A iconografia política

(António Guerreiro, in Público, 24/09/2021)

António Guerreiro

Quem, por estes dias, circulou um pouco pelo país e observou os cartazes da campanha para as eleições autárquicas terá certamente reparado que as “visibilidades políticas”, como se diz num jargão a imitar a linguagem dos conceitos, são pouco estimulantes e, muitas vezes, até suscitam alguma repulsa de ordem estética que contamina a ressonância que tem em nós a política, na sua dimensão mais imediata e pragmática. De um modo geral, os cartazes são graficamente desastrosos, as fotografias dos candidatos são autênticos “cromos” e as formações discursivas que os acompanham raramente são mais elaboradas.

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Quem for dado ao cinismo e à caricatura tem aqui material abundante para se entreter e regozijar. No entanto, sabemos bem que as exigências estéticas não têm nada de democrático e não há nada mais perigoso do que a estetização da política: na sua forma totalitária, ela converge para um ideal sinistro, que é o da política como obra de arte total. A iconografia política produzida nas campanhas eleitorais, na sua indigência, até pode ser vista como um sinal do fortalecimento democrático, de uma abertura popular (não confundir com populista) do espaço político. Mas se a excessiva incidência nos critérios estéticos das imagens tende a torná-las actos fúteis (sim, a imagem é um acto) e a despolitizar a própria iconografia política, também é verdade que a política não pode prescindir, nos seus rituais, nas suas convenções e na suas práticas, de um suplemento estético. Estética a mais anula-a; ausência de investimento estético torna-a aberrante e apta a provocar repulsa.

Tornou-se um lugar-comum dizer que há uma crise da representação e que esse mal constitui actualmente o perigo maior para as democracias. Representar — não podemos esquecer — é mostrar, intensificar, redobrar uma presença. Assim definida, fica bem claro que a representação articula estreitamente acepções políticas e estéticas que não podem nunca ser totalmente dissociadas. As práticas políticas encarnam hoje, como sempre aconteceu, lutas de representação sob formas visuais singulares cuja análise requer utensílios conceptuais e metodológicos da iconografia (ou da iconologia?) política, que é uma “disciplina” que, por cá, nunca suscitou grande atenção. O arquivo da Ephemera, criado por José Pacheco Pereira, solicita essa abordagem teórica e morfológica da iconografia política, sem a qual o estudo histórico se torna um pouco cego.

Importa repetir: a imagem é um acto e, nessa medida, tem um papel activo na fábrica da política. E é evidente que a penetração das imagens na política tem hoje uma forte influência da televisão e é determinada pelo fenómeno da pessoalização. Uma e outra, a televisão e a pessoalização, são os recursos mais comuns, estereotipados, da retórica visual da democracia. Por isso é que, quando se trata de cartazes da campanha para as eleições autárquicas, que é a mais pessoalizada de todas, os sinais de identificação partidária ficam quase apagados pelas caras. A identidade gráfica não existe e os cartazes não dizem nada a não ser “aqui estou eu!”. É evidente que esta apresentação ostensiva é necessária, mas feita com a rudeza dos cartões de identidade civil adquire uma dimensão quase obscena e os cidadãos acabam por ver apenas uma guerra das caras. Sem um mínimo de densidade estética, a iconografia eleitoral é vazia, sem ressonância e sem defesas contra a caricatura fácil.

Em tempos, os partidos tinham os seus artistas ou, pelo menos, conselheiros nas questões estéticas do material gráfico. Depois, as campanhas ficaram entregues aos publicitários que, muitas vezes, até têm o condão de degradar ou mesmo aniquilar o cliente partidário que os contratou. Deu-se aí um ponto de viragem e, actualmente, até a iconografia política mais amadora parece querer imitar os cartazes dos supermercados.

