Costa quer preparar uma crise política?

(Daniel Oliveira, in Expresso, 05/04/2021)

Daniel Oliveira

Costa sabe que, logo depois da pandemia abrandar, será o momento ideal para uma clarificação política. E que governar em minoria, com uma crise social e económica em mãos, será muito difícil. E é possível que acredite que um chumbo do Orçamento de 2022 lhe pode oferecer a oportunidade de secar os partidos à esquerda e ir a votos com a direita em crise. Ou que esse risco sirva para uma aprovação sem cedências. Marcelo não quer uma crise num momento em que a direita não está preparada para ser alternativa.


Marcelo Rebelo de Sousa não podia ter sido mais claro na resposta ao Governo. Que já salvou orçamentos com mais despesa do que receita porque achava que este não era o tempo para crises políticas. Que o fez o mesmo agora, pensando na estabilidade política e na necessidade evidente destes apoios sociais. Mas, acima de tudo, que o fez a pensar nos próximos meses ou mesmo até ao fim da legislatura. Explicando que “o Presidente é mais do que um professor de Direito” – por isso é eleito –, Marcelo deu a chave para a sua atitude, dizendo que se tratou de uma “salvação preventiva do próximo Orçamento de Estado”.

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Antes das eleições avisei (muitos outros o fizeram, aliás) que Marcelo estaria empenhado em contribuir para que se reconstruísse uma alternativa à direita. Devo dizer que esse empenho não só não me repugna, como me parece indispensável, mesmo que o Presidente fosse de esquerda. Não há democracia sem alternativas. Mas para que essa alternativa se construa precisa de tempo. E, com a crise que aí vem, o tempo tenderá a jogar contra António Costa.

Concedo que estou a fazer um exercício arriscado. São, de alguma forma, processos de intenções não declaradas pelos vários atores políticos. Mas parece-me plausível que António Costa saiba que o momento da pandemia é positivo para ele. Tem sido muitas vezes referido o efeito “rally ‘round the flag”, que faz com que, em momentos de crises internacionais ou guerras, seja habitual um aumento no apoio aos governos em exercício, de curto prazo. É um instinto de sobrevivência coletiva e de busca de segurança. Costa sabe que vive esse momento, como atestam os seus índices de popularidade mesmo quando a crise se agudiza. E que o momento ideal para uma clarificação política será logo depois da pandemia abrandar, provavelmente logo depois do debate do próximo Orçamento de Estado.

Olho para a crise artificial criada pela alteração dos apoios sociais com esta hipótese em cima da mesa. Como ficou claro pelas declarações de João Leão, não será necessário um Orçamento Retificativo para acomodar este aumento da despesa. Como ficou claro por todo o debate, a fórmula de cálculo dos apoios sociais para trabalhadores independentes e sócios gerentes, mantendo a comparação com os rendimentos nos 12 meses anteriores (e passando a ter como referência um período já pandémico e com confinamentos), correspondia a um corte nos apoios quando a situação está a piorar. A possibilidade orçamental de corresponder a uma necessidade social teria aconselhado o Governo a ter atendido os protestos da oposição e a ter negociado uma solução. António Costa preferiu concentrar-se na questão constitucional, mas há uma questão política que lhe é prévia. E todos os sinais, incluindo o recurso legiítimo, mas inconsequente do ponto de vista orçamental, ao Tribunal Constitucional, apontam para a vontade de alimentar a incomunicabilidade com a oposição, alimentando uma escalada de hostilidade. Marcelo percebeu-o e tenta anular a estratégia.

António Costa percebe que governar em minoria depois da emergência da pandemia, com uma crise social e económica em mãos, será muito difícil. Sabe que ele próprio fechou as portas, logo depois das eleições, a um entendimento permanente com base em acordos escritos que lhe desse a tal maioria. E é possível que acredite que um chumbo de Orçamento de Estado para 2022, num momento ainda próximo da pandemia, lhe pode oferecer a oportunidade de secar os partidos à sua esquerda e ir a votos com a direita em crise. Ou que esse risco sirva para uma aprovação do Orçamento sem cedências ou negociações. Já Marcelo é explícito: não quer uma crise num momento em que a direita não está preparada para ser alternativa.

