Quando a Autoridade Tributária foi usada numa campanha para enganar os contribuintes

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 27/01/2016)

Autor

                        Daniel Oliveira

Não é português. Nós tendemos a não gostar de quem nos leva parte do salário. E por isso tendemos a não gostar da máquina fiscal. Mas, na maior parte dos casos, reconhecemos a sua necessidade e, por isso, respeitamo-la. É desse respeito que depende a sustentabilidade das contas públicas e de todas as funções do Estado: o Serviço Nacional de Saúde, a Escola Pública, a segurança pública, o sistema de Justiça. É justo dizer que, nos últimos 20 anos, o nosso sistema fiscal se tornou muito mais eficaz, tendo para isso sido muito importante o papel do antigo diretor geral Paulo Macedo. Apesar de o ter criticado enquanto ministro da Saúde, onde penso que não fez um bom trabalho, é justo reconhecer os seus méritos anteriores. Nestes anos tornou-se muitíssimo mais difícil fugir ao fisco, o que se traduz, apesar de tantos traços injustos da nossa lei, numa maior justiça e equidade fiscal.

Como não há fome que não dê em fartura, ao laxismo do passado sucedeu uma maquinal fúria cobradora que muitas vezes redunda em injustiças, absurdos e até formas de confisco. Infelizmente, a transformação da máquina fiscal numa máquina cobradora de outras dívidas – incluindo dívidas de concessionárias privadas – está a minar a credibilidade moral do fisco. A autoridade dos serviços tributários resulta da função última do dinheiro que esta recolhe. Quando ela passa a usar os poderes extraordinários que lhe conferimos para cobrar multas, contas de portagens e tudo quanto se possam lembrar, banaliza-se a sua função e desprestigia-se a instituição.

Mas poucas coisas atingiram tanto a credibilidade da máquina fiscal como a história da devolução da sobretaxa. Bem sei que a tendência de muita gente demasiado desiludida para se espantar com seja o que for é olhar para isto como mais uma promessa eleitoral por cumprir. Entre tantas outras. Mas não é o caso. Quando nos anunciavam uma devolução que chegou a ser de 35% não se tratava de uma promessa eleitoral. Não foi um anúncio do PSD, deste ou daquele ministro. Foi um previsão quantificada, feita por um simulador no próprio portal da Autoridade Tributária e com a credibilidade técnica a ela ligada. Ou seja, o Governo usou a máquina fiscal do Estado para fazer propaganda direcionada.

O que aconteceu, e que deveria merecer um debate muito sério sobre os limites do poder político na utilização da administração pública para fins eleitorais, fará com que os cidadãos deixem de olhar da mesma forma para as informações técnicas prestadas pelos serviços fiscais. A partir de agora, em vez de olharem para a informação do fisco como um conjunto de dados objetivos, desconfiarão que se possa tratar de pura propaganda. Sobretudo em vésperas de eleições. Na realidade, não foi a única vez que o governo anterior usou serviços do Estado para difundir informações erradas. Fê-lo, por diversas vezes, por via do Instituto de Emprego e Formação Profissional, por exemplo. Só que neste caso, para além da enorme sensibilidade do papel da Autoridade Fiscal, tratava-se de informação individualmente útil. O simulador dizia quanto cada um de nós iria receber.

Para além das responsabilidades políticas, que são de Pedro Passos Coelho, Maria Luís Albuquerque e Paulo Núncio (por esta ordem), é necessário discutir as responsabilidades dentro da própria administração fiscal pela participação na criação de um simulador que tinha como objetivo enganar os contribuintes, já que se dedicava, como então foi dito por muitos, a fazer uma previsão tecnicamente absurda e irresponsável.

A Autoridade Tributária levou os contribuintes ao engano, criando expectativas de uma devolução concreta de dinheiro, apenas com fins eleitorais. Tratou-se de uma utilização ilegítima dos meios do Estado para fins partidários. A isto, Maria Luís Albuquerque respondeu que estava desiludida enquanto ex-ministra e contribuinte. Como se fosse tudo normal.

