Para além da esquerda e da direita

(António Guerreiro, in Público, 20/05/2022)

António Guerreiro

Na sua crónica da passada segunda-feira, dia 16 de Maio, neste jornal, Carmo Afonso desenvolveu o argumento de que a esquerda não encontra na guerra da Ucrânia nenhum reduto onde se possa instalar e procurar aí uma identificação política. Porquê? Porque, diz a autora, “é uma guerra entre direitas”. É louvável e até um pouco temerária esta tentativa para introduzir alguma ordem e orientação naquilo que tem sido a desorientação generalizada da esquerda (não me refiro apenas ao Partido Comunista Português), um pouco por todo o lado, na sua reacção a esta guerra e na relação com as duas partes em conflito. Mas utilizar as categorias de esquerda e direita para analisar e representar as coordenadas essenciais deste conflito é inadequado e incapaz de penetrar em zonas para as quais não serve o léxico conceptual da tradição.

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Esquerda e direita constituem, como sabemos, as categorias centrais com que identificamos as posições políticas e representamos as coordenadas essenciais da divisão social e política, na modernidade. Sabemos também que não é fácil, nem sequer possível, estabelecer um critério geral que permita distinguir, ao longo de mais de dois séculos de história povoada por muitas esquerdas e muitas direitas, o que é de esquerda e o que é de direita. Por exemplo, o conceito de Nação foi de esquerda, no Iluminismo, foi de direita, no Romantismo, e foi novamente de esquerda nos movimentos de “libertação nacional” que lutavam pela descolonização. Giddens, com a sua ideia da “terceira via”, entendeu que se devia retirar da lógica dicotómica do esquema esquerda/direita um grande número de questões contemporâneas (tais como os problemas ecológicos e as mutações na estrutura e na ordem da família), mas o que ele achou que escapava ao esquema acabou quase sempre por ser reapropriável e ser mais uma prova da persistência da famigerada dicotomia. E quando alguém se declarou antipolítico ou que não é de direita nem de esquerda, quase sempre isso foi visto como uma tentativa de denegar posições de direita, já que a direita, por princípio e por tradição, está sempre mais do lado da metapolítica (conceito que tem afinidades com o de “metafísica”) do que da política propriamente dita.

Mas há um lugar, nem o da política nem o da antipolítica, que não é apropriável pela dicotomia esquerda/direita. É uma zona que o pensamento político clássico deixa à sombra, é uma margem impensada, uma negatividade que abre um outro horizonte categorial. Esta guerra pertence a esse espaço: nem de esquerda nem de direita, mas de modo nenhum despolitizada. E é isso que a análise de Carmo Afonso não vislumbra. Ela — tal análise — revela que não conhece senão o conceito de política da modernidade e dos seus autores canónicos, que vão de uma concepção teológica da política a uma concepção puramente técnica. As ferramentas conceptuais da autora só lhe permitem concluir que se não existe “um lugar com que a esquerda se possa identificar politicamente”, então é porque tudo se passa entre a direita. Se Carmo Afonso analisasse esta guerra a partir da leitura de autores como Hermann Broch, Elias Canetti, Simone Weil, Bataille e Blanchot, e não a partir dos conceitos políticos que se tornaram um esquema formal de análise, cristalizado, encontraria uma modalidade de olhar o avesso problemático da política que seria de muita utilidade para analisar esta guerra e para fugir aos impasses a que, pelos vistos, ela conduz, sobretudo à esquerda. Cito estes autores não porque tenha chegado a eles, pelos meus próprios meios, quando percebi que de pouco serviam as categorias de direita e de esquerda para analisar tudo o que envolve esta guerra (as suas origens, as suas motivações, mas sobretudo as reacções que desencadeou nos diversos sectores políticos), mas porque são eles que estão na base da categoria do “impolítico”, a que o bem conhecido e reconhecido filósofo italiano Roberto Esposito dedicou um livro que já se tornou um clássico. O livro chama-se Categorie dell’ impolítico (1988).

