Rui Rio paz e amor

(Manuel Carvalho, in Público, 25/01/2022)

Manuel Carvalho

Rui Rio tem de ser avaliado à luz da sua história na política, pelo que de facto é, e não apenas pelos sorrisos, pela bonomia ou pela mansidão que tem exibido durante estas semanas.


Rui Rio anda irreconhecível. O seu ar austero e ríspido deu lugar a uma longa colecção de sorrisos para os seus adversários que o programa de Ricardo Araújo Pereira tão bem soube captar. A sua obsessão com a seriedade, ou com o rigor, esbate-se num ar descontraído, num discurso sereno ou no enlevo com o seu gato doméstico. Um dia destes falou em “bandalheira”, mas está, apesar de tudo, mais comedido nas críticas à Justiça. Deixou de culpar os jornalistas pelos males do PSD, do país ou do mundo. Aparece afável ao lado dos opositores internos. Lá vai dizendo que o empenho dos deputados em escrutinar o governo nos debates quinzenais é “gritaria” ou “perda de tempo”, mas deixou a André Ventura a denúncia de um “regime doente”.

Rui Rio já não é o político que tentou criar no Porto uma democracia autoritária, na qual jornalistas mais críticos eram filmados e expostos nos placards da autarquia; onde os arrumadores deviam ser “escorraçados” ou detidos para identificação; onde colunistas ou actores foram processados por lhe dirigirem palavras duras – e absolvidos em nome da liberdade de expressão; onde os apoios municipais exigiam que os seus destinatários se “abstivessem” de criticar a câmara.

Rui Rio também já não é o político que reclamou a suspensão de eleições nas câmaras endividadas, que limpou das listas de deputados os seus opositores internos e transformou o PSD numa máquina fiável, obediente e previsível. Ele detesta e é detestado, mas na sua vaga triunfal ninguém tem ouvidos para as críticas de Carlos Carreiras e ainda menos para o acinte de Luís Filipe Menezes.

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Embalado pela clareza da sua estratégia, pela mensagem de mudança, pelos erros dos seus adversários e pela teimosa persistência que lhe dão a aura de resistente, Rui Rio construiu uma face de “paz e amor” e ocultou a sua natureza intransigente, intolerante e conflituosa. O sucesso poupou-o à amargura e ao ressentimento. Coisa breve, porque, se Rui Rio tem um mérito, é o de não esconder o que é. O Rui Rio sorridente e com gatinhos acabará na primeira contrariedade. Com ele no governo, o “rigor” vai apertar a liberdade de crítica e de expressão, vai colidir com a separação de poderes, vai, enfim, tornar a vida pública do país mais tensa e áspera.

É legítimo que muitos eleitores defendam essa via – até porque Rio, sendo um líder duro e avesso à contestação, nem questiona os fundamentos da democracia, nem do Estado de direito. Mas é igualmente bom que o avaliem à luz da sua história na política, pelo que de facto é, e não apenas pelos sorrisos, pela bonomia ou pela mansidão que tem exibido durante estas semanas.


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Democracia e autoritarismo

(Boaventura Sousa Santos, in Jornal Tornado, 24/07/2021)

Boaventura Sousa Santos

As trombetas da guerra fria voltaram a soar. O Presidente dos EUA anuncia aos quatro ventos a nova cruzada. Desta vez, os termos parecem diferentes, mas os inimigos são os mesmos – a China e a Rússia principalmente.

Trata-se da “guerra” entre democracias e autoritarismos (ditaduras ou governos de democracia truncada pelo domínio absoluto de um partido). Como de costume, os governos ocidentais e os comentadores de serviço alinharam-se fielmente para o combate. Os portugueses que viveram em idade adulta o tempo da ditadura salazarista não têm qualquer dúvida em distinguir democracia e autoritarismo e em preferir a primeira ao segundo.

