Zilhão, na minha página, que publico por ser didática e impecável.

      E deixo um conselho: eu não sou economista, podia ser e nada saber. Sou professora de história e historiadora e também professora de história económica e social. Estive um ano da minha vida dedicada a estudar a teoria do valor trabalho e as crises capitalistas porque, em 2008, e escrevi e lecionei muito sobre elas, compreendi que não podia deixar de o fazer. São as primeiras páginas, muito difíceis do Capital de Marx. Estudam-se, não se leem. Sem conhecer a teoria do valor marxista, hoje, arrisco dizer não se compreendem as sociedades, seja em que disciplina for. Mas, agora o que é relevante: eu podia ser economista e não perceber nada de economia, o que aliás se viu nos comentários onde tantos economistas perguntavam pela “lei da oferta e da procura”, algo que só fixa preços na imaginação deles. Também podia ser operária, física e cozinheira e conhecer bem a teoria do valor-trabalho. O que impressiona nos comentários, e que nos devia fazer refletir, é como tanta gente formada em economia, repete as mesmas vacuidades do governo a explicar que nada pode fazer face à inflação.

      Um mergulho nos currículos das escolas de economia, que varreram a ciência social e a transformaram em matemática técnica ou comunicação em business devia há muito ter alertado tanta gente sobre o que (não) aprendem de economia em alguns cursos de economia.

      Aliás, há dias perguntei a um grupo de jovens de 18 anos, com média de 18 em economia no 12º ano, todos a caminho de escolas de economia se conheciam Marx e, tirando uma, os outros olharam com espanto, nunca ouviram tal nome. Suspeito que assim continuarão, a achar que a lei da oferta e da procura fixa preços. Podem fazer como eu, também ninguém me ensinou Marx, enfiei a cabeça no livro anos para não fazer a chamada “figura de urso” ou, como se diz em business, ou zeinalbavês, bear looking. Agora leiam e aprendam.

      Dando a palavra a Adriano Zilhão:

      Pode-se deduzir do comentário de J. P. Costa que a sua formação é, “de todo”, económica. E, como qualquer um que estudou a economia escolástica e/ou nela crê, J. P. C. acredita que o “mercado”, local em que se “formam” preços, opera por uma espécie de magia.

      Mas olhe-se melhor para a magia. Olhe-se para o mercado do petróleo (ou do gás). O que aconteceu, recentemente? Perante a guerra, sobretudo perante as sanções, passou a ser provável que a quantidade de petróleo oferecida no mercado baixasse muito, pelo menos no curto prazo.

      Consequentemente, os grandes compradores de petróleo precipitaram-se para comprar o máximo possível, para poderem revendê-lo durante o máximo de tempo possível (antevendo, por outro lado, que os preços continuariam a subir, e eles fariam lucros chorudos na revenda).

      Deu-se, assim, aquilo que em economês, se chama um desequilíbrio entre oferta e procura: o preço subiu, em consequência.

      Mas o mercado não “fez” subir coisa nenhuma. O que aconteceu foi que os grandes vendedores viram que, se passassem a vender mais caro, continuariam a escoar todo o produto. Ou seja, disseram aos compradores: querem comprar? A gente vende, mas agora só vendemos a quem der (ainda) mais. Podes, compras; não podes, ficas de mãos a abanar, que há mais quem compre.

      O preço não “ficou” magicamente mais alto, os vendedores aumentaram-no. Ora, e os custos, salariais e outros, dos vendedores de petróleo? Ficaram na mesma.

      À diferença entre preço e custo (salarial e outro) chama-se lucro. Portanto, a subida de preços provocou uma subida dos lucros dos vendedores.

      A economia é uma coisa complexa? É. Empresas têm custos de todo o tipo: os salários que pagam diretamente e muitas outras coisas, matérias-primas, produtos intermédios, serviços de transporte, financeiros, amortizações e por aí fora (deixemos de lado os impostos, que incidem sobre salários e lucros a jusante). Mas as matérias-primas e tudo o mais foram extraídos ou produzidos por outras empresas, que para o fazer também usaram trabalho: portanto, pagaram salários. E assim sucessivamente.

      Se se “descascar” a produção de bens e serviços ao longo de todas as cadeias de produção entrecruzadas, tudo se reduz a trabalho humano.

      E reduz-se a duas categorias de trabalho humano: a parte do produto do trabalho dos trabalhadores que lhes é paga (os salários, que são o preço pago pelo patrão para alugar a força de trabalho pelo tempo convencionado); e o trabalho dos trabalhadores que não lhes é pago (o lucro, o valor restante, a diferença que, depois de vendidas as mercadorias/serviços, fica no bolso do patrão).

      Por essa razão, mesmo nas escolas de economia, há uma equivalência entre produto e rendimento: a soma do valor de todo o produto é igual à soma do valor de todos os salários e lucros (e suas subdivisões).

      Em conclusão: Raquel Varela tem razão. Todo o valor criado se reduz a salários e lucros, a soma dos preços todos é igual à soma de todos os salários e lucros. O “mercado” (incluindo o de trabalho) é o “local” em que se medem forças, onde se vê quem consegue torcer o braço de quem.

      É menos mágico do que parece.


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