Coisas certas, outras incertas e outras erradas sobre os resultados eleitorais

(Pacheco Pereira, in Público, 02/10/2021)

Pacheco Pereira

Os resultados eleitorais de uma grande cidade, Lisboa em primeiro lugar, Porto e Coimbra a seguir, têm sempre uma interpretação nacional. Seja porque o voto mudou (não é o caso), seja porque o voto de uns diminuiu (PS) e de outros cresceu alguma coisa (pouco, Novos Tempos), seja porque a mobilização de uns (CDU) tirou espaço de manobra a outros (PS), seja porque não houve mobilização suficiente e isso traduziu-se em abstenção (caso do PS), seja por que razão for, muitas das atitudes dos votantes ou dos abstencionistas têm que ver com o partido no poder e o Governo da nação. Pode não ter sido decisivo, mas certamente que contou.

2. Duas razões para a desmobilização que afectou o PS: a convicção da vitória, alimentada pelas sondagens, e o cansaço (nacional, em particular) com uma governação exausta e cada vez pior.

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3. O que se passa hoje é que durante uma campanha eleitoral é muito difícil saber como as coisas estão a correr. A rua é ficcional, é para as televisões. Resta a comunicação social, em particular as sondagens. Não custa perceber que jornais e televisões cobriram as campanhas na base das amizades e antipatias que tinham à cabeça com os candidatos e partidos. Neste caso, as sondagens ajudaram. Enganaram-se e enganaram.

4. Não houve nenhuma alteração qualitativa, nenhum “novo ciclo”. Se as eleições para Lisboa se repetissem hoje, sabendo os eleitores o que sabem, os dois lados aumentariam a mobilização, uns para segurar o resultado, outros para o inverterem. Dado que não houve transferências de voto, a coligação Novos Tempos iria buscar votos ao ex-desânimo e o PS ao ex-“já ganhámos”. Ambos cresceriam, mas duvido que o resultado se mantivesse, porque aí entrariam na ponderação dos eleitores factores nacionais, em particular a correlação de forças PS-PSD. É especulativo, mas não é irrealista.

5. Há uma contradição de fundo entre o programa da coligação Novos Tempos e o programa “real” das forças motoras internas ao grupo à volta de Moedas e à miríade de pequenos partidos que o apoiaram. O programa dos Novos Tempos é o tipo de programa que um partido como o BE ou o PS assinaria por baixo em muitos pontos, exactamente o contrário do “conservadorismo fiscal”. Transportes gratuitos, seguros de saúde gratuitos, descontos de 50% no estacionamento para os residentes, e “um teatro em cada freguesia”, ou seja, 24 teatros, etc. Dou de barato a “fábrica de unicórnios”.

6. Registe-se, no entanto, que os programas eleitorais têm um papel irrelevante nesta escolha, pelo que os Novos Tempos podiam lá pôr o que quisessem que a “direita” não deixaria de ir lá votar como votou. O programa, em teoria, só seria inaceitável, por razões ideológicas, para a Iniciativa Liberal, que tem um dilema – ou faz parte da actual “direita radical”, ou mantém-se na posição de que “não há almoços grátis”. O programa dos Novos Tempos estava cheio de “almoços grátis”.

7. Rio ganhou tempo e alguma folga comunicacional. O tempo é relevante em política, a folga comunicacional é hipócrita e com o apoio da memória comunicacional, que é de passarinho, rapidamente tudo vai voltar ao normal, o ataque a Rio e a promoção dos seus adversários.

8. Estes, por sua vez, continuarão amanhã a fazer o mesmo que faziam antes, até o PSD ser capturado pela direita mais radical. Podem inclusive promover lideranças de transição, como será o caso de Rangel, mas no fim o objectivo é colocar o PSD como cabeça de uma frente de direita, sem centro, contra aquilo que acham que é a “ditadura” de Costa e do PS.

9. É uma estratégia mobilizadora para a direita, pode ser eficaz contra o PS isolado, mas é perdedora contra uma aliança de esquerda pós-eleitoral. Não há nenhuma indicação de que não seja assim, nem as eleições de Lisboa o revelam. Em Lisboa, há sete vereadores dos Novos Tempos, sete do PS, dois do PCP e um do Bloco. Se fosse no país e nas legislativas, tudo continuaria na mesma.

10. Para a oposição interna a Rio os resultados de Lisboa foram simultaneamente bons e maus. Bons, porque a candidatura de Moedas é “deles”, maus, porque o PSD ficou mais de Rio. Vão separar a vitória de Lisboa de Rio e acusá-lo de estar a “apropriar-se” do mérito alheio, e continuar na mesma.

11. A ideia de que uma oposição eficaz é subir os decibéis da fala contra o Governo é um erro. É isto a que chamam “fazer oposição”. Decibéis e “casos” não chegam. Decibéis dão uma imagem de radicalização e colocam o PS e o Governo como moderados. Os “casos” são mais relevantes neste ambiente de “nós” e “eles”, mas não vejo que não haja um só deles que não tenha sido explorado, umas vezes bem e outras mal, com excessos e exageros. Desgastam, mas não chegam para inverter qualitativamente o ambiente político. Para já.

12. Os problemas políticos mais graves que o Governo defrontou foram a pandemia e as suas repercussões económicas. Em ambos os casos a oposição não conseguiu ir mais longe do que críticas pontuais, seja de Rio, seja dos partidários dos decibéis. A vacinação correu bem, e a situação económica está a melhorar, coisa que ninguém discute ofuscada pela casuística, mas que as pessoas comuns e as empresas “comuns” sabem e sentem. A “bazuca”, com todo o seu cortejo de contradições, vai começar a funcionar e terá resultados.

13. Significa isso que uma vitória do PS ou de uma união de esquerda pós-eleitoral são imbatíveis? Não. Há um aspecto fundamental em que o Governo e o PS falham completamente, que seria uma oportunidade única para a oposição, se não fosse a estratégia dos decibéis. Esse aspecto é a impotência do Governo em fazer reformas de fundo manietado pelo veto do PCP e da esquerda bloquista, e pela sua própria fragilidade. Costa conseguiu muita coisa, mas nunca conseguiu contrariar a fragilidade de um governo minoritário do PS que precisa de aliados orçamentais. Estes não estão em condições para fazer uma política positiva, mas têm o poder de fazer uma política negativa, vetar.

14. Este aspecto de fragilidade do PS no Governo implica exactamente a política que os opositores a Rio não são capazes de fazer, nem Rio tem feito no meio dos ziguezagues à direita. E, quando o tenta fazer, promovendo documentos sectoriais sérios e alternativos, fica a falar sozinho, perante o ruído dos adversários e a hostilidade da imprensa, que acha que isso não é oposição e favorece os decibéis. O que propõem os opositores de Rio não é nenhuma alternativa consistente a não ser o regresso ao passado, e não pode ser nomeado devido à memória viva da troika.

15. Que reformas? Na Justiça, no sistema fiscal, na Educação, na segurança interna, no sistema político, na luta contra a corrupção, no sistema eleitoral, em que muitos problemas estão identificados, mas também estão bloqueados. Será matéria para outro artigo.

16. O problema complementar é que todas estas reformas têm de ser feitas para Portugal tal como ele é, com muita gente pobre, com grande desigualdade, com exclusão e marginalidade, com falta de mérito nas escolhas, com baixa qualificação da mão-de-obra, desindustrializado, com excesso de slogans e ausência de vontade de mudança. E que é tutelado por uma burocracia europeia dependente de alguns países como a Alemanha.

A perda de soberania em matérias fundamentais como o Orçamento é mais grave do que se pensa, mas é substituída por um europeísmo serventuário, agravado pela dependência externa.

Não é fácil, mas é possível.

Historiador


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Moedas, ou regresso do popó

(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 28/09/2021)


Passamos de um autarca que queria limitar a circulação automóvel no centro para outro que anunciou descontos no estacionamento em toda a capital e vilipendiou as ciclovias enquanto diz querer “uma cidade mais sustentável” – é talvez isso que “as pessoas querem”, slogans sem dor. Mas então talvez seja de aprender a não respirar.


Já pouca gente se lembrará – foi naquele tempo muito longínquo antes da pandemia – mas fez à época correr rios de tinta. Fernando Medina anunciou, no início de 2020, a ZER – Zona de Emissões Reduzidas – para o centro da cidade, com forte limitação de circulação e estacionamento de automóveis particulares na Baixa/Chiado. Foi dura e exaustivamente debatido com moradores e comerciantes em várias sessões públicas (sei, participei), levando a algumas alterações do projeto inicial, e deveria ter sido aplicada a partir de junho de 2020.

Com o confinamento decretado em março, porém, a Câmara adiou a entrada em vigor da ZER. Foi, no meu entender, uma péssima decisão.

Uma vez que a ZER implicava várias obras – alargamento de passeios, colocação de traçados de elétricos, etc -, não teria existido melhor altura que o confinamento, com lojas e demais negócios fechados e quase nenhuma circulação automóvel ou pressão de estacionamento para além da dos moradores (que poderiam por exemplo usar, excepcionalmente a título gratuito e enquanto os trabalhos durassem, os lugares deixados livres nos parques da zona), para avançar com elas, com toda a calma. Seria também a altura ideal para uma habituação progressiva, sem choque, às novas regras, por parte de moradores, polícia e transportes públicos.

Perdeu-se a oportunidade. E com o resultado das eleições de domingo pode-se ter mesmo perdido tudo. Senão, leia-se o programa de Carlos MoedasÉ certo que proclama serem “as alterações climáticas e a degradação ambiental uma das maiores ameaças que o planeta e a humanidade enfrentam na atualidade”, e “as cidades geradoras de uma parte significativa desses impactos”; que “a resposta política ambiental de Lisboa requer uma ação urgente, transversal, concertada e assertiva” e é preciso tornar a “cidade sustentável”. Mais à frente, assegura-se que “Lisboa precisa de uma governação que saiba conduzir, com equilíbrio, a transição de um modelo de cidade baseado no carro e nos transportes, promovido nas últimas décadas, para um modelo de cidade baseado na proximidade.”

Ao arrepio do que é a tendência nas grandes cidades europeias e da ideia de sustentabilidade, propõe medidas de promoção da circulação automóvel. O slogan “restituir a rua aos lisboetas” significa na verdade, pasme-se, restituí-la aos carros dos lisboetas.

Toda esta conversa (que se prende com a famosa “cidade dos 15 minutos”, ou seja, a ideia de Moedas de que tudo o que as pessoas precisam na sua vida deve estar no máximo a 15 minutos de distância da morada – o que é muito interessante mas obviamente inconcretizável no espaço de um ou dois mandatos, se de todo) não se traduz, porém, em qualquer medida concreta de limitação de circulação e estacionamento. Pelo contrário: ao arrepio do que é a tendência nas grandes cidades europeias e da ideia de sustentabilidade, propõe medidas de promoção da circulação automóvel. O slogan “restituir a rua aos lisboetas” significa na verdade, pasme-se (é verificar, está na página 13), restituí-la aos carros dos lisboetas: quer que, para eles (presume-se que se referirá a quem mora em Lisboa), os 20 primeiros minutos de estacionamento sejam gratuitos em toda a cidade e paguem menos 50% em todos os parquímetros.

Também quer “redesenhar a rede de ciclovias” da cidade (recorde-se que na campanha garantiu que nelas tinham morrido 26 pessoas em 2019, o que é falso) e acabar com a da avenida Almirante Reis – a qual, lembre-se, fazia parte do plano da ZER. Dir-se-á que anuncia, por exemplo, passes grátis para jovens até aos 18, estudantes e maiores de 65. Mas de que serve isso se diz a toda a gente com carro “usem-no à vontade, ficou mais barato estacionar em qualquer lado”? É que tal medida não se limita a tornar mais atrativo o uso de carro; faz mais penoso o dos transportes públicos de superfície – a Carris – pois quanto mais carros houver a circular menos os transportes públicos são eficazes.

É possível, claro, que a ideia de se poder continuar a usar o transporte individual a bel-prazer e contar, em tese (porque obviamente não será possível – não há lugares para tal), com estacionamento barato à superfície no centro da cidade tenha agradado a uma parte do eleitorado de Moedas. É normal; custa, ao fim de décadas de incremento do paradigma do transporte individual e da ideia de que se pode levar o carro para todo o lado, aceitar que isso não pode continuar a ser possível.

Mas não pode – não há “cidade sustentável” ou sequer mundo sustentável assim, e sabemo-lo há décadas. Só falta usar esse saber para salvar o que é possível – coisa que andamos coletivamente, cidade, país e mundo, a adiar ad aeternum. Não é decerto com slogans vazios que lá vamos; é preciso coragem e capacidade de sacrifício por um bem maior.

A eleição de Moedas – ou, melhor dizendo, a derrota de Fernando Medina – deixa-nos muito mais longe dessa coragem. Malgrado trazer consigo a “aura de viajado” (que deveria impulsioná-lo para soluções como a da ZER, pelo conhecimento daquilo que se faz “lá fora”), o presidente eleito é um homem do lobby do popó. Ou não tivesse na sua lista para a Assembleia Municipal o indescritível Carlos Barbosa, presidente do Automóvel Club de Portugal e fanático do tubo de escape. Se depender de Moedas e Barbosa, agora que vamos finalmente poder andar na rua sem as máscaras pandémicas teremos de trocá-las pelas antipoluição. Novos tão velhos tempos.


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João Ferreira, líder para um PCP mudado

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 29/09/2021)

Daniel Oliveira

Desde o início da “geringonça”, os comunistas não tiveram vitórias eleitorais nacionais. Não acho que a perda de influência seja consequência da relação com o PS, mas até mais o oposto – o PCP sentiu que a previsível perda de influência tinha de ser compensada nas instituições. Não tiveram uma vitória nas presidenciais em que apresentaram Edgar Silva ou nas que apresentaram João Ferreira. Não a tiveram nas últimas europeias, com João Ferreira. Não a tiveram nas últimas legislativas. E não a tiveram nas autárquicas de 2017, em que perderam dez câmaras, entre elas Almada. E voltaram a não a ter no último domingo, em que ficaram com menos seis câmaras, passando de 24 para 19. Perderam Alvito, Vila Viçosa, Alpiarça e Loures, que era fundamental. E perderam Moita, Mora e Montemor-o-Novo, nas suas mãos desde 1976. Resta-lhes, de relevante, Évora, Setúbal e Seixal. E Évora foi por menos de 300 votos.

Antes que saltem em cima de uma campa inexistente, o PCP continua a ser a única força autárquica fora do centrão. O Chega, que em estilo fanfarrão chegou a dizer que sonhava com um lugar no pódio autárquico, teve metade dos seus votos e percentagem (com outros é difícil medir-se porque participam em coligações ou apoiam listas de cidadãos em concelhos bastante populosos). E ficou claro que não há qualquer relação entre o voto comunista e o crescimento do Chega no Alentejo. Basta dizer que uma das melhores votações de Ventura nas Presidenciais foi em Elvas (teve quase 10% nestas autárquicas), onde o PCP vale menos de 4% (e valia 3% nas anteriores).

Mas se querem prova ainda mais evidente da mentira construída para poupar a direita tradicional, vão ver os resultados de Moura, onde o Chega apostou tudo para roubar voto comunista: para a Câmara, a extrema-direita cresce às custas do PS e da direita, enquanto o PCP até cresce na votação. Para a Assembleia Municipal, a CDU é a que menos cai. No Alentejo, o Chega cresce onde há comunidades ciganas. E, nesses casos, tira votos a quem os tiver, sejam comunistas, socialistas ou de direita. Mas os comunistas até são os que melhor aguentam.

Mas o PCP é uma potência autárquica que, lentamente, vai sendo expulsa da cintura de Lisboa. Uma cintura que deixou de ser chamada “industrial”, porque já não o é. E um partido comunista rural ou de cidades médias, afastado das zonas tradicionalmente industriais, não é um Partido Comunista. Perdendo grandes câmaras, os comunistas perdem a estrutura que lhes sobra quando os sindicatos estão a definhar. E isso retira-lhes implantação, quadros e funcionários.

A análise da política mais imediata olha para esta decadência autárquica como um qualquer castigo pelo apoio dado ao governo do PS. Se o PCP fizesse cair o Governo duvido que o resultado fosse melhor. Acho que até seria pior. O PCP está a perder votos para o PS. E está a perder votos porque, num país que se desindustrializou, um partido com as suas características estaria condenado a perder força.

E num Alentejo onde cada vez há menos operários agrícolas e cada vez mais trabalhadores de serviços, também. Por isso a conversa do “Alentejo comunista” para sublinhar cada derrota ou transferência de voto é tão absurda. O Alentejo é um bastião socialista há algum tempo. No caso da península de Setúbal e alguns concelhos da margem norte do Tejo, assistimos a uma alteração demográfica e social profunda – com a ida da classe média baixa de Lisboa para esses concelhos –, que vai fazendo o seu estrago político lento, continuado e provavelmente inexorável.

Tudo isto acontece ao mesmo tempo que João Ferreira, o mais preparado dos quadros do PCP, teve um bom resultado em Lisboa, reforçando a votação da CDU em 1400 votos, em contraciclo com a esquerda em Lisboa e com os comunistas no país. Uma das poucas vitórias com relevo que os comunistas tiveram no último domingo. E uma vitória fundamental. Não por causa da autarquia, onde a direita governará agora e o PCP manteve os mesmos dois vereadores. Mas por causa do candidato, que à terceira eleição seguida – europeias, presidenciais e autárquicas – teve finalmente o resultado que o coloca em condições de o partido avançar com o seu nome para a liderança.

João Ferreira tem, no entanto, as características que sublinham o que está a acontecer ao PCP. Biólogo, intelectual, sem história no movimento sindical (foi fundador da ABIC, associação de bolseiros), sem relevância no aparelho do partido e mais ideológico (o que não quer dizer mais ortodoxo) do que os seus antecessores, tem o perfil consentâneo com uma mudança na natureza do PCP: um partido mais doutrinário, com menor implantação social e sindical. O que nunca o impedirá de ser taticamente pragmático. Até o poderá a obrigar a sê-lo, por depender mais das instituições de representação.

Se há coisa que estas eleições deixam claro é que João Ferreira tem mesmo de passar a ser o líder do PCP. E que, queira ou não, terá a função de fazer corresponder o partido à realidade que ele cada vez mais terá de representar: um país sem proletários, empobrecido, de precários e de serviços. Aquilo que o BE quis e nunca conseguiu.


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