Nacionalizar a banca? Já o fizeram desde 2011

(Nicolau Santos, in Expresso, 31/10/2015)

nicolau

Uma das teses que corre por aí é que um Governo apoiado por forças de esquerda a primeira coisa que fará é nacionalizar a banca, de acordo com afirmações de 2009 do secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa (que propôs a medida para evitar mais casos polémicos no sector), e o que estava no programa eleitoral do Bloco de Esquerda, onde se defendia o mesmo ou, em alternativa, colocar a banca na dependência de políticas públicas. Contudo, talvez estes alertas devessem ter sido feitos a propósito do governo PSD/CDS liderado por Passos Coelho. É que se houve alguém que tenha nacionalizado largamente a banca desde 1975 foi o Governo liderado por Pedro Passos Coelho e Paulo Portas

Vejamos com factos e números para não haver dúvidas. À Caixa Geral de Depósitos, o Estado português emprestou €900 milhões e fez aumentos de capital no valor de €750 milhões, num total de €1650 milhões. Até agora, a Caixa, que foi obrigada a engolir o BPN e se arrisca a que lhe aconteça o mesmo com o Banif, ainda não devolveu nem um cêntimo desses €900 milhões. Quanto ao BCP, recebeu uma ajuda de de €3000 milhões, dos quais já pagou 2250 milhões. Faltam portanto 750 milhões. O BPI pediu 1500 milhões e foi o único que já devolveu tudo. O Banif foi capitalizado em €1100 milhões, dos quais €700 milhões colocados diretamente no capital do banco e €400 milhões em empréstimos, dos quais ainda faltam €125 milhões. E no Novo Banco o Estado português colocou, como se sabe, através do Fundo de Resolução, a módica quantia de €3900 milhões.

Atualmente, o Estado é dono do primeiro e do terceiro maiores bancos portugueses e é forte credor do segundo

Ou seja, neste momento o Estado português, que emprestou ou capitalizou a banca em €11.150 milhões entre 2011 e 2014, é dono a 100% do primeiro e do terceiro maiores bancos portugueses (Caixa Geral de Depósitos e Novo Banco), controla 60% de outro (Banif) e tem ainda uma posição nada despicienda enquanto credor no segundo maior banco nacional, sendo bom não esquecer que se essas instituições não conseguirem pagar o que devem, o Estado passa a acionista de facto.

E toda esta vasta nacionalização do sistema financeiro português aconteceu durante os quatro anos de governação da coligação PSD/CDS. Factos são factos. Por isso, agitar o papão de que um Governo apoiado por forças de esquerda pode nacionalizar a banca é uma piada porque, na verdade, o Estado português é dono atualmente de mais de 40% do sistema bancário — e não só vai ter de subscrever um novo aumento de capital na CGD, como encaixar prejuízos vultuosos com o Novo Banco e com o Banif (que pode ter de ser engolida pela Caixa).

Uma última nota para dizer que a escolha de Sérgio Monteiro para liderar a venda do Novo Banco é excelente. Tem dois pequenos problemas: 1) é a confissão que o Banco de Portugal falhou em toda a linha na sua estratégia de uma venda rápida, sem consolidação da instituição e por um preço próximo dos €3900 milhões; 2) é a confissão de que o processo sempre teve mão do Governo e que vai continuar a ter até ao fim.


O escândalo da sobretaxa

Devido à situação política, tem estado a passar entre os pingos da chuva o que se passou com a anunciada devolução da sobretaxa de 3,5% sobre o IRS. Pois bem, no verão começámos a ter notícias de que, a cada mês que passava, aumentava a percentagem da taxa que seria devolvida aos contribuintes. Em agosto já ia em 35% e passavam-se mensagens de que seria possível devolver 50%. E eis que se chega às eleições, e eis que a coligação ganha, e eis que poucos dias depois sabemos que afinal já só é possível devolver pouco mais de 9%. Ou seja, em vez de 3,5%, podemos ficar a pagar 3,2%, O pequeno problema de tudo isto é que desde fevereiro, pelo menos, que o Ministério das Finanças sabia destas flutuações de mês para mês. E por isso nada disse, a não ser nos três meses antes das eleições, quando a receita cresceu de forma sustentada. Agora veio o balde de gelo. A isto chama-se manipulação. Enganar os cidadãos. Ou outros nomes feios. Avisem-nos para sairmos da sala quando nos vierem dar lições de ética.


Snacks e compotas

Portugal tem uma rica gastronomia, mas não é reconhecida pelos seus snacks. Pois bem, a Hot Nuts, uma empresa de Gaia, desenvolveu a “Cup Sensations”, para ser comercializada em hotéis e que está já presente nos EUA, Emirados Árabes e Bélgica. Nas compotas, a Quina de Prisca ou a Frulact disponibilizam produtos gourmet. Há seguramente mais exemplos. Mas estes mostram que cada vez mais as empresas apostam na inovação e qualidade para ganhar os mercados externos. É por aí que temos de ir.


