O fim do dinheiro físico?

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 09/07/2020)

Não é uma perspetiva tão presente como a generalização do teletrabalho, mas tal como esta última é mais uma mudança social relevante que poderá vir a ser acelerada pela atual pandemia e pela mudança de hábitos que tem vindo a provocar. Refiro-me ao eventual desaparecimento do dinheiro em espécie, ou seja, das notas em papel e das moedas metálicas. Até que ponto é uma verdadeira tendência e até que ponto é que a pandemia está a acentuá-la? E devemos alegrar-nos ou preocupar-nos com isso?

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Naturalmente, o eventual fim do dinheiro físico é algo completamente distinto do fim do dinheiro em geral, se entendermos este último, da forma habitual, como meios líquidos de pagamento. Nas sociedades industrializadas contemporâneas, a maior parte do dinheiro não existe sob a forma de notas e moedas físicas mas sob a forma de depósitos bancários, mobilizáveis para a realização de pagamentos através de cartões de débito, cheques ou transferências. Na zona euro, por exemplo, existiam em maio de 2020 cerca de 1,3 biliões de euros em circulação sob a forma de notas e moedas (quase 4000 euros por habitante), mas o agregado monetário M1, que além das notas e moedas em espécie considera os depósitos à ordem, era várias vezes maior: qualquer coisa como 9,6 biliões de euros.

O que estamos aqui a falar é por isso da possível tendência para o desaparecimento dos pagamentos em espécie e da sua substituição por pagamentos em cheque ou, mais provavelmente, integralmente digitais. É fácil de perceber a relação com a atual pandemia: apesar de, pelo menos para já, não existir evidência de que o vírus se transmita através do dinheiro, foram muitas as pessoas que nos últimos meses preferiram evitar o mais possível o contacto com as notas e moedas, esses objetos físicos que mais trocam de mãos entre anónimos. A realização de pagamentos em cartão tem sido obrigatória nalguns locais específicos e ativamente recomendada e facilitada por muitos governos: por exemplo, eliminando as comissões sobre os pagamentos em terminais de pagamento automático ou aumentando os limites máximos para pagamentos contactless, como sucedeu em Portugal.

Em boa verdade, pelo menos para já não há sinais de que o dinheiro físico esteja em vias de desaparecimento. No primeiro trimestre de 2020 (até março, portanto), o volume de levantamentos em terminais Multibanco em Portugal reduziu-se face ao trimestre homólogo de 2019, de 6877 milhões para 6586 milhões de euros (-4%). Mas ao nível da zona euro como um todo e considerando os valores até maio de 2020, a quantidade de notas e moedas em circulação registou até uma aceleração face à tendência de longo prazo (que é já de si crescente), não uma diminuição.

Apesar disto, os entusiastas de uma futura sociedade cash-less antevêem nas mudanças de práticas dos últimos meses, pelo menos por parte de alguns, o anúncio de um futuro relativamente próximo em que as moedas e notas farão parte do passado e todos os pagamentos serão feitos simplesmente através de um cartão, um telemóvel ou uma pulseira, ativando a transferência eletrónica de fundos de forma puramente escritural e digital. Sem necessidade de deter papéis ou metais que passam de mão em mão, são pouco higiénicos, pesam no bolso e na carteira e são mais facilmente perdidos e roubados.

Porém, as eventuais consequências sociais a que devemos estar atentos vão para além desta mera conveniência imediata e quotidiana para a maioria. Os críticos do fim do dinheiro físico assinalam para começar, que o eventual fim da sua aceitação generalizada tenderá a prejudicar alguns grupos já de si mais vulneráveis, como as pessoas mais idosas, com menos desenvoltura tecnológica ou que não estão integradas no sistema financeiro. É verdade que poucas serão as pessoas na nossa sociedade que não têm algum tipo de conta bancária, mas num mundo sem dinheiro em espécie essa possibilidade torna-se verdadeiramente impossível.

Em 2016, os 1300 milhões de habitantes da India passaram por uma experiência social com semelhanças a este tipo de cenário, quando o governo de Narendra Modi decidiu retirar de circulação as notas de 1000 e 2000 rupias (cerca de 12 e 24 euros) com o objetivo anunciado de combater a economia informal, a evasão fiscal e o financiamento de grupos insurgentes considerados terroristas. Com escassas horas de antecedência, o governo anunciou que mais de quatro quintos do dinheiro em espécie em circulação deixaria de ter curso legal e poderia apenas ser depositado nos bancos ou convertido em novas notas. A operação foi gigantesca e extremamente controversa. Segundo os mais críticos, o impacto sobre a evasão fiscal terá sido limitado, mas o impacto económico e social, especialmente entre as populações rurais e mais pobres, foi substancial. Pelo menos da forma como foi implementada, a medida gerou grande perturbação social, provocando corridas caóticas aos bancos que resultaram em dezenas de mortes, para além de ter provocado uma escassez de meios de pagamento, especialmente nas zonas rurais, que afetou de forma adversa o emprego e os rendimentos dos mais pobres.