Esta é a situação com que estamos confrontados. Se, como alguém famoso diagnosticou, há um mal estar na visibilidade que assombra as nossas sociedades chamada, então as “visibilidades políticas”, não apenas as que a iconografia eleitoral exibe, são uma manifestação dessa doença. E assim os cidadãos vêem cada vez mais a política com uma grande indiferença. Alienação, desencantamento, reificação, absurdo: destes nomes, que exprimiram com grande sucesso estados materiais e de espírito colectivos, algum deles serve para designar a pobreza da experiência política de onde emergem as campanhas eleitorais?



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A Hidra de duas cabeças

(Estátua de Sal, 21 de Agosto de 2015)

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“A hidra é um animal da mitologia grega com várias cabeças de serpente, sendo uma delas imortal, e corpo de dragão. Foi criada por Juno e era um dos doze trabalhos de Hércules. Era conhecida como “Hidra de Lerna“. O seu sangue assim como o seu hálito era venenoso. Se suas cabeças fossem cortadas, elas voltavam a nascer.”

Cada um tem a hidra que merece ou que pode ter. Portugal também tem a sua hidra de estimação. É a coligação PAF e também temos direito a duas cabeças, qual delas a mais venenosa, uma é a de Pedro, outra é a de Paulo, e tal como na mitologia, são inseparáveis, siamesas, uma faz PAF e outra faz PUF.

Ora, queria a oposição que a coligação se apresentasse aos debates para as legislativas cortando uma das cabeças da hidra e apresentando-se apenas só com uma delas. É óbvio que o animal, não se querendo auto mutilar, só podia recusar tal desafio abstendo-se de debater. Não é que esta decisão seja surpreendente. Os debates sérios, mais que atacar ou mostrar as fraquezas dos adversários, servem para provar que as propostas próprias são as melhores e as mais construtivas. Mas como a coligação PAF nada mais tem a apresentar ao País do que aquilo que foi fazendo durante os quatro anos de governação, não tem nada a perder em não debater seja o que for. E para destruir as propostas alheias, tem toda a comunicação social infestada de comentadores, figurantes em painéis de debate político e outras sumidades desencantadas de baús de velharias, para já não falar das homílias dominicais do professor Marcelo.

Neste exercício de desconstrução das propostas dos adversários, esta semana foi elucidativa. O PS, refez as contas do programa macroeconómico e Centeno veio falar na criação de 207000 empregos a surgirem durante a próxima legislatura caso o PS ganhe as eleições. A Direita exultou e os oráculos da economia foram chamados a discutir o número. Não sei se também chamaram a Maia, lançando as cartas do Tarot, para afiançar da credibilidade de tão ambiciosa intenção, porque não sou cliente da CMTV.

O primeiro argumento esgrimido foi que Sócrates também já houvera prometido 150000 empregos e foi o que se viu. O segundo argumento foi que o número, além de exagerado, era demasiado rigoroso, logo pouco credível: porque não 203500? 199999? Porquê, afinal, 207000? António Costa lá teve que vir a terreiro dizer que o número era o que resultava do modelo econométrico e que refletia, mais que uma certeza matemática, a prioridade maior dos seus objetivos de política económica. E só.

Qual a ilação subliminar que se pode retirar deste confronto de posições? Vejamos:

1) Se a Direita tivesse um programa político diferente daquele que levou a cabo durante estes últimos quatro anos, promovendo o emprego e não o desemprego, promovendo o desenvolvimento do País em vez da sua pauperização, teria apenas dito que se o PS se propõe criar 207000 empregos, ela criaria 307599, ou seja que ela faria melhor, e muito melhor, em matéria de emprego.

2) Ficou claro que não tem tal programa, nem quer ter, pelo que só lhe resta minar a seriedade daqueles que o tem e que o querem levar a cabo.

3) Ficou claro que a Direita não é forte em contas, desconfia dos números, porque os números não enganam, sendo ainda mais elucidativos do que o algodão, e todas as propostas da coligação repousam num quadro de embustes e mensagens de propaganda que ruiriam como um castelo de cartas se fossem inseridas num cenário quantificado e quantificável.