A debandada de Angola

Primeiro foi o BCP, agora o BPI: a banca portuguesa, que até agora era dominante no mercado angolano, está a bater em retirada. O Millennium Angola fundiu-se com o Banco Privado Atlântico e o BCP passa a deter apenas 20% da nova entidade; o BPI, que consegue ali 70% dos seus lucros, está a ser obrigado pelo BCE a perder o controlo do Banco de Fomento. Se a isto se juntar que a Sonae decidiu abandonar o mercado angolano; e que a Somague e a Unicer anunciaram despedimentos em Portugal devido à quebra de obras e de consumo naquele pais constata-se, com luminosa nitidez, que as grandes empresas portuguesas começam a perder peso em Angola. Tem muito a ver com a quebra do preço do petróleo. Mas tem também a ver com o Estado paralelo que José Eduardo dos Santos construiu e que está demolidoramente descrito em “Magnífica e Miserável”, livro do investigador Ricardo Soares de Oliveira. É um poder insaciável, que cilindra quem se lhe opõe e que teria deixado morrer Luaty Beirão sem pestanejar.


O que é a esperança? Um animal com penas, pensei. Preferia ser capaz de a descrever de um modo menos obtuso. Ser capaz de pôr num dia a eternidade a germinar lentamente, isso sim, isso seria uma das formas de esperança reconhecível.

Alguém, com passos ágeis, procura dominar o desgosto que nos trouxe a esta sala.

Procura apaziguar a biologia, os fluxos e refluxos que a animam, a prometida destruição.

Alguém vigia por turnos a instabilidade da vida. Tem por ofício prognósticos humildes, uma cronologia de sábios gestos que o uso torna incertos e verdadeiros ou verdadeiros e incertos (a ordem dos termos tornou-se arbitrária).

A esperança é uma hipótese que anotámos no caderno mais próximo, esse que está em cima da mesa aguardando uma visita de acaso.

Luís Quintais, in ‘Um animal com penas’, in “Arrancar penas a um canto de cisne, Poesia 2015-1995”, Assírio & Alvim, outubro 2015 (1ª edição)

Como Passos e Maria Luís manipularam a devolução da sobretaxa

(Nicolau Santos, in Expresso Diário, 27/10/2015)

nicolau

Não foi sério. O que o governo cessante fez no caso da devolução da sobretaxa sobre o IRS tem um nome suave (manipulação) e outro menos suave (falcatrua).

Recordemos o que se passou na altura em que foi elaborado o orçamento do Estado para 2015. Paulo Portas queria um corte na sobretaxa de 3,5% sobre o IRS, criada ainda pelo anterior ministro das Finanças, Vítor Gaspar. Mas tanto Passos Coelho como Maria Luís Albuquerque opuseram-se. E no final da noite dessa longa reunião, o primeiro-ministro propôs então uma devolução da sobretaxa que obedeceria à evolução das receitas cobradas em sede de IRS e de IVA, desde que ficassem acima do previsto no Orçamento do Estado.

Mais: para que os contribuintes pudessem saber quanto iriam receber se a isso tivessem direito, o Governo comprometia-se a revelar mensalmente as estimativas da evolução daqueles dois impostos. Mas não foi o que aconteceu. Apesar de dispor dessas estimativas desde fevereiro, o Governo só as revelou em julho e agosto. Porquê? Eis a questão. É que, pelos vistos, o Ministério das Finanças já tinha a comprovação de que, de mês para mês, as oscilações eram muito significativas. Por exemplo, em fevereiro a estimativa de devolução era de 37,%, mas em março caiu para 7,9%.

Perante isto, o Governo calou-se, guardou os dados para si e começou a soltá-los no Verão: 12%, 20%, em agosto ultrapassava os 35% e, com a euforia no ar e as eleições a aquecer, os “spin doctors” foram fazendo chegar às redações a mensagem de que, por este andar, seria mesmo possível devolver 50% da sobretaxa no próximo ano devido à espetacular recuperação da economia.

Azar. Em setembro, a quebra na cobrança do IRS colocou a devolução do IRS em apenas 9,7%, o que significa que em vez de os contribuintes continuarem a suportar uma sobretaxa de 3,5% ela poderá reduzir-se para apenas 3,2%. Mas claro que este valor, por uma enorme coincidência, só foi conhecido depois das eleições de 4 de outubro.

Não há duas formas de classificar o comportamento do Ministério das Finanças e do Governo: manipularam deliberadamente a informação para captar o voto dos eleitores. E receberam a discreta ajuda de empresas como a Somague e a Unicer, que só fizeram os despedimentos coletivos que já tinham previstos na semana a seguir às eleições. É bom recordar estes comportamentos quando vierem falar ao país de ética.