Quem ganhou no porto de Setúbal?

(José Soeiro, in Expresso Diário, 14/12/2018)

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José Soeiro

Foi hoje fechado o acordo no Porto de Setúbal. É uma vitória dos estivadores e da greve que mantiveram nas condições mais difíceis. Insisto neste ponto por uma razão simples: agora que há acordo, quem lesse algumas notícias ou visse alguns telejornais, ficaria com a ideia de que o acordo seria o produto de uma boa-vontade antiga da empresa Operestiva a que finalmente o sindicato teria cedido, ou de um ultimato da Autoeuropa para que os trabalhadores pusessem fim à greve. Só que não.

É certo que a Autoeuropa teve um papel neste processo. Foi pouco referido (será por acaso?), mas na véspera da operação planeada entre a Operestiva e o Governo para romper a luta dos estivadores com fura-greves e com a polícia de intervenção, a AutoEuropa fez questão de clarificar que essa manobra não era da sua responsabilidade. No comunicado, deu mesmo a entender que aquele esquema não era solução: “a alternativa a Setúbal é Setúbal”, dizia a empresa, lamentando a incapacidade dos patrões do porto e do Governo de chegarem a acordo com os representantes dos estivadores. Percebe-se: a AutoEuropa quer um porto que funcione; aliás: precisa mesmo de um porto que funcione e que lhe dê garantias e previsibilidade. Pôr o porto a ferro e fogo, atear uma guerra contra os estivadores e o sindicato, alugar barcos de outros países para serem carregados por trabalhadores sem qualquer qualificação e experiência por um preço muito maior, desviar os carros de Palmela para Leixões, tudo isso podia servir a estratégia da Operestiva e do Governo para desgastar a luta dos eventuais de Setúbal e manter a praça de jorna, mas não servia os interesses da AutoEuropa.

Quem colocou todavia o problema do trabalho à jorna em cima da mesa não foi a AutoEuropa. Foram os precários de Setúbal e a sua greve. Foram eles quem teve a coragem que se impunha e quem revelou o espírito de sacrifício necessário: sacrifício do seu presente imediato por um bem maior e pelo futuro. Contra os formalistas cínicos que lhes diziam que não tinham direito à greve, fizeram greve. Contra as pressões sobre os “prejuízos para a economia”, bateram-se contra a escravatura. Contra a chantagem que tentou dividi-los aproveitando-se do seu estado de necessidade, mostraram o que é ser solidário e estar unido. Contra a brutalidade com que quiseram esmagar a sua luta, foram persistentes e mantiveram o sangue-frio. Estão de parabéns.

Mas está também de parabéns o Sindicato. Primeiro, porque soube construir em torno desta luta uma dinâmica de solidariedade e de alianças sociais que lhe deu força. Em vez da abordagem corporativa e burocrática, juntou os trabalhadores antes mesmo de serem sócios, fez plenários abertos, criou espaços democráticos, convocou a sociedade e recebeu todas as organizações que quiseram associar-se, furou o cerco comunicacional. Um bom exemplo sobre como contornar o fechamento e as dificuldades frequentes no mundo sindical.

Em segundo lugar, o sindicato ganhou onde queriam derrota-lo. Ganhou ao não aceitar que a resolução do problema dos precários de Setúbal se fizesse procurando esquecer os problemas graves que se vivem noutros portos (nomeadamente em Leixões e no Caniçal), onde os trabalhadores que se associam ao SEAL (o sindicato nacional) são vítimas de assédio, processos disciplinares sem fundamento, discriminação salarial, perseguição sindical. Estes são, recorde-se, os motivos da greve nacional ao trabalho extraordinário que decorre há meses e que não foi agora levantada nesses portos. De facto, o sindicato acordou uma solução para Setúbal, que prevê a contratação efetiva e permanente de 56 precários, mas também a criação de uma pool de 37 trabalhadores chamados prioritariamente, quando for necessário um segundo turno, o que significa que, a curto prazo, há mais 37 trabalhadores que podem entrar nos quadros e tornar-se efetivos – o que, a concretizar-se, representará a contratação dos cerca de 90 trabalhadores que são efetivamente necessários. Mas além disso, conseguiu arrancar ao Governo e às empresas aquilo de que elas andavam a fugir há semanas e que foi o ponto que, na ronda negocial anterior, impediu o acordo: sentarem-se à mesa para debater os problemas de Leixões e da Madeira. Nos próximos 10 dias terá de ser encontrada uma solução para aqueles dois portos e as negociações em Lisboa serão também retomadas. Mais uma vez, ganhou a persistência sindical e a solidariedade entre os trabalhadores das diferentes cidades.

