(Major-General Carlos Branco, in Jornal Económico, 11/08/2022)

A viagem da terceira figura do Estado norte-americano a Taiwan não se prende com a promoção da democracia. Como na Ucrânia, também aqui, os EUA tentam justificar o seu comportamento através da dualidade democracias-autocracias.
A presente crise provocada pela visita de Nancy Pelosi a Taiwan, a terceira figura do Estado norte-americano, deve fazer-nos refletir sobre o que está verdadeiramente em causa com este ato: a invasão de Taiwan por Pequim, com o intuito de reunificar militarmente a ilha com o continente; ou, a utilização de Taipé pelos EUA como um proxy na luta que trava contra Pequim, para afirmar o seu projeto hegemónico global, à semelhança do que está a fazer na Ucrânia para atingir a Rússia, e assim impedir a emergência de polos geoestratégicos concorrentes, como antecipou o estratega norte-americano Wolfowitz.
Os exercícios chineses no Estreito e nas águas de Taiwan, inicialmente programados para decorrerem entre 5 e 9 de agosto, entretanto prolongados até 7 de setembro, surgiram como uma resposta a essa visita. Alguns analistas consideraram que Pequim utilizou estes exercícios de fogos reais para testar o seu plano de invasão da ilha. Trata-se da quarta crise no Estreito de Taiwan, desde a tomada do poder pelos comunistas, em 1949. A que mais se assemelha a esta ocorreu em 1995-96, quando o presidente taiwanês Lee Teng-hui visitou a Cornel University, nos Estados Unidos.
Nessa altura, a China mostrou o seu desagrado com essa visita realizando durante meses exercícios de fogos reais no Estreito de Taiwan. Porém, as manobras militares chinesas acabaram em humilhação, quando a poderosa marinha norte-americana se fez passear pelo Estreito de Taiwan com dois carriers battle groups, sem que a China pudesse fazer alguma coisa a não ser engolir o desconforto.
Desta feita, as manobras militares chinesas foram muito mais assertivas do que as de 1995-96. Numa demonstração de confiança no seu poderio militar, em nada comparável com o de há três décadas, as forças continentais cercaram e bloquearam Taiwan por mar e ar. Dispararam 11 mísseis balísticos, tendo um deles sobrevoado a ilha. Num dos casos, as forças navais de Pequim penetraram as águas territoriais de Taipé.
Ao contrário do que muitos analistas prognosticam, apesar de poder parecer, não nos encontramos nos preliminares de uma invasão de Taiwan, a menos que as autoridades de Taipé optem por declarar a independência, o que parece muito improvável. A China não está ainda equipada para o fazer.
Falta-lhe, por exemplo, navios anfíbios e helicópteros em quantidade e qualidade para montar uma invasão em larga escala. Ficamos com a sensação de que os EUA têm estado, ao longo dos últimos anos, mais preocupados com a invasão de Taiwan dos que os próprios taiwaneses.
Se em Taipé a ameaça fosse percebida da maneira como tem vindo a ser anunciada pelos EUA, então Taiwan já teria tomado uma série de medidas preventivas, nomeadamente preparar uma defesa robusta do seu território. O que não foi o caso, pelo menos, até agora. Por enquanto, o serviço militar em Taiwan é de apenas quatro meses, o que parece pouco compatível com a perceção de que o país está prestes a ser invadido. A opinião pública tem vindo a ser distraída com o tema da invasão da ilha, quando não é isso que está em causa, mas a demonstração de força relativamente aos EUA. Pequim considera estar agora preparada para o fazer.
Se é verdade, que o poderio militar norte-americano é globalmente muito superior ao chinês, isso poderá não ser assim quando falamos no quadro regional, mesmo recorrendo os EUA à ajuda dos seus parceiros regionais. Isso deriva do facto de as preocupações securitárias chinesas se encontrarem orientadas apenas para a Ásia, enquanto as dos norte-americanos são de âmbito global.