Aceitando esta tese, que é obviamente discutível, cada um terá a sua opinião sobre a justeza das estratégias de Costa e de Marcelo. O que não faz sentido é acreditar que é a norma-travão que está realmente de causa. É bem mais (ou bem menos, conforme o ponto de vista) do que isso.


Ainda há vida além do Orçamento

(Francisco Louçã, in Expresso, 27/11/2020)

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Quando escrevo estas linhas, ainda não se conhecem as votações finais do Orçamento. Mas parece evidente que o Governo tem maioria para o aprovar, mesmo que a sua fragilidade tenha estimulado uma catadupa de alterações cuja coerência é nula e cuja aplicação será episódica, preservando a condição de Costa: só se mexe no que for provisório, o que for estrutural é recusado. Em todo o caso, vale a pena perguntarmo-nos sobre a vida que vem depois deste Orçamento de manta de retalhos.

CRISE POLÍTICA NÃO HÁ, MAS HAVERÁ

Era óbvio desde há semanas que o Governo não tinha condições para precipitar uma crise. É certo que não foi sempre isso o que prometeu. Numa entrevista ao Expresso a 21 de agosto, o primeiro-ministro jurou a demissão se não tivesse maioria orçamental. Em setembro ainda andou pelas bocas do mundo a hipótese de forçar uma dissolução do Parlamento para eleições no Natal, ideia que o Presidente terá destroçado de uma penada. Em todo o caso, a ameaça durou menos de dois meses, e o próprio primeiro-ministro deu o dito por não dito e, a 19 de outubro, garantiu que “não viro as costas”. A jogada seria demasiado arriscada, ficando um Governo de gestão pendurado durante muitos meses e nem sendo certo que o Presidente aceitasse a inevitabilidade de eleições.

Desde então, os ministros anunciam e desanunciam intermitentemente uma crise, que se tornou uma espécie de bordão ocasional. O facto é que não haverá crise política neste inverno. Mas, como já conhece a forma como o Governo gere a coisa, percebeu que a ânsia de um terramoto salvífico está inscrita nas estrelas desde a noite daquele domingo de outubro de 2019, quando as televisões anteciparam o resultado eleitoral e confirmaram que o PS não tinha maioria absoluta. Por isso, o Governo preparará uma crise no fim de 2021, logo depois das autárquicas, se o puder fazer. Não é defeito, é feitio.

UM ANO DE ORDEM OU DE DESORDEM?

Tudo adiado por um ano, então. O problema é que o tempo é um padrasto amargo e não corre a favor desse jogo. A primeira razão funesta é a aproximação entre o PSD e o Chega, que Rui Rio abençoou na primeira ocasião. Em consequência, deixou de haver espaço para o bloco central e, se vai a eleições neste preparo, a direita ‘cheguificada’ fica incapaz de disputar a vitória. Entretanto, a vítima colateral é o PS, que, sempre longe da maioria absoluta, só poderá governar se fizer um acordo com a esquerda. Tudo o que recusou agora vai entrar pela porta principal. Pode provocar uma crise em 2021, que só volta a esta casa de partida.