Audácia, coragem, abertura, unidade, solidariedade, persistência: a vitória em Setúbal tem um alcance que vai para além das famílias que, com este acordo, poderão ter finalmente uma vida melhor. Mostra-nos a todos e a todas que é possível lutar, mesmo nas condições de maior fragilidade. Mostra-nos que, lutando, é possível vencer. Que nos sirva de exemplo.

As reveladoras incompreensões de António Costa

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 26/11/2018)

Daniel

Daniel Oliveira

(Ó Daniel, grande sova no Costa, quer pela força do murro, quer pela elegância da execução, mas justamente merecida. A Estátua assume uma pontinha de inveja porque não conseguiria escrever melhor, e assina de cruz toda a prosa, o que é raríssimo suceder com os textos que publica de outros escribas, que não os dela própria . Parabéns e go on. 🙂

Comentário da Estátua, 27/11/2018)


Perante a paralisação dos estivadores precários do porto de Setúbal e a intervenção policial para ajudar substituir os grevistas, António Costa foi obrigado a vir em socorro da ministra do Mar. E fê-lo da pior maneira: repetindo uma mentira veiculada pela entidade empregadora. Disse: “Estão abertos concursos para a contratação de pessoal efetivo. Tenho muita dificuldade em compreender porque é que alguns dos eventuais que estão em greve exigindo ser efetivos não concorrem e respondem a essas ofertas em emprego para serem efetivos.” E depois dedicou-se a atacar um sindicato que é “uma condicionante ao bom funcionamento do porto”. Não reservou o mesmo género de críticas a uma empresa que tem 90% de precários. Se a posição neutral já seria difícil de defender – porque não estamos perante lados com igual força –, esta posição foi um murro na barriga.

A mentira é esta: não foi aberto concurso algum. A empresa contactou trinta trabalhadores para aceitarem integrar os quadros através de contratos individuais. A tática é antiga: dividir para reinar. E estes recusaram porque querem ser integrados através de uma negociação coletiva com os sindicatos que tenha em conta a situação de todos. Em vez do desenrasque da sua situação particular, para partir a luta destes estivadores, estes trabalhadores esperam solidariedade entre trabalhadores e concertação social. Se António Costa tem dificuldade em compreender estes dois valores é porque não sabe que eles estão na fundação da social-democracia e do socialismo democrático. Lamentavelmente, o PS não tem a origem sindical e operária da maioria dos seus congéneres europeus. Se tivesse, a intervenção policial e estas declarações de Costa teriam levado a reações firmes da militância. Pelo menos mais audíveis do que as ouvidas sobre a polémica da tourada.

Felizmente, há esperança. O discurso que se espera de um socialista veio da JS do Porto. Que não só pôs os pontos onde eles têm de estar como não hesitou em criticar o comportamento do Governo. Não é raro serem os novos a ensinarem os velhos. E são estes jovens, que cresceram nas duas décadas de traição da social-democracia, de que a terceira via foi apenas o mais deprimente dos suicídios, que vão dar a volta a isto. Mesmo que a velha guarda resista.