Os que nasceram depois de 1974, ou pouco tempo antes, quando não aprenderam dos pais o que foi a ditadura, muito provavelmente também não aprenderam na escola. Estão, pois, disponíveis para confundir os dois regimes políticos. Por sua vez, a realidade de muitos países considerados democráticos mostra que a democracia atravessa uma profunda crise e que a distinção entre democracia e autoritarismo é cada vez mais complexa. Em vários países do mundo estão a ocorrer protestos nas ruas para defender a democracia e lutar por direitos violados, direitos esses quase sempre consagrados na constituição. Muitos destes protestos dirigem-se contra dirigentes políticos que foram eleitos democraticamente, mas que têm exercido o cargo de modo antidemocrático, contra os interesses das grandes maiorias, por vezes frustrando grosseiramente as expectativas dos cidadãos que votaram neles. São os casos do Brasil, Colômbia e Índia, e foram também os casos da Espanha, Argentina, Chile e Equador em anos recentes.

Noutros casos, os protestos visam evitar a fraude eleitoral ou fazer valer os resultados eleitorais, sempre que as elites locais e as pressões externas se recusam a reconhecer a vitória de candidatos sufragados pela maioria. Foi este o caso do México, durante anos, o caso da Bolívia, em tempos recentes, e, agora, o caso do Peru. À primeira vista, há algo de estranho nestes protestos, porque a democracia liberal tem como característica fundamental a institucionalização dos conflitos políticos, a sua solução pacífica no marco de procedimentos inequívocos e transparentes.

Trata-se de um poder político que se conquista, se exerce e se abandona democraticamente, mediante regras consensualizadas. Por que razão, nesse caso, estão os cidadãos a protestar fora das instituições, nas ruas, tanto mais que correm sérios riscos de enfrentar excessiva força repressiva? E o mais intrigante é que os governos de todos os países que mencionei são aliados dos EUA, que com eles querem contar na sua nova cruzada contra o autoritarismo da China e seus aliados.

A perplexidade instala-se

Se, por um lado, é crucial manter a diferença entre democracia e autoritarismo, por outro lado, os traços autoritários das democracias realmente existentes agravam-se cada dia que passa. Vejamos alguns deles. A Rússia prende autoritariamente o dissidente Alexei Navalny; as democracias ocidentais deixam morrer na prisão, por pressão dos EUA, o jornalista Julian Assange, que daqui a algumas décadas receberá provavelmente, a título póstumo, o Prémio Nobel da Paz.

Nos regimes autoritários, a comunicação social não é livre para dar voz aos diferentes interesses sociais e políticos; nas democracias, a preciosa liberdade de expressão está cada vez mais ameaçada pelo controlo dos média por parte de grupos financeiros e outras oligarquias, bem como pelas redes sociais que usam os algoritmos para impedir que ideias progressistas cheguem ao grande público e para permitir que o contrário ocorra com ideias reacionárias. Os governos autoritários eliminam opositores que lutam pela democracia nos seus países; as democracias destroem alguns desses países (Iraque, Líbia) e matam milhares de inocentes para defender a democracia.

Os regimes autoritários eliminam a independência judicial; as democracias promovem perseguições políticas por via do sistema judicial, como dramaticamente ilustrado pela operação Lava-Jato no Brasil. Nos governos autoritários, os líderes não são escolhidos livremente pelos cidadãos; nas democracias é cada vez mais preocupante o modo como os poderes fácticos inventam e destroem candidatos. Nos governos autoritários todos os procedimentos são incertos para que os resultados sejam certos (a nomeação ou eleição dos líderes escolhidos autocraticamente).

Nas democracias vigora o oposto: procedimentos certos para que se obtenham resultados incertos (a eleição dos líderes escolhidos pela maioria). Mas é cada vez mais comum que quem tem poder económico e social tenha também o poder de manipular os procedimentos para garantir os resultados que pretende. Com tal manipulação (fraude eleitoral, financiamento ilegal de campanhas, fake news e discurso de ódio nas redes sociais, etc.), os procedimentos democráticos, supostamente certos, tornaram-se incertos. Com isto, corre-se o risco da inversão da democracia: processos incertos para resultados certos.

Para além destes exemplos, entre muitos outros, é flagrante a dualidade critérios. São governos autoritários e, por isso, hostis, a China, a Rússia, o Irão, a Venezuela; mas não são hostis, apesar de autoritários, a Arábia Saudita, as monarquias do Golfo, o Egipto e, muito menos, Israel, apesar de sujeitar mais de 20% da sua população (os árabes israelitas) à condição de cidadãos de segunda classe, e submeter a Palestina a um regime de apartheid, como recentemente foi reconhecido pela Human Rights Watch.