O tema do impolítico (que não deve ser confundido com o antipolítico ou o apolítico) nasce da consciência de que as categorias do léxico político contemporâneo estão esgotadas ou, pelo menos, não iluminam o avesso, as zonas de sombra, a negatividade, o irrepresentável, as margens, os vazios. E este é o espaço de muita da política contemporânea. E desta guerra.



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Alterações climáticas na ecologia política

(Pacheco Pereira, in Público, 16/04/2022)

Pacheco Pereira

A direita, porque cresce, está arrogante e persecutória e a esquerda está na defensiva, moralista, encurralada e ineficaz.


As últimas eleições legislativas mostraram alterações significativas na nossa ecologia política. É como se tivessem chegado drásticas alterações climáticas que estão a mudar o nosso “tempo”. E como acontece com as outras, as do planeta, há quem queira ver e quem faça de conta que nada mudou. Elas manifestam-se em todo o espectro político, e estão interligadas: o PS tornou-se o grande partido centrista, a direita trouxe para o Parlamento a sua radicalização, e a esquerda tornou-se quase insignificante.

DR

Mantendo a minha posição de fundo, a de que conceitos como esquerda e direita não são heurísticos — porque da sua aplicação não resulta conhecimento, mas ilusão, ou, se se quiser, aquilo a que Marx chamava “ideologia” —, uso-os muitas vezes mais por comodidade do que por rigor. Mas aqui é impossível não os usar como descritores, porque, quando numa sociedade há um reforço político identitário que passa por esta dicotomia, ela não pode deixar de ser usada, mesmo que os termos sejam mais posicionais do que substanciais. Está em curso também uma radicalização identitária do espaço público, mais do que na sociedade, mas vai lá chegar. A radicalização é um processo difícil de travar, embora os seus limites sejam sempre os grandes números, os eleitores, a democracia.

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O país está centrista — veja-se a vitória do PS, de que ninguém verdadeiramente quer tirar consequências, com a ilusão de que é um partido de esquerda. Na verdade, o PS é um partido muito mais centrista do que de esquerda, e que não ganharia se não fosse assim, mas que não tem vontade nem capacidade reformista. O centro está sólido, mas imóvel e estagnado, susceptível à corrupção e ao clientelismo, mas incapaz de reformas. E como tem tempo, pior ainda.

A nova ecologia mostra que a direita radical está na ofensiva, dominando grande parte do espaço público, com uma presença na comunicação social cada vez mais significativa e que não se mede nas listas ridículas das altercações no Twitter, este é “teu” e este é “meu”. Vai mais longe e mais fundo, é uma presença de contexto que molda a direcção editorial, as escolhas de temas, de perguntas, e, claro, de pessoas. Nas redacções, nos lugares, nos apresentadores, nos comentadores residentes, conforme o seu canal e horário, nas relações com financiadores, nas parcerias com fundações e com think tanks.

A possibilidade de reformas poderia ter vindo do PSD, em aliança com o PS, mas o falhanço de Rio no PSD, que se deveu em grande parte às ambiguidades face ao Chega, acabou com essa possibilidade

A direita, porque cresce, está arrogante e persecutória e a esquerda está na defensiva, moralista, encurralada e ineficaz. O moralismo é uma espécie de defesa no último quartel. Na sua variante mais extremista, naquilo a que se chama o “politicamente correcto”, a esquerda torna-se censória e iliberal, pretendendo que o controlo das palavras lhe dá o controlo da sociedade e assumindo causas com nomes nobres, mas práticas autoritárias.

Acantona-se assim num combate cultural que acaba por ser supra-social, e que desvaloriza as causas económicas e sociais da desigualdade, da exclusão, da injustiça. O resultado é um elitismo “cultural-chic”, que grassa como uma moda, na comunicação social, nas indústrias culturais subsidiadas, na intelectualidade dos suplementos culturais, mas está a perder a competição nos jovens com a direita radical sob veste anarco-liberal, na “Burberry school of economics”, e com os adultos no populismo conservador, e de facto machista e racista, do Chega.