4) Mais que não ter números para mostrar, a recusa da Direita em debater e em quantificar justifica-se pela sua necessidade de não ter que evidenciar, de forma clara perante o eleitorado, os objetivos últimos do seu programa de política económica ultraliberal, tomando os cidadãos consciência plena do impacto que tal terá nas suas vidas: desmantelamento do Estado social que ainda resta, privatização das empresas de prestação de serviços públicos que ainda restam, ataque ao quadro de regulação do mercado de trabalho que ainda resta. É que para destruir, não são precisas contas nem cenários. Basta navegar à vista, e saber a cada momento quais os amigos que importa beneficiar, e sempre, cinicamente, em nome da liberdade de escolha e do espírito empreendedor.

E é neste quadro que o País se vai discutindo, por Agosto adentro. Apesar da campanha eleitoral não ter ainda começado oficialmente, seria de esperar que as propostas dos vários partidos que já são conhecidas fossem tema de confronto e análise. Mas não. Mais que as propostas os temas do mês têm sido a forma de fazer chegar tais propostas aos eleitores.

Primeiro foram os cartazes o grande tema do debate. Se os rostos dos cartazes correspondiam a verdadeiros ou falsos desempregados, se os rostos dos cartazes, felizes, joviais e de sorriso aberto, tinham dado ou não consentimento para mimar o Portugal feliz e Para a Frente. Como se a questão séria e premente não fosse discutir se há ou não desemprego. Como se a questão séria não fosse debater se ainda há espaço e futuro em Portugal, com as atuais políticas, para uma maioria de gente feliz e com vontade de sorrir.

Agora passou-se a discutir se há debates ou não há debates. Se Portas entra ou se Portas sai. Se Portas é príncipe consorte ou se apenas faz figura de primeira-dama. É claro que quem vende a alma ao diabo não pode querer depois ser senhor do seu destino e ter voz própria. Portas acolitou-se na coligação para não ser julgado pela sua revogada “irrevogabilidade”, para não ser julgado por o “partido dos reformados” ter passado a ser o partido do corte nas reformas, sob a batuta do inefável ministro-lambreta. Portas está sob o “protetorado” de Coelho – para usar uma expressão de que ele tanto gosta -, tal como ele dizia que Portugal estava sob o protetorado da troika, antes de ter terminado o programa de resgate ao País. Não pode, portanto, querer ter direito a debater em pé de igualdade com os outros líderes políticos. Ele é uma espécie de “voz do dono” e não pode ter direito a uma soberania discursiva política que não tem porque a hipotecou no altar da coligação.

Mas, mais uma vez, discute-se a forma e não o conteúdo. Mais uma vez discute-se o mensageiro e não a mensagem. Parece que ninguém quer seriamente discutir a política, a economia, o País, a Europa, o Euro, o mundo, o presente e o futuro, e assim sendo, resta a discussão do folclore da propaganda e da política enquanto espetáculo e não enquanto instrumento de transformação da vida e de construção da realidade.

No fundo, há também aqui uma assunção implícita subliminar. No quadro atual de inserção na Europa e de soberania partilhada (e cada vez mais espartilhada), já não somos senhores de determinar as grandes opções de política que poderão determinar o nosso destino coletivo, como se está a ver pelos últimos capítulos do folhetim grego. Se a economia é global e cada vez mais integrada, se não há soberania monetária, como pode haver política interna própria e autónoma? Este sim, será um debate político sério que algum dia terá que ser feito.

Talvez por isso, porque não se pode questionar, no essencial, o guião da peça, se ande a dar tanto relevo à discussão das vestes dos atores, ao seu desempenho, e aos meios que utilizam para comunicar. E talvez por isso também se perceba melhor a razão por que as eleições presidenciais têm sido objeto de tão grandes parangonas. É que, para a Presidência da República não é necessário discutir opções para o País, programas de governo, opções de política económica, incumbências que não competem ao Presidente da República. Basta apenas discutir nomes, sensibilidades, percursos, apoios e currículos. No fundo, discutir os atores sem questionar a peça.