Regressando à discussão geral, o eventual fim do dinheiro em espécie representa sobretudo o fim da possibilidade de realização de pagamentos anónimos, e isto pode ter consequências tanto positivas como negativas. A possibilidade, pelo menos teórica, de escrutínio fiscal e judicial de todos os pagamentos e transferências de fundos significa, em princípio, a possibilidade de eliminar, ou pelo menos reprimir substancialmente, a economia informal e grande parte da atividade criminosa. Mas significa também dotar o Estado de uma capacidade de vigilância muito reforçada, com tudo o que isso implica: numa sociedade autoritária, por exemplo, a capacidade de repressão de minorias ou grupos dissidentes, como quer que estes sejam definidos, ver-se-á substancialmente reforçada.

A sociedade cash-less tem por isso algumas semelhanças com a sociedade de vigilância total, da qual constitui uma das componentes: tal como uma câmara de vigilância em cada esquina permitiria evitar muitos crimes e resolver muitos outros mas constrange significativamente a liberdade de todos e potencia o risco de autoritarismo distópico, também o fim do dinheiro em espécie e dos pagamentos anónimos introduz tantos ou mais problemas quanto aqueles que resolve.

É por isso que esta possibilidade é receada e criticada por muitos tanto à esquerda como à direita, principalmente entre quem perfilha posições políticas mais libertárias. É um alerta importante e plenamente válido, que justifica que esta possibilidade, por mais que não esteja imediatamente em questão, deva ser encarada com mais cautela do que entusiasmo.

Pedrógão Grande espera

(João Quadros, in Jornal de Negócios, 08/09/2017)

 

quadros

Já me pus a pensar e, se calhar, metade da massa de Pedrógão foi para o SIRESP. São os que mais precisam. Até estranho a malta do SIRESP não nos cravar leite e barras energéticas.


Quase três meses depois, o dinheiro doado para ajudar as vítimas de Pedrógão Grande ainda não chegou a todos os que precisam. Entre donativos de anónimos, famosos e várias contas solidárias abertas, o valor já chega aos quinze milhões de euros. Eu acho que esta notícia tem tudo que ver com outra que marcou esta semana. A confiança dos portugueses alcançou os 82 pontos, no segundo trimestre deste ano, o valor mais alto alguma vez registado em Portugal. É impossível não associar uma à outra. É o problema da confiança dos portugueses estar a níveis nunca vistos. Estamos demasiado confiantes. Entregamos o dinheiro a qualquer pessoa e confiamos que vai mesmo para Pedrógão.

Já me pus a pensar e, se calhar, metade da massa de Pedrógão foi para o SIRESP. São os que mais precisam. Até estranho a malta do SIRESP não nos cravar leite e barras energéticas. Ou: “Tragam um cozido à portuguesa, aqui à sede do SIRESP, que os nossos quadros superiores estão cheios de larica.”

Se eu fosse a Porto Editora, editava um labirinto, unissexo, com vinte páginas, onde tínhamos de ir dar com o dinheiro de Pedrógão Grande. Onde é que anda a massa? Eu começo logo a imaginar como estão as casas dos indivíduos que ficaram com a massa de Pedrógão. Aposto que têm piscina. As pessoas de Pedrógão, depois do que passaram, têm de andar atentas porque há uns focos de gatunagem? “Ai, estamos desconfiados que isto é gamanço posto.”

Entretanto, o Governo já admitiu que pode estar a ser feito um aproveitamento abusivo de subsídios. Apesar de afirmar que “o risco é muito limitado”, o ministro Vieira da Silva avisa que se algum problema for detectado, a justiça entrará “em campo”. E depois de uma investigação, a PSP vai concluir que foi um raio que atingiu o dinheiro de Pedrógão.

Segundo li, as Misericórdias gastaram, até agora, apenas perto de 12.000 euros do fundo de 1,6 milhões e, provavelmente, foi num jantar, numa marisqueira, para combinar quando entregam o dinheiro. Sempre são três meses a render juros. Tenho a teoria de que a Cáritas anda a criar excêntricos todas as semanas.

Custa assim tanto pôr o dinheiro onde é necessário?! As Misericórdias não podiam contratar o ex-motorista do Sócrates? Três meses?! Só se é porque agora é que eles estão a ver a dificuldade de viver no interior, e estão há três meses a tentar lá chegar com o dinheiro e não conseguiram transporte.

Somos um país que demora três meses a fazer chegar 15 milhões a Pedrógão Grande mas onde, num instantinho, se põem vários milhares de milhões nas ilhas Caimão. O dinheiro dos pobres rasteja, o dos ricos voa.


TOP-5

Onde está a massa

1. Madonna vive em suite de hotel com 400 metros quadrados – O filho da Madonna é o jogador do Benfica com melhor casa.

2. Um aeroporto em Coimbra – Está mesmo a pedir ideias para praxes.

3. Depois do furacão Harvey, três furacões, Irma, José e Katia, progridem em simultâneo no Atlântico – Se o Trump fosse esperto dava nomes muçulmanos aos furacões.

4. Já se pode tomar banho na praia de Carcavelos – Já não há ratazanas mortas, elas agora já nadam e estão muita fixes.

5. Uma empresa portuguesa misteriosa de nome Yupido está registada com um capital social de quase 29 mil milhões de euros, o maior de Portugal – Com isto da Yupido, a Madonna deixou de ser interessante e passou a ser de classe média.

A privatização do dinheiro, silenciosa e radical

(Brett Scott, in Blog OutrasPalavras, 07/03/2017)

Bancos e Estados querem substituir dinheiro público por moeda digital, corporativa. Se isso ocorrer, haverá muito mais desigualdade, discriminação e vigilância….

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