Por sua vez, as embaixadas e as instituições dos EUA encarregadas de promover “regimes democráticos amigos dos EUA”, e ainda as fundações que o dinheiro dos bilionários alimenta com os mesmos propósitos, acolhem de preferência políticos e partidos de direita, e mesmo de extrema-direita, desde que estes jurem lealdade aos interesses geopolíticos e económicos dos EUA. Na Europa, Steve Bannon, um ex-consultor de Donald Trump, promove forças de extrema-direita, antieuropeístas e católicas conservadoras que se opõem ao Papa Francisco.

De tudo isto resulta uma situação paradoxal: enquanto o discurso da guerra fria exalta a diferença entre democracia e autoritarismo, as práticas das potências hegemônicas não se cansam de reforçar os traços autoritários, tanto das democracias como dos regimes autoritários. Alguém está a enganar alguém. A Europa faria bem se se convencesse de que a nova guerra fria tem pouco a ver com democracia versus autoritarismo. É apenas uma nova fase de enfrentamento entre o capitalismo multinacional dos EUA e o capitalismo de Estado da China (onde a Rússia se vai integrando). É uma luta nada democrática entre um império declinante e um império ascendente. A Europa, excluída pela primeira vez em cinco séculos do protagonismo global, teria todo o interesse em manter uma relativa distância em relação a ambos os antagonistas e prosseguir uma terceira via de relativa autonomia. Bastaria seguir o exemplo dos países do Sul global reunidos na Conferência de Bandung (1955), talvez agora com mais probabilidades de êxito. Bem mais perto de nós, talvez bastasse mesmo ler e seguir as encíclicas do Papa Francisco.


por Boaventura de Sousa Santos, Sociólogo    |   Texto em português do Brasil

Fonte aqui

 


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O fim do dinheiro físico?

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 09/07/2020)

Não é uma perspetiva tão presente como a generalização do teletrabalho, mas tal como esta última é mais uma mudança social relevante que poderá vir a ser acelerada pela atual pandemia e pela mudança de hábitos que tem vindo a provocar. Refiro-me ao eventual desaparecimento do dinheiro em espécie, ou seja, das notas em papel e das moedas metálicas. Até que ponto é uma verdadeira tendência e até que ponto é que a pandemia está a acentuá-la? E devemos alegrar-nos ou preocupar-nos com isso?

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Naturalmente, o eventual fim do dinheiro físico é algo completamente distinto do fim do dinheiro em geral, se entendermos este último, da forma habitual, como meios líquidos de pagamento. Nas sociedades industrializadas contemporâneas, a maior parte do dinheiro não existe sob a forma de notas e moedas físicas mas sob a forma de depósitos bancários, mobilizáveis para a realização de pagamentos através de cartões de débito, cheques ou transferências. Na zona euro, por exemplo, existiam em maio de 2020 cerca de 1,3 biliões de euros em circulação sob a forma de notas e moedas (quase 4000 euros por habitante), mas o agregado monetário M1, que além das notas e moedas em espécie considera os depósitos à ordem, era várias vezes maior: qualquer coisa como 9,6 biliões de euros.

O que estamos aqui a falar é por isso da possível tendência para o desaparecimento dos pagamentos em espécie e da sua substituição por pagamentos em cheque ou, mais provavelmente, integralmente digitais. É fácil de perceber a relação com a atual pandemia: apesar de, pelo menos para já, não existir evidência de que o vírus se transmita através do dinheiro, foram muitas as pessoas que nos últimos meses preferiram evitar o mais possível o contacto com as notas e moedas, esses objetos físicos que mais trocam de mãos entre anónimos. A realização de pagamentos em cartão tem sido obrigatória nalguns locais específicos e ativamente recomendada e facilitada por muitos governos: por exemplo, eliminando as comissões sobre os pagamentos em terminais de pagamento automático ou aumentando os limites máximos para pagamentos contactless, como sucedeu em Portugal.