Como diz o provérbio: “Agosto arder, Setembro beber”. De facto houve fogo a rodos, e o almanaque bateu certo. Arderam milhares de hectares mas ninguém se insurgiu, nem se comoveu e quer o Governo quer a oposição já consideram banal que tal suceda.

Como se os fogos fossem tão inevitáveis como ser o epicentro da campanha eleitoral para as legislativas a discussão dos cartazes, o formato dos debates e quais os candidatos presidenciais: se Portas entra ou se Portas sai, se Belém vai vai fazer trapézio com a rede do PS ou se vai apenas com um pacote de aspirinas no bolso fornecido pela Associação Nacional de Farmácias e pelo seu amigo João Cordeiro.

Só não há futuro quando há conformismo. E o conformismo é larvar e deletério. Está entranhado. Eu quero acreditar que é mal de Agosto. Espero. Voltando aos provérbios: “Tardes de Agosto, passam de encosto”. Tem mesmo que passar.

 

 

 

Cartazes e madrinhas da prostituição

(António José Teixeira, in Expresso Diário, 14/08/2015)

António José Teixeira

Estamos em Agosto, é tempo de férias para muitos, fervilham festivais de tudo e mais alguma coisa, a torrente do futebol arrasta emoção e tolhe a razão, falta paciência para assuntos sérios, corre sem pressa a dita estação silly… Tudo isto para me desculpar por me deter na “crise dos cartazes”, a magna questão política com que a campanha eleitoral nos ocupa. Não deve ser por acaso. Mesmo que os cartazes não valham metade da discussão que provocam, valem pelo menos como espelhos do nosso tempo. Há cartazes que gritam, cartazes que sorriem, que desviam atenções, que recriam a realidade, que a temperam ao gosto dos patrões, cartazes que dramatizam ou fantasiam, cartazes ainda que nos indignam e revoltam. De tudo um pouco, sobretudo de excesso. Faz parte.

Os cartazes que andam por aí pendurados revelam muito das intenções dos que dominam a situação e dos que se lhe opõem. Os excessos de otimismo contrastam com as cores negras da desgraça. Não faltam exemplos que ajudem a sublinhar êxito e esperança. Como abundam casos de fracasso e desespero. O mais extraordinário, ou não, talvez o mais revelador, é a descolagem da realidade, como se o país não chegasse para se mostrar a si próprio, como se fosse forçoso torcer o quotidiano para ganhar identidade. O cartaz é um bilhete-postal, um cromo, um cartão de visita, uma fotografia em que nos podemos rever. O problema é que muitos dos cartazes que por aí andam têm pouco a ver connosco. Temos dificuldade, às vezes repulsa, em lidar com o nosso reflexo. Não é só pelo amadorismo. É pela cegueira no ponto de vista. Os que nos representam e os que nos querem representar bem se esforçam em compromissos e garantias. Não será por os cartazes mentirem que se afastam os eleitores. Já não se estranha e já se entranhou. É a descolagem da sociedade, o calculismo e o taticismo, o culto do eufemismo. Embora engrosse o exército dos céticos, o centrão revê-se mais na continuidade do que na mudança. E desse ponto de vista os aspirantes ao poder correm mais riscos quando comprometem a verosimilhança da sua mensagem.

A propaganda ganhou muito com as artes da publicidade. Mas vezes demais esqueceu a sua função política. Talvez porque quando a política não é clara não será clara a propaganda.

Ter cartaz na política é melhor do que não o ter, mas a política reduzida à propaganda é seguramente apenas a dissimulação do vazio.

A política de cartaz será necessária, mesmo que os entendidos digam que é pouco eficaz. Apenas isso justificará tanto cartaz por aí. Pior mesmo só a indiferença crescente. Já ouço o grande Millôr Fernandes a lembrar que a propaganda é “a madrinha da prostituição”…