Noutro aspecto, a esquerda torna-se vítima de si própria, porque o moralismo em política faz o jogo da direita que tem os pecados todos, a começar pela corrupção, a fuga aos impostos, o “planeamento fiscal” que leva a riqueza ganha cá para “lá”, a indiferença e o egoísmo social, mas que é menos afectada pela sua denúncia pública, como se as pessoas achassem que isso é “normal”, expectável, como agora se diz.

O moralismo torna pecadilhos de gente da esquerda escândalos de dimensão nacional que a direita usa com sanha muito para além da sua real importância. Vejam-se os títulos e torrentes de artigos sobre a exclusividade não cumprida de Mariana Mortágua, as obras ilegais na casa de Ana Gomes ou a imaginação curricular de Raquel Varela, e não é por acaso serem todas mulheres. Fizeram asneira? Fizeram, mas o que está em causa é a proporção do ataque. A proporção ainda conta ou não? Para este tipo de combate corpo a corpo, não.

A direita aponta alvos, e desenvolve campanhas, a esquerda está manietada ou porque quer ou porque não pode. A razão é que a dinâmica política dá hoje o poder de classificar à direita radical, que aponta a alvos demasiado passivos, porque ou têm culpa ou não “assumem”, como dizem as revistas do jetset, ou ficam a um canto à espera que passe o mau tempo. Não passa.

A guerra ucraniana agravou este processo, e teve um efeito devastador à esquerda, desequilibrando ainda mais um processo que já vinha de antes. Mas isso fica para uma continuação.

O autor é colunista do PÚBLICO


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Crise na Ucrânia e fantasmas da esquerda

(Armando Fernandez Steinko, in a Viagem dos Argonautas, 15/04/2022)

A crise ucraniana está mais uma vez a confrontar a esquerda com os seus próprios fantasmas. Já aconteceu durante as crises jugoslava, líbia e síria, bem como com a esquecida guerra no Iémen. Mais uma vez, forças progressistas podem abordar problemas geopolíticos a partir de dois prismas diferentes. O primeiro é subordinando a realidade a um conjunto de postulados morais como o direito legítimo a viver em paz, à vida ou ao respeito pela integridade territorial. A segunda abordagem tenta partir da realidade e dos factos históricos para fazer avançar a realização destes postulados sobre bases empiricamente fundamentadas ou “reais”. O primeiro satisfaz-se em avaliar e contemplar a realidade, o segundo avalia-a, claro, a fim de tentar construir um mundo melhor.

A maioria das gentes de esquerda hispânica optaram pelo primeiro prisma na sua posição sobre a intervenção militar da Rússia na Ucrânia. Existem precedentes. Após uma denúncia firme e bem fundamentada da guerra no Iraque, adotou posições mais ambíguas face aos massacres cometidos na Líbia e na Síria, repetindo os argumentos humanitários defendidos pelas potências ocidentais. Na crise da Ucrânia, o alinhamento acrítico de muitos com os argumentos da NATO é quase total. A construção de uma “certa quantidade de inimigo apropriado” (Nils Christie) que conhecemos da criminologia, deu frutos na figura de Vladimir Putin e a atualização da história do “urso russo”, uma velha narrativa geopolítica forjada pelo Reino Unido nos anos do seu imperialismo mais exacerbado, e que tem continuado a sustentar a sua política externa em relação à Rússia desde os finais do século XIX.

