O Estado de Direito existe na Europa, ou o Zelenski já o mandou enterrar?

(Carlos Matos Gomes, Facebook, 07/07/2022)

A lei é uma coisa com forma de assim. Isto é, pode ser assim ou assado. A maioria dos que se dizem adeptos do Estado de Direito, afinal são adeptos da ordem jurídica de os fins justificarem os meios. E os liberais são adeptos da forte intervenção do Estado sempre que as suas convicções entram em conflito com os seus interesses e abdicam do seu individualismo e de direitos fundamentais sempre que lhes convém.

Vem esta comparação da atual argumentação do discurso dominante sobre o Bem e o Mal a um casino clandestino a propósito do papel das federações desportivas na guerra da Ucrânia. Descobri, ao procurar outro assunto na NET, que, afinal as federações desportivas são organismos do Estado, sujeitas às determinações dos governos. As Federações Desportivas são unidades de combate das sanções dos governos (mesmo a da pesca à linha)!

Descobri que os estatutos das federações desportivas são uma falácia, ou uma farsa.

Comecei por ler que, de acordo com as sanções económicas dos governos ocidentais – ditos liberais e estados de direito –, a Rússia e a Bielorrússia tinham sido excluídas de, entre outros eventos desportivos, das Olimpíadas de Verão e Inverno, mais as dos Paralímpicos, organizadas pelo Comité Olímpico Internacional, mais ainda do Campeonato do Mundo de Futebol e até da Surdo Olimpíada (existe!) a realizar em Caxias e Farroupilha, no Brasil, e ainda do campeonato de bowling a realizar no Parque da Festa da Uva, também no Brasil!

A minha questão não é o de uma federação ou confederação excluir um membro de uma competição, a minha questão é a de que as federações desportivas que o fazem obedecem a ordens dos seus governos, contrariando os estatutos que as Federações aprovaram e que os governos aprovaram nos seus Diários ou Jornais Oficiais.

No caso português, o estatuto das federações desportivas está regulado pelo Decreto-Lei n.º 144/93, de 26 de Abril, que estabelece o regime jurídico das federações desportivas dotadas do estatuto de utilidade pública desportiva.

Do preâmbulo: Definidas como associações de direito privado sem fins lucrativos, as federações dotadas de utilidade pública desportiva exercem em exclusivo poderes de natureza pública inscritos na lei. Desta sorte, garantida a sua independência face ao Estado, o presente diploma assegura a liberdade da sua organização associativa, respeitados os princípios democráticos e de representatividade.

No Artigo 3.º é definido o Regime jurídico:

Às federações desportivas é aplicável o disposto no presente diploma e, subsidiariamente, o regime jurídico das associações de direito privado.

Artigo 4.º

Princípios de organização e funcionamento

1 – As federações desportivas organizam-se e prosseguem as suas atividades de acordo com os princípios da liberdade, da democraticidade e da representatividade.

2 – As federações desportivas são independentes do Estado, dos partidos políticos e das instituições religiosas.

Ninguém, liberal ou socialista, jurista ou apenas cidadão – incluindo o insigne professor de Direito Marcelo Rebelo de Sousa – teve um momento para se interrogar sobre esta intervenção do Estado na livre organização dos cidadãos? Os diretores e agentes desportivos são funcionários do Estado? São funcionários públicos? As federações são repartições? Os liberais dos vários partidos, do PS, da Iniciativa Liberal e do Chega, e os não liberais do BE e do PCP estão de acordo com este Estado que já foi corporativo e agora é desportivo? E os constitucionalistas? E os comentadores de TV? A transmissão de eventos desportivos é tempo de antena?

Na verdade, vivemos num mundo de circunstâncias, pelo que parece ser uma hipocrisia algum dos intervenientes invocar princípios ou valores.


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Quando todos formos estrangeiros…

(António Guerreiro, in Público, 13/08/2021)

António Guerreiro

De que espécie são os portugueses que ganharam medalhas nos Jogos Olímpicos de Tóquio? Esta questão formula os termos de uma discussão bastante difundida e ainda em curso no espaço público (em boa verdade, não só em Portugal). Nalguns momentos mais incisivos nos domínios da teoria política, a discussão até permitiu que se definisse o conceito de Nação e Estado-nação. E, sobre esta matéria, cada um mobiliza o autor que mais lhe agrada, ou o único que leu, e emite uma sentença pretensamente definitiva. Fica por dizer que não há conceito mais maleável e disponível para quase todos os gostos e ideologias que o conceito de Nação; e que são tão diferentes os modos como tem sido abordado e definido que, tentando uma síntese, só subsistem alguns pontos genéricos comuns: 1) na sua acepção política, a forma nacional é recente; 2) o conceito que a designa, não sendo muito claro e dependendo dos contextos culturais, tem permitido amálgamas e confusões com os conceitos de Pátria, Estado, Povo e — como acontece em França — República (a qual funda um conceito de nacionalidade baseado no pacto constitucional que prescreve um quadro de direitos e deveres igual para todos os cidadãos); 3) Sempre que se representa uma Nação na sua plenitude simbólica, edificando aquilo a que Benedict Anderson chamou “comunidade imaginada”, triunfa a estetização da política e as suas argúcias ideológicas.