Na verdade, o PS não cedeu agora em nenhuma das propostas essenciais da esquerda, mas já admite que terá de as negociar. Um exemplo é a constituição de carreiras de profissionais de saúde, a única forma de os ir buscar ao privado. A resposta até hoje foi que nunca isso acontecerá, mas também esta semana apareceu a promessa de se pensar no assunto, naturalmente desde que nada se faça para já. Outro é o caso das leis laborais. Na entrevista da semana passada a este jornal, Ana Catarina Mendes foi taxativa: “O PS tinha dito que [essas leis] não são para mexer, porque a legislação do trabalho não pode ser mexida todos os dias.” O “todos os dias” é aqui uma graça, algumas das medidas em causa têm 17 e outras 8 anos. Mas, no Parlamento, o PS já prometeu abrir a porta a mudanças nalgum dia, porventura esperando minimizá-las. Só que o desemprego e a falta de médicos vão ser cruéis para este tabu em cada dia de 2021, e não vejo como o PS governará no futuro se não abdicar dele.

Há ainda uma segunda razão para notar que o tempo não ajuda. Está registada no gráfico ao lado, com dados do relatório da Comissão Europeia da semana passada. Diz a Comissão que só há três países — Portugal, Bélgica e Finlândia — cujo Orçamento para 2021, retirando as medidas provisórias, opera um “impulso negativo” ou uma contração. Todos os outros aumentam o Orçamento estrutural, como é razoável numa situação de crise. Portugal volta a ser o bom aluno, e isso não é boa notícia. Vai sentir-se todos os dias nos serviços de saúde e nas limitações do investimento ou das políticas sociais. O facto é que mesmo o truque deste Orçamento, muitas medidas provisórias para depois chegarmos à austeridade, já está a ser testado pelo improviso e desleixo da resposta à segunda vaga da pandemia.

E HÁ O MONSTRO NO ARMÁRIO

Finalmente, há aquilo de quem não se pode dizer o nome, a banca. Nada de novo nas promessas: em novembro de 2008, Teixeira dos Santos dizia que “não é de esperar que haja impactos significativos a nível orçamental devido à nacionalização do BPN”, já lá vão mais de 5000 milhões; em agosto de 2014, Passos Coelho garantiu que “a solução anunciada pelo Banco de Portugal para o BES é aquela que oferece maiores garantias de que os contribuintes portugueses não serão chamados a suportar as perdas”, foram logo 4900 milhões; em março de 2017, António Costa garantia que a venda do Novo Banco à Lone Star “não terá impacto direto ou indireto nas contas públicas nem novos encargos para os contribuintes”, já lá vão cerca de 3000 milhões. Crescerá a fatura em 2021, e será preciso solucionar o Montepio, talvez decidir sobre fusões ou vendas de outros bancos. Sem proteger a banca, o Governo viverá em sobressalto.

Por isso, o Orçamento não precisava de uma panóplia de promessas, exigia soluções para a saúde e garantias de que não somos atropelados pelo desemprego. É precisamente onde falha. Se o Governo ou os partidos não percebem que a covid é um novo mundo, é melhor que olhem para as urgências dos hospitais e percebam onde não têm o direito de falhar.


O planeta, agora é que é?

Depois da desilusão, a ilusão. Biden tinha nomeado para a sua equipa um lobista do petróleo, levantando um coro de críticas, mas anunciou depois que o enviado especial para o clima será John Kerry, ex-secretário de Estado de Obama que assinou o Acordo de Paris. Os movimentos ambientalistas ficaram na expectativa. Mas é cedo para entusiasmos.

O problema é que a poluição não constitui um erro, é antes um sistema. O que move as indústrias poluidoras, em particular as mais poderosas, é a capacidade de imporem regras que facilitam a rentabilidade da produção no curto prazo. Não é de supor que abdiquem desses lucros. Por outro lado, há uma parte oculta da poluição. Segundo o “The Economist”, as 250 maiores empresas do mundo controlam as unidades mais poluidoras, que geram 86% das emissões, com destaque para os agentes financeiros globais (por exemplo, a BlackRock seria responsável por 10% desse total, a Vanguard por 6% e a State Street Capital por 3%). Acontece ainda que estes dados podem ser imprecisos. Ora, somente 4% dos ativos geridos pelo sistema financeiro são de atividades em que há registo de emissões. Dos outros não se sabe. Para mais, as empresas que aceitaram recorrer a modos alternativos de produção têm pouco peso: no índice S&P 500, só três empresas se dedicam a produção de energia renovável e, juntas, não chegam a 1% da capitalização total representada no índice.