Mas se explorarmos os antecedentes da situação, se formos capazes de nos colocarmos no lugar do outro, veremos que o principal pecado de Vladimir Putin reside em ter tirado o seu país da condição de estado fracassado em que Boris Ieltsin o tinha lançado, que as suas posições são essencialmente defensivas e preventivas, embora, como país muito grande que é, a sua política afete muitos territórios, embora todos situados perto das suas fronteiras. Uma análise superficial dos arquivos dos jornais revela a insistência persistente de Putin nos últimos vinte anos na necessidade de todos os países influentes respeitarem a legalidade internacional. Que só através da construção de uma ordem internacional multipolar que não contemple o monopólio de um país – e dos que lhe são afins – na definição dos critérios políticos, militares e económicos em vigor poderá ser criada uma comunidade internacional de paz. Só respeitando o direito de todos os países a viver em segurança se pode evitar a vandalização do mundo. Putin insistiu – por exemplo, na conferência de segurança de Munique, em 2007 – na importância de estes argumentos não serem afogados em protocolos formais, palavras bonitas e palmaditas nas costas, mas sim levados a sério, pois a possibilidade de criar uma ordem internacional civilizada dependia deles. Ele estava a fazer uma proposta concreta, realista e construtiva que permitia que a moralidade e as boas ideias fossem apoiadas por um roteiro que poderia ser construído multilateralmente e não por meras declarações retóricas e bem intencionadas destinadas a tranquilizar a opinião pública. O escárnio destas propostas pelas elites ocidentais, especialmente os americanos – “ele parece uma criança arrogante que quer o seu velho brinquedo de volta” – também pode ser facilmente encontrado nos arquivos dos jornais: foram atos de irresponsabilidade coletiva imperdoável por parte não poucos países ocidentais.

O que Putin – e não só ele mas também a liderança chinesa e o conjunto dos países BRICS – estava a propor é um convite a toda a comunidade internacional para que nenhum poder – nem os EUA nem qualquer outro, incluindo a própria Rússia – pudesse impor os seus critérios morais, militares, económicos e políticos ao resto, em suma, uma ordem internacional multilateral. Isto inclui o direito de todos os países a viverem sem ameaça nuclear.

As exigências da Rússia são ainda mais legítimas, se possível, do que as de outros países, pois foi invadida várias vezes pelo Ocidente e da última vez perdeu mais de 25 milhões dos seus habitantes. A ameaça não é uma questão do passado, pois os construtores dos novos “inimigos apropriados” continuam a trabalhar para reanimar os velhos inimigos, e os esquadrões nazis, cujo principal inimigo histórico é a Rússia, comandam agora uma parte significativa dos batalhões do exército ucraniano, armado há algum tempo por países ocidentais nas costas da sua própria opinião pública.

Os países da NATO reservam para si próprios o direito de viver sem ameaças nucleares. Criticam severamente a Rússia por se imiscuir nos assuntos internos de países terceiros. Provocam mudanças de fronteiras sem respeitar a legalidade internacional ao reconhecer a separação do Kosovo do território da Sérvia em 2008. Bombardeiam países sem o apoio das Nações Unidas como aconteceu com a Sérvia, Líbia ou Iraque, de facto quase de todos os anos desde 1999. Legalizam grupos nazis nos seus territórios e criticam as políticas de normalização etno-linguística quando estas ocorrem num território da NATO como a Espanha. No entanto, não reconhecem os mesmos direitos à Rússia: consideram inaceitáveis as mudanças fronteiriças da Rússia na Crimeia após o golpe de Maidan, financiam esquadrões neonazis para os utilizar contra Moscovo, e assim por diante. Muitos progressistas ocidentais preferem não tomar nota de tudo isto: do facto de a NATO estar a aproximar as suas fronteiras de Moscovo há mais de 27 anos, das intermináveis queixas, apelos, declarações diplomáticas e pedidos de compreensão com que a diplomacia russa tem respondido a esta estratégia aparentemente inocente na forma mas profundamente agressiva na intenção? É possível adotar uma posição moral sem ter em conta estes factos?