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Os mais puristas nesta questão da pertença nacional recorrem ao aspecto étnico-genealógico do conceito, isto é, ao princípio da natividade que o conceito transporta na sua etimologia: o temo latino natio deriva do particípio do verbo nascor; daí a contiguidade semântica entre “nacionalidade” e pertença de sangue. Os menos puristas e que até abjuram publicamente o nacionalismo (alguns dos quais resolvem o assunto dizendo-se patriotas — isso sim, uma virtude a cultivar) não querem que a inscrição no Estado-nação seja baseada num direito adquirido por laços de sangue (ius sanguinis), nem sequer no lugar do nascimento (o ius soli), mas num contrato de cidadania. Aqueles que adquirem a nacionalidade portuguesa (mas certamente que o mesmo se passa com outras “nacionalidades) ficam submetidos aos mesmos deveres e gozam dos mesmos direitos que todos os outros portugueses. Mas ficam vinculados a uma restrição tácita: não podem vacilar no seu nacionalismo e têm de mostrar uma gratidão incondicional pelo país que lhes ofereceu o direito de cidadania. Neste aspecto, dando provas de que entenderam o contrato e o respeitam, todos acabam por ter um discurso parecido ao daquele judeu assimilado que Hannah Arendt, num texto de 1943, em inglês, chamado We refugees, retratou desta maneira: o sr. Cohen foi sucessivamente alemão a 150%, vienense a 150% e depois francês também a 150%. Ora, os triunfos olímpicos (ou noutros domínios) destes portugueses a 150% dão origem a manifestações públicas, como aquelas a que agora assistimos, assim resumíveis: os que só lhes conferem um teor de portugalidade de 50%, ou ainda menos, e por isso falam em nome de um “genuíno” nacionalismo, da ordem do incomensurável e do sublime; e os que os reconhecem como cidadãos portugueses a 150% e, por conseguinte, encontram neles motivo para atingirem esse nível de nacionalismo explosivo (100% de teor português sem aditivos, mais 50% de português moderno, cosmopolita, que compreendeu plenamente a revolução multi-étnica e sabe que o “nós” já não tem o mesmo significado de outrora). Os primeiros são nacionalistas irredutíveis; os segundos são nacionalistas que não ousam dizer o seu nome. Uns e outros não conseguem pensar fora destes pressupostos identitários.

É verdade que, no que diz respeito aos Jogos Olímpicos, toda a competição se baseia na pertença nacional e nenhum atleta chega lá numa condição de singularidade, não é possível vê-lo como exemplo de comunidade sem pressupostos. Mas quem quer combater os defensores da Nação “genuína” não pode cair na armadilha do português a 150%, precisa de fazer mais um esforço. Talvez deva começar por recitar com convicção um verso do poeta italiano Francesco Nappo que alguém um dia grafitou numa parede em Veneza “A pátria será quando todos formos estrangeiros”.



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Alcochete

(Ferreira Fernandes, in Diário de Notícias, 16/05/2018)

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Quando as estações televisivas fazem longos diretos com os borra-botas em coluna fascista atravessando a cidade à ida e vinda de um jogo de futebol. Quando se mandam polícias pastorear borra-botas pela cidade. Quando os líderes dos clubes são boquirrotos.

Quando as capas de jornais desportivos privilegiam as palavras dos boquirrotos em vez do rasgo corrido de Gelson. Quando colunistas de jornais aceitam mostrar-se indigentes, já que o assunto é, julgam eles, só de camisola e emblema. Quando essa arte e ciência que encanta miúdos e velhos é comentada em prime time por tipos talvez de meia-idade e certamente com um terço de inteligência. Quando, com muito share, insultos recíprocos são trocados por gente paga, cara e cara separadas por um palmo mas nunca havendo um gesto honrado que desagrave os desaforos lançados nos perdigotos. Quando as assembleias gerais presididas por bombeiros incendiários têm mais destaque do que o ato luminoso do Perdigão, do Desportivo de Chaves, a cuidar de uma bola. Quando os talentosos Paulinho, do Braga, e o Rafa, do Portimonense, são menos conhecidos do que o Pedro Guerra e o Francisco J. Marques, cujas conversetas têm o dom de tornar a alma dos adeptos mais pequena. Quando se vandaliza em grupo uma estação de serviço e já nem se noticia porque o autocarro dos gatunos e brutos vai a caminho de um estádio… Então, quando tantos miseráveis quandos se acumulam, arriscamo-nos a ver um admirável, forte e grande Bas Dost ferido e com uma lágrima por nós todos.