(Por Joseph Praetorius, in Facebook, 18/03/2017)

Joseph Praetorius
Tendo publicado aqui um texto de Clara Ferreira Alves, ele deu origem ao comentário que segue. Por considerar que algumas questões que o autor levanta, a propósito do referido texto, merecem ampla reflexão e debate, decidi divulgá-lo em jeito de complemento. É sempre difícil dizer se o copo está meio cheio ou meio vazio. (Estátua de Sal, 18/03/2017)
Nada deixou completamente de ser assim, embora haja medidas de cosmética, passou a haver fruta sem cheiro e sem gosto e a carne transformou-se – como o frango e a galinha – em alimento barato (e nocivo), como o peixe de viveiro, aliás. Nem assim a fome desapareceu, confrontando directores escolares com os respectivos surtos e a necessidade de servir refeições grátis. A sopa do Sidónio reabriu, aliás.
O direito de pernada do patrão mantém-se (alargado ao director) e o carro próprio democratizou-se para se poder cobrar o imposto sobre combustíveis (para o que se tornaram os transportes urbanos em coisa impossível de assegurar seja o que for).
Não é precisa polícia política, o Ministério Publico trata disso com os processos de injúria e difamação e a submissão é assegurada pelo “novo tipo” da “resistência e coacção de funcionário” por milagre do qual um cidadão normal corre o risco de cinco anos de cárcere – com prisão preventiva, sendo disso caso – por discordar com veemência de um polícia de trânsito, ou por ter ido a uma manifestação.
O serviço nacional de saúde poupou vidas, sobretudo as das crianças, mas os serviços sociais e os tribunais policiam os costumes nas maternidades e podem sacar as crianças logo após o parto às mães adolescentes cujas famílias não tiveram o discernimento de as irem pôr num Hospital Público de Badajoz. Já não se é puta inelutavelmente por falta de estatuto profissional, agora também se é puta apesar do estatuto profissional, muito embora os asilos de infância desvalida – hoje chamados colégios ou residências – sejam inseparáveis dos rumores de esterilização forçada de raparigas que esses asilos destinam à prostituição. O serviço nacional de saúde, aliás, é mal olhado, acham-no dispendioso e cortam-lhe medicamentos. Um velho hospitalizado corre risco iminente de vida, como um doente crónico.
Hoje já não se vai para África de onde se rememoram coisas crudelíssimas, mas também a liberalidade da vida que a classe dos remediados nunca tinha experimentado (e não voltará a experimentar), nessa África havia também o fenómeno do opositor com mãos livres.Almeida Santos, por exemplo, fez fortuna ali. E ali havia também o juiz de parâmetros republicanos de conduta com quem o regime não queria indispor-se na Metrópole e ali o colocava.
Mas o que me intriga, o que me fascina, realmente, de entre as produções do salazarismo são os democratas que ele pariu e fazem profissão de lhe lembrar “os favores” indecorosos e o provincianismo de tudo que decorreria do “orgulhosamente sós”. A vida da Ialves está isenta de favores? são mais decorosos os favores de que beneficia? São menos provincianos? Na verdade, Lisboa nunca foi tão provinciana, nem o país alguma vez foi tão desinteressante. As livrarias fecham.O próprio teatro popular está praticamente extinto, e todas as multinacionais se dispensam de ter direcções em Lisboa, centralizando-as em Madrid. Até o comando ibero-atlântico da OTAN mudou de sítio.
Gosto desses democratas – de que a madam’Ialves é um ícone – que reduzem a realidade da História contemporânea à sua própria experiência. A madam’Ialves não faz a menor ideia do que foi viver em Lourenço Marques ou em Luanda, parece. Nem sequer do impacto que tiveram aqui as universidades de lá, por exemplo. E portanto a madam’Ialves não faz ideia da portugalidade a que se refere o Miguel Castelo Branco e que é aquela que ele foi encontrando, por exemplo no extremo oriente, onde comunidades completamente ignoradas pelas ialves deste mundo preservam e querem preservar a tradição portuguesa a que se reportam. às vezes em países onde o Português foi língua franca e onde a presença portuguesa está completamente isenta de qualquer realidade colonial.