Pois os factos são que a intransigência e a agressividade ocidental na sua tentativa de separar a Ucrânia primeiro culturalmente, depois afetiva, económica e politicamente da Rússia, não pode ser questionada. A Ucrânia é um país linguisticamente dividido e, durante a Segunda Guerra Mundial, houve um confronto civil entre as duas comunidades. A parte ocidental – originalmente ligada ao Império Austro-Húngaro, agrícola, com pouca tradição nacional e de língua ucraniana – apoiou maioritariamente os invasores alemães. A segunda – industrial, estreitamente ligada à Rússia durante séculos – apoiou e lutou do lado do seu vizinho russo do norte. O conflito linguístico foi razoavelmente resolvido durante décadas com a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, mas o golpe de estado de Maidan de 2014 reavivou-o ao servir para alienar a Ucrânia da Rússia com o objetivo final de a trazer para a NATO. O golpe não foi apenas apoiado pelo sector pró-ocidental dos profissionais urbanos do país, como sugerido pelos meios de comunicação social ocidentais. Também e acima de tudo, contou com os esquadrões neo-nazis que forneceram manifestantes e agitação armada em Kiev. Estes últimos foram também responsáveis pela perseguição dos militantes de esquerda até ao extermínio em alguns locais, como foi o caso na casa sindical de Odessa. São também responsáveis pela atual guerra contra as províncias de Donetsk e Luhansk, que, tal como a Crimeia, querem separar-se da Ucrânia devido à elevada concentração de pessoas falantes do russo após a rutura do consenso em 2014. A estrutura atual do exército ucraniano também depende deles, uma vez que atuam como comissários políticos para evitar deserções. A guerra em Donetsk e Luhansk é uma guerra em solo europeu e dura há muitos anos, uma guerra que não tem preocupado demasiado alguns da esquerda, apesar de já ter custado mais de 13.000 vidas, principalmente civis.

Mas porquê tanto alarido sobre a Ucrânia e nenhum sobre os Estados Bálticos? O mais influente geo-estratégico e arquitecto americano do alargamento da NATO para Leste, Zbigniew Brzezinski, responde a esta pergunta [1]: “uma Rússia que possa manter o controlo sobre a Ucrânia ainda poderia continuar a tentar tornar-se um império eurasiático, sem a Ucrânia este objetivo é irrealizável“. Esta interpretação imperialista da política externa russa, que se liga à teoria do insaciável urso russo, sempre foi cultivada pelas diplomacias britânica e norte-americana, sem dúvida as mais imperialistas do mundo desde 1800. Só recentemente foi substituída pela do novo “inimigo apropriado” chinês, embora as semelhanças entre os dois sejam muito fortes. Brzezinski continuou em 1997: “em algum tempo entre 2005 e 2010, a Ucrânia ter-se-ia aproximado o suficiente do Ocidente para iniciar as negociações de adesão à OTAN” (tradução própria da versão alemã).

Ambas as declarações do geo-estratega norte-americano contêm a chave do conflito: as necessidades de segurança mais essenciais da Rússia dependem da neutralidade da Ucrânia. Por duas razões. 1.) porque o estacionamento de ogivas nucleares no seu território ameaçaria diretamente Moscovo. É comparável ao estabelecimento de armas nucleares no Canadá apontadas a Washington; e 2) Porque a faixa territorial ucraniana é o que historicamente tem dado à Rússia a “profundidade estratégica” – assim se expressa em linguagem militar – que lhe tem permitido defender-se contra os invasores e ainda hoje se encontra plenamente em vigor para a segurança da Rússia. Isto significa, falando sem rodeios, que a adesão da Ucrânia à NATO é incompatível com os direitos de segurança mais básicos da Rússia. E mais uma coisa: o guião e os antecedentes da intervenção na Ucrânia devem ser procurados em Washington e não em Moscovo.

Mas não tem o governo ucraniano o direito de decidir se quer ou não aderir a um bloco militar? Não pode cada país decidir a que aliança aderir e como fazê-lo?

O próprio liberalismo político demonstrou que a liberdade individual termina onde conduz a uma erosão da liberdade da outra parte. Traduzido em direito internacional nos tratados internacionais, este princípio significa que os países não têm o direito de aumentar a sua própria segurança à custa dos seus vizinhos. Assim, por exemplo, a Carta de Paris, assinada por todos os países ocidentais, a URSS e a Jugoslávia em 1990, declara: “A segurança é indivisível e a segurança de cada Estado participante está inseparavelmente ligada à de todos os outros” (ver aqui). É o princípio mais importante para garantir a paz e prevenir guerras após as lições da Segunda Guerra Mundial: a atribuição uns aos outros dos mesmos direitos de segurança que cada país reivindica legitimamente para si próprio.

Qual é a resposta de muitos progressistas aos acontecimentos na Ucrânia? A resposta tem sido tomar uma posição contra ambos os lados. Parece ser uma posição incontestável, uma vez que se baseia na exigência de que os mesmos princípios sejam aplicados igualmente a todos, uma resposta totalmente compatível com o espírito da Carta de Paris e também com os argumentos que a diplomacia russa vem defendendo há quase vinte anos: desde Sochi, ao Clube Waldai, passando pelas sucessivas conferências de segurança de Munique em que tem participado desde 2007.

Mas o que acontece se um lado não respeitar este princípio, se zombar – literalmente – do outro lado, se considerar os argumentos da Rússia como a birra de uma criança que não pode aceitar o facto de já não ter uma palavra a dizer na arena internacional? O que é que a parte ameaçada pelo persistente incumprimento do outro lado deve fazer? Quanto tempo é que a parte ameaçada existencialmente tem de ficar sem nada fazer enquanto esse incumprimento corrói as suas necessidades de segurança mais essenciais? Quanto tempo tiveram as potências ocidentais de esperar enquanto Hitler intervinha na guerra em Espanha e anexava a Áustria e os Sudetas?

É aqui que entra a parte incómoda da questão, a parte que muitos progressistas preferem não enfrentar desde a harmonia dos argumentos morais livres de realidades factuais e outras sujidades desconfortáveis. Ignorar, fingir que uma série de coisas não aconteceram, banalizar a sequência histórica dos acontecimentos para voltar a juntar os argumentos dos bons e doa maus, sonhar que a moralidade é suficientemente forte para combater a guerra “de uns e de outros” é, sem dúvida, a posição mais confortável e impecável. Mas se os argumentos, queixas, petições, avisos, conversações e conferências não levam a lado nenhum, se a resposta da parte ameaçada for “isto é até onde chegámos”, então os neutros levam as mãos à cabeça: “somos a favor do direito internacional e é culpa da Rússia a sua violação!” A sua posição perde a sua inocência, eles não queriam intervir, mas agora fazem-no. Fazem-no assumindo de facto a narrativa do verdadeiro agressor.

Não vale a pena esquivarmo-nos à questão principal, que é aquela que estamos aqui a tentar esboçar. Afirmar, por exemplo, que o conflito se baseia numa tentativa de obter as matérias-primas adormecidas em solo ucraniano, ou que tudo está a ser girado pelo diabólico Vladimir Putin, é uma escapatória moral para evitar sujar as mãos. Quando os EUA intervieram no Iraque, o argumento do “petróleo” foi de facto muito importante. Contudo, não foi o único na altura, como alguns progressistas argumentaram, repetindo os argumentos próprios de um materialismo vulgar que os desacredita bastante. A política interna e externa em geral tem uma autonomia própria, uma autonomia que requer a injeção de complexidade na análise, o que limita o poder explicativo de razões “económicas” baseadas no valor futuro das matérias-primas ou razões “psicológicas” baseadas no carácter corrosivo do “Sr. Putin”. Se se quiser compreender a situação na Ucrânia, é preciso ler Brzezinksi, rever os arquivos dos jornais e os próprios argumentos da diplomacia russa tornados públicos ad nauseam durante os últimos 20 anos: não há mistério nenhum, tudo está lá para quem quer compreender.

É necessário protestar contra a guerra, mas é pelo menos igualmente importante protestar contra as políticas que a provocam, porque se não desaparecerem, as guerras voltarão a acontecer. Isto significa identificar a natureza ofensiva da NATO hoje em dia e opor-se-lhe, como fizemos na década de 1980, quando deu o primeiro passo para quebrar a paridade militar e fazer colapsar economicamente a URSS: foi a NATO que causou então e causou agora esta situação e não há nada que nos permita afirmar que não causará outras semelhantes no futuro se não a travarmos. As incursões agressivas dos EUA nos mares do Pacífico para “conter” a China explicam o surpreendente apoio incondicional do seu governo à resposta da Rússia na Crimeia, e a cadeia de bases militares dos EUA em torno do território russo não poderia ser mais eloquente para quem quer compreender. Quantas bases russas rodeiam os EUA? Nenhuma. A diferença entre querer a paz e fazer o que é possível para que ela aconteça passa por determinar as causas da guerra, definir realisticamente os atores que estão a destruir a paz e as suas motivações para o fazer. São esses atores e essas motivações que são o principal inimigo do pacifismo.

O que está a acontecer na Ucrânia mostra, em todo o caso, que não estamos no fim da história, como Brzezinksi, Fukuyama & Co. pensavam, mas sim no início de uma nova parte da mesma. Se esta parte é unilateral ou multilateral é uma questão existencial para a humanidade, e perdoem-nos se nos tornamos patéticos.

Primeiro, porque não haverá justiça e paz sustentáveis se uma potência mundial pensar que pode impor o seu universo a todas as outras. Segundo, porque só conseguiremos salvar o planeta com base num consenso global que impeça aqueles que mais poluem de externalizar o custo do seu modo de vida para aqueles que não têm poder para impor o seu julgamento. E terceiro, porque a justiça Norte-Sul é incompatível com a capacidade de um país impor os seus critérios, a sua moeda, a sua economia, o seu modo de vida, etc., aos restantes. O multilateralismo e a sua defesa são a argamassa que permitirá à humanidade enfrentar as crises que a assolam ao mesmo tempo: a ambiental, a social, a financeira, etc.

O século XXI com as suas guerras híbridas e invasões humanitárias mostra-nos como se estão a tornar complexos termos como “violência”, “humanitarismo”, “guerra” ou “paz”, sendo este último termo utilizado como slogan por alguns governos enquanto se preparam ativamente para impor os seus critérios aos seus oponentes, utilizando a violência se não os aceitarem. O pacifismo não prevalecerá se não aprender a identificar os significados que todas estas palavras podem assumir, a explorar as causas dos conflitos sem recorrer a narrativas do bem e do mal, àqueles “inimigos apropriados” que tornam as coisas tão fáceis no plano moral. Não é necessário partilhar as políticas dos governos ou líderes dentro dos seus próprios países para os apoiar quando abraçam causas que dão descanso àqueles que sempre foram subjugados, ignorados e espezinhados, quando abraçam a causa do multilateralismo. Também não é necessário identificar-se com o socialismo soviético para reconhecer o benefício que trouxe aos desfavorecidos dentro e fora dos países ocidentais, a fim de saudar a existência de um equilíbrio de poder no mundo. O mundo será diferente depois da Ucrânia 2022, mas só será melhor do que é hoje se o multilateralismo prevalecer.


Notas

[1] El gran tablero mundial. La supremacía estadounidense y sus imperativos geoestratégicos. Barcelona: Paidós


O autor: Armando Fernandez Steinko [1960-] é investigador, ensaísta e docente titular de Sociologia na Universidade Complutense de Madrid. Além da agricultura biológica, trabalha também profissionalmente nos campos da história, sociologia e economia política. As suas publicações mais recentes são Las pistas falsas del crimen organizado e El blanqueo de capitales en España: juicios, prejuicios y realidad. É um colaborador regular das revistas Sozialismus (Hamburgo) e El Viejo Topo.


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