Esta intervenção de António Costa, que deixa a concessionária turca mais confortável para esticar a corda e um acordo mais distante, é das mais reveladoras de toda a sua carreira política. Num conflito com uma empresa que emprega 90% dos seus trabalhadores ao dia, optou por enviar a polícia para garantir a substituição dos grevistas e por ser porta-voz de quem não tem defesa possível, repetindo até as suas mentiras

Não há qualquer intransigência do sindicato que era de Lisboa e está a crescer noutros portos, para substituir sindicatos corruptos que ignoram os direitos dos precários e são intermediários para o trabalho à jorna. Com esses, é verdade, tem sido fácil “trabalhar”. O Sindicato dos Estivadores e Atividades Logísticas (SEAL) fez uma proposta aceitável para os 90 trabalhadores que estão em causa: que fossem integrados 56 e que os restantes tivessem prioridade na contratação ao turno (é assim que as pessoas são contratadas no porto de Setúbal – ao turno). Não era a solução ideal, mas era um compromisso. A concessionária turca, que desde este fim de semana conta com um porta-voz de luxo, optou pelo truque de tentar acabar com a greve através da divisão dos trabalhadores.

Todos estamos preocupados com as exportações e com o que acontece no porto de Setúbal. Note-se, no entanto, que a Autoeuropa, que é a maior prejudicada, não teve a leviandade de António Costa. Não tomou partido pela concessionária, que é quem tem de resolver o problema. Nem me parece que esteja satisfeita com a solução de ir abrindo, através da PSP, momentos de exceção a uma greve para garantir o embarque da sua mercadoria. E apenas da sua, o que é de legalidade duvidosa e deve levar a ministra do Mar e o ministro da Administração Interna a darem explicações ao Parlamento e ao país. Primeiro, porque a cultura desta empresa alemã não é dada a este tipo de expedientes, dignos de uma república das bananas. Depois, porque isto sai demasiado caro. A Autoeuropa quer uma solução negociada, como costuma encontrar na sua própria casa. Com esta intervenção de Costa a concessionária turca sente-se mais confortável para esticar a corda e o acordo fica mais distante. E, no entanto, o que se esperaria de um primeiro-ministro era uma pressão junto da empresa para resolver o problema. O Governo tem todos os instrumentos para isso e se o tivesse feito esta greve já tinha acabado. Preferiu pressionar a parte fraca.

Poderão dar pouca importância ao sucedido, mas esta intervenção de António Costa é das mais reveladoras de toda a sua carreira política. Num conflito entre trabalhadores e uma empresa que emprega 90% dos seus trabalhadores ao dia, o primeiro-ministro optou por enviar a polícia para garantir a substituição dos grevistas, violando o direito à greve, e por ser porta-voz de quem não tem defesa possível, repetindo as suas mentiras sem qualquer pudor. Se houve dia em que fiquei com a certeza de que o grande objetivo das próximas eleições é impedir que António Costa tenha a maioria absoluta, esse dia foi na sexta-feira. Infelizmente, ainda precisa de quem, pela força do voto, o segure à esquerda. Pelo menos nos mínimos dos mínimos.

 

A ministra fura-greves

(José Soeiro, in Expresso Diário,  23/11/2018)

soeiro

José Soeiro

(Caro António Costa. As gentes de esquerda até te tem perdoado o fervor europeísta e essa obssessão com a redução do déficit e com o cumprimento do Tratado Orçamental. Na verdade, um pequeno país como Portugal, não tem condições para desafiar isoladamente a política austeritária da União Europeia. 

Já quanto à constestação laboral que a tua ministra fez questão de torpedear e que capciosamente quiseste considerar ilegítima, não há perdão possível. 

Não basta dizeres que és contra a precariedade se és o primeiro a promovê-la. Estou infelizmente a chegar à conclusão de que, mais depressa defendes os direitos dos animais, como se viu com os touros, do que os direitos de quem trabalha, como se vê com os estivadores. É lamentável.

Comentário da Estátua, 24/11/2018)


Por estes dias, no porto de Setúbal, não se decide apenas a vida de cerca de 90 estivadores, condenados há décadas ao trabalho à jorna, sem direitos, sem proteção, sem vínculo. Ali, naquele porto, é muito mais o que está em causa. É saber que gente somos, de que lado estamos e que país queremos ser.

