Mistérios que o capital tece

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 17/03/2023)

Miguel Sousa Tavares

Suspendam a respiração enquanto nos garantem que o Silicon Valley Bank não tem nada a ver com o Lehman Brothers, que a Califórnia fica muito longe daqui e que o sistema bancário europeu de hoje não tem nada a ver com o de 2008. Suspendam a respiração porque já ouvimos isto antes e sabemos o que se passou depois, quando tudo desabou num instante como um castelo de cartas minado pelo mais simples e devastador dos males: a falta de confiança. A falta de confiança dos depositantes dos bancos e o pânico que rapidamente lhe sobrevém é justamente aquilo que, sobretudo depois de 2008, nos garantiram que não voltaria a acontecer, pois a lição fora aprendida e os reguladores nunca mais iriam afrouxar a guarda sobre essa imprevisível classe profissional dos banqueiros. Mas eis que ouvimos Biden dizer agora que ia apertar o controlo e a regulação, porque afinal ainda persistem zonas livres à disposição da imaginação e do aventureirismo dos banqueiros. As explicações técnicas e científicas para a falência do Silicon Valley Bank — certíssimas e lógicas a posteriori, como sempre — assentam na mesma raiz do mal tantas vezes vista antes: cobiça, risco desmedido, apostas num céu sempre azul, irresponsabilidade da gestão… Nada que não fosse previsível, pois essa é a natureza infalível dos banqueiros dos tempos modernos, aqueles a quem confiamos as nossas poupanças e que, na hora do desastre, temos de socorrer com os nossos impostos. Deve haver outra forma de fazer banca, mas, por alguma misteriosa razão, nem eles a cultivam nem os governos a ela os obrigam. Enfim, suspendamos a respiração a ver se desta vez os salvamos do desastre. Aliás, não há nada mais que possamos fazer.

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

2 Os tempos estão cheios de cavaleiros andantes de tristes aventuras destas. Ao mais alto nível, chamam-se Bezos, Musk, Zuckerberg e apresentam-se à Humanidade como génios dos tempos modernos, donos e detentores de um poder nunca antes detido por ninguém: a tecnologia e o capital necessário para deles fazer depender quatro quintos do planeta. Uma