Acresce que, mesmo quando foram impostas novas regras a alguns dos grandes poluidores na pandemia, não é certo que tenham impacto significativo. O Governo francês, por exemplo, determinou que a Renault e a Air France-KLM só teriam acesso a fundos de apoio se aceitassem um compromisso de redução de emissões. A Alemanha fixou regras parecidas. Só que se está para ver o que acontecerá quando a atividade normal for restabelecida. Ora, se é assim com estas empresas, como será com a finança mundial, que vive da absorção de rendas e não aceita a sua redução? Veremos se Biden quer impor novas regras e se Kerry as negociará com outros Governos. Até agora, só se tem perdido tempo.


Uma pandemia política

(Pedro Adão e Silva, in Expresso, 03/10/2020)

Pedro Adão e Silva

De acordo com a sondagem ICS/ISCTE que o Expresso hoje publica, um ano depois das legislativas pouco ou nada mudou: PS e PSD têm os mesmos resultados que tiveram nas urnas; os partidos de esquerda continuam a formar uma maioria sólida e os políticos mais bem avaliados são o Presidente e o primeiro-ministro. A única novidade é mesmo o crescimento do Chega e a intensificação da tendência de queda do CDS.

À primeira vista nada mudou, pelo que uma crise política tenderia a resultar num cenário em tudo idêntico ao atual. Ou seja, não se resolveria nenhum problema e, pelo caminho, acrescentar-se-iam alguns. Os partidos sabem-no e é também isso que condiciona o seu comportamento.

Mas é ilusório pensar que não está a acontecer nada na política portuguesa. Alguma coisa teria de mudar com a pandemia. A deterioração da situação económica e social tem inevitavelmente tradução política.

É sabido que o efeito do comportamento da economia na avaliação dos governos é, por definição, assimétrico: quando a economia melhora, os ganhos para quem governa não são lineares, pois são marcados pelas predisposições políticas. Quem é favor do partido do Governo valoriza o que está a acontecer, enquanto quem está mais próximo da oposição não tem a mesma opinião. Ao mesmo tempo, quando a situação piora, os executivos são responsabilizados, independentemente das orientações políticas dos eleitores. O corolário é simples: os problemas económicos tornam-se politicamente mais salientes à medida que a situação se deteriora e, acima de tudo, com um impacto transversal ao espectro ideológico.

Como mostram os resultados da sondagem, os portugueses reconhecem que a situação está a piorar (79% dos inquiridos em comparação com apenas 18% em fevereiro), mas esta opinião ainda não se traduz nem na intenção de voto nem na avaliação do primeiro-ministro. No entanto, existem indícios de mudança. Há mesmo uma linha que converge a um ritmo acelerado: o número de inquiridos que afirma que o Governo está a fazer um trabalho positivo aproxima-se muito do daqueles que fazem uma avaliação negativa. Em fevereiro, 57% avaliavam entre o bom e o muito bom o trabalho do executivo; agora, esse número é de 49%, enquanto a variação do número de avaliações negativas cresceu nove pontos, de 34% para 43%.

Com o tempo, é provável que a queda na avaliação política, agora circunscrita ao Governo, acabe por contaminar a intenção de voto no PS e a opinião sobre o primeiro-ministro. Como não se vislumbra que esteja para emergir uma alternativa maioritária à direita, a probabilidade de estarmos confrontados com uma verdadeira pandemia política, marcada por maior fragmentação partidária, crescimento da representação antissistémica e incapacidade de compromisso, é real.

Nessa altura, a tensão em torno do orçamento do Estado para 2021 vai parecer uma memória distante de um tempo tranquilo. Era bom que os partidos pensassem já nisso.