Numa guerra entre os EUA e a China, a desenrolar-se na vizinhança do território chinês, Pequim encontrar-se-á, pelo menos, numa situação de paridade. As forças norte-americanas teriam de combater a cerca de 13 mil quilómetros do seu território. Pequim encontrar-se-ia a jogar em casa. A China dispõe de um dos maiores e mais capazes arsenais de mísseis do mundo. As suas capacidades A2/AD conjugadas com a sua potente defesa aérea e marítima pode malograr uma intervenção norte-americana. A sua marinha não dispõe de defesa para os misseis hipersónicos chineses (DF-17), negando-lhe a possibilidade de se deslocar impunemente no Estreito de Taiwan, se essa intenção existir.
Não interessa à China iniciar uma guerra com os EUA, mas como terá dito o presidente Xi ao presidente Biden, “quem brinca com o fogo queima-se”, alertando-o para o facto de a China não estar disposta a ser novamente humilhada. É neste quadro que temos de analisar os presentes desenvolvimentos.
Esta crise tem a ver fundamentalmente com a gestão do poder, em particular dos EUA, naquela área do globo, inserida no seu projeto hegemónico global, que a China está a desafiar, assim como a Rússia na Ucrânia. O controlo da ilha de Taiwan por parte dos EUA é crucial para a manutenção desse poder, uma vez que se encontra na designada primeira linha de ilhas, onde se incluem o Japão, a Coreia do Sul, as Filipinas, a Indonésia e a Austrália, cujo domínio pelos EUA condiciona a saída da China para o Pacífico e, em caso de conflito, bloqueia o controlo de Taiwan pela China, o que afetará a posição dos EUA na Ásia e, consequentemente, a sua posição de potência global.
Obviamente que a viagem da terceira figura do Estado norte-americano a Taiwan não se prende com a promoção da democracia, conforme aludido por Nancy Pelosi. Há muitos outros locais do mundo onde os EUA podem defender a democracia sem arriscarem uma catástrofe global. Como na Ucrânia, também aqui, os EUA tentam justificar o seu comportamento através da dualidade democracias-autocracias.
É também a luta pela manutenção da sua posição hegemónica, que explica a ambiguidade do comportamento norte-americano relativamente a Taiwan, obrigado, entre outras declarações, pelo Taiwan Relations Act (TRA), de 1979, um texto com larga margem de interpretação, que permite leituras diversas consoante o contexto estratégico do momento. Convém recordar que esse “Ato” não é um tratado de defesa mútua, como aqueles que os EUA celebraram com o Japão ou a Coreia do Sul.
Embora tenha abraçado oficialmente, desde 1972, a política de uma só China”, em que reconheceram a República Popular da China como o único governo da China, os EUA nunca abandonaram as relações “não-oficiais” com Taipé, minando, deste modo, a soberania de Pequim sobre a ilha. Na prática, comportaram-se como se Taiwan fosse um Estado de facto, e as autoridades taiwanesas o seu governo legítimo.
Se havia dúvidas desse relacionamento, ele clarificou-se durante a Administração de Trump. Os EUA passaram a estabelecer relações diplomáticas oficiais com Taiwan, o que se manteve durante a Administração Biden. Entre muitos outros casos: Mike Pompeo enviou parabéns à presidente taiwanesa Tsai Ing-wen pela sua reeleição (2020); a Administração Trump convidou diplomatas taiwaneses para participar em determinadas funções no Departamento de Estado; Antony Blinken referiu-se a Taiwan como um país (2021); o representante de Taiwan nos Estados Unidos foi convidado a participar na posse do presidente Biden.
Como se isso não bastasse, militares norte-americanos encontram-se há algum tempo em Taiwan a dar formação às forças taiwanesas, recordando, mais uma vez, o que aconteceu na Ucrânia, a seguir a 2014, tendo sido esse contingente reforçado, no final de 2021. Em março de 2022, algumas horas antes do encontro entre os presidentes Xi e Biden, numa ação provocatória, um navio da marinha norte-americana cruzou o estreito de Taiwan, pela quinta vez em seis meses.
Foi recentemente anunciado que um grupo de navios de guerra da marinha dos EUA fará brevemente uma passagem de demonstração pelo Estreito de Taiwan, em data ainda desconhecida. Se isso acontecer, será uma nova humilhação para Pequim, que parece não estar disponível para a aceitar. Se o anúncio não se cumprir, será uma vitória da China e uma demonstração de fraqueza dos EUA. As consequências do ato não serão inócuas, seja ele qual for. Esperemos que fiquem só pelas de natureza geopolítica.