Há o país dos patrões da estiva, que acham que podem tudo. Que os trabalhadores são mercadoria e carne para canhão, alugados ao dia, convocados por sms, sem proteção na doença ou na maternidade, sem direito a organizar-se e a ter direitos. No país da Operestiva (a empresa detida pelo grupo turco Yildirim, que opera no porto de Setúbal), não há negociação coletiva nem Constituição. É tanta a arrogância e a sede de dominação que, para esta empresa, mais vale um porto paralisado do que fazer um contrato coletivo. Em caso de aperto, recrutam-se ao desespero uns mercenários, paga-se umas centenas de euros a um punhado de fura-greves e negoceia-se com o Governo uma manobra para esmagar quem trabalha: autocarro de vidro-escuro para esconder a cara de quem lá vai dentro, polícia de intervenção para varrer para o lado os que, de pé ou sentados no chão com os braços dados, fazem uma barreira contra a escravatura e a falta de escrúpulos. Quem defende isto não está a pensar na Auto-Europa nem apenas em Setúbal. Quer espalhar por todo o lado o paraíso dos patrões: contratos ao dia, praças de jorna e trabalhadores amordaçados, domesticados pelo medo de haver alguém que os substitua amanhã, que lhes fique com o trabalho e o salário.

Contra este país, os estivadores. Se o porto pára quando eles páram, então é porque os precários de Setúbal, trabalhadores “eventuais” há 15 ou 20 anos, são necessários. Não vale a pena inventar: um porto não funciona com 90% de trabalhadores contratados ao dia. Isso é uma mentira. Nenhuma necessidade temporária, nenhum pico de atividade, corresponde a 90% do trabalho ao longo de 20 anos. Os estivadores de Setúbal – e o seu sindicato, o SEAL – são a voz da razão contra esta fraude escancarada. Mas são mais do que isso. São, hoje, a cara de um país que acha que o direito à greve – direito com que ganhámos as 40 horas e as férias pagas, os fins de semana e a proteção na doença e no desemprego, a educação pública e o direito à associação – não é para ser evacuado da Constituição. Resistir a este modelo de precarização que tem sido testado no setor da estiva não diz respeito apenas a eles, estivadores. A unidade da estiva aponta o caminho e é uma lição. Mas isto é com todos e todas.

Finalmente, o Governo. De que lado está? Uma operação como a de ontem, com fura-greves a entrar num porto nacional, com a mobilização da polícia para proteger a manobra da Operestiva, compromete diretamente o Governo e o PS. Não há volta a dar. É sabido o argumento formal que será utilizado: não se desrespeitou nenhuma greve porque, com contratos que acabam ao fim de cada dia, estes trabalhadores não estão, formalmente, em greve. Essa habilidade jurídica é puro cinismo: a ausência de contrato é precisamente a causa da greve. No tempo em que os sindicatos eram proibidos, os trabalhadores também paravam. Não o faziam por terem contrato e direitos. Tiveram contrato e direitos porque fizeram greves nas mesmas condições em que hoje os eventuais de Setúbal fazem, contra leis e relações de trabalho que lhes negavam (e negam hoje) esse direito.

A Ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, tinha por isso uma responsabilidade: obrigar empresas e sindicato a sentar-se à mesa e promover uma solução para pôr a funcionar o porto de Setúbal, que passa necessariamente por um contrato coletivo de trabalho que acabe com a precariedade destes trabalhadores e das suas famílias, vinculando-os. E tem um poder enorme que pode e deve utilizar: o poder de retirar a licença de concessão a uma empresa que se revele incapaz de ter os trabalhadores necessários para assegurar o funcionamento do Porto.

Em vez disso, preferiu arquitetar pela calada com essas mesmas empresas uma manobra para aniquilar a luta contra a precariedade e para atropelar o direito à greve do elo mais fraco desta história: os precários que precisam daquele trabalho para comer. É um precedente muito grave para a nossa democracia, que este Governo decidiu abrir. É uma escolha repugnante para quem tenha algum apego pela democracia, pelos direitos constitucionais e por quem vive do seu trabalho – e luta pela sua dignidade.