Em boa verdade, pelo menos para já não há sinais de que o dinheiro físico esteja em vias de desaparecimento. No primeiro trimestre de 2020 (até março, portanto), o volume de levantamentos em terminais Multibanco em Portugal reduziu-se face ao trimestre homólogo de 2019, de 6877 milhões para 6586 milhões de euros (-4%). Mas ao nível da zona euro como um todo e considerando os valores até maio de 2020, a quantidade de notas e moedas em circulação registou até uma aceleração face à tendência de longo prazo (que é já de si crescente), não uma diminuição.

Apesar disto, os entusiastas de uma futura sociedade cash-less antevêem nas mudanças de práticas dos últimos meses, pelo menos por parte de alguns, o anúncio de um futuro relativamente próximo em que as moedas e notas farão parte do passado e todos os pagamentos serão feitos simplesmente através de um cartão, um telemóvel ou uma pulseira, ativando a transferência eletrónica de fundos de forma puramente escritural e digital. Sem necessidade de deter papéis ou metais que passam de mão em mão, são pouco higiénicos, pesam no bolso e na carteira e são mais facilmente perdidos e roubados.

Porém, as eventuais consequências sociais a que devemos estar atentos vão para além desta mera conveniência imediata e quotidiana para a maioria. Os críticos do fim do dinheiro físico assinalam para começar, que o eventual fim da sua aceitação generalizada tenderá a prejudicar alguns grupos já de si mais vulneráveis, como as pessoas mais idosas, com menos desenvoltura tecnológica ou que não estão integradas no sistema financeiro. É verdade que poucas serão as pessoas na nossa sociedade que não têm algum tipo de conta bancária, mas num mundo sem dinheiro em espécie essa possibilidade torna-se verdadeiramente impossível.

Em 2016, os 1300 milhões de habitantes da India passaram por uma experiência social com semelhanças a este tipo de cenário, quando o governo de Narendra Modi decidiu retirar de circulação as notas de 1000 e 2000 rupias (cerca de 12 e 24 euros) com o objetivo anunciado de combater a economia informal, a evasão fiscal e o financiamento de grupos insurgentes considerados terroristas. Com escassas horas de antecedência, o governo anunciou que mais de quatro quintos do dinheiro em espécie em circulação deixaria de ter curso legal e poderia apenas ser depositado nos bancos ou convertido em novas notas. A operação foi gigantesca e extremamente controversa. Segundo os mais críticos, o impacto sobre a evasão fiscal terá sido limitado, mas o impacto económico e social, especialmente entre as populações rurais e mais pobres, foi substancial. Pelo menos da forma como foi implementada, a medida gerou grande perturbação social, provocando corridas caóticas aos bancos que resultaram em dezenas de mortes, para além de ter provocado uma escassez de meios de pagamento, especialmente nas zonas rurais, que afetou de forma adversa o emprego e os rendimentos dos mais pobres.

Regressando à discussão geral, o eventual fim do dinheiro em espécie representa sobretudo o fim da possibilidade de realização de pagamentos anónimos, e isto pode ter consequências tanto positivas como negativas. A possibilidade, pelo menos teórica, de escrutínio fiscal e judicial de todos os pagamentos e transferências de fundos significa, em princípio, a possibilidade de eliminar, ou pelo menos reprimir substancialmente, a economia informal e grande parte da atividade criminosa. Mas significa também dotar o Estado de uma capacidade de vigilância muito reforçada, com tudo o que isso implica: numa sociedade autoritária, por exemplo, a capacidade de repressão de minorias ou grupos dissidentes, como quer que estes sejam definidos, ver-se-á substancialmente reforçada.

A sociedade cash-less tem por isso algumas semelhanças com a sociedade de vigilância total, da qual constitui uma das componentes: tal como uma câmara de vigilância em cada esquina permitiria evitar muitos crimes e resolver muitos outros mas constrange significativamente a liberdade de todos e potencia o risco de autoritarismo distópico, também o fim do dinheiro em espécie e dos pagamentos anónimos introduz tantos ou mais problemas quanto aqueles que resolve.

É por isso que esta possibilidade é receada e criticada por muitos tanto à esquerda como à direita, principalmente entre quem perfilha posições políticas mais libertárias. É um alerta importante e plenamente válido, que justifica que esta possibilidade, por mais que não esteja imediatamente em questão, deva ser encarada com mais cautela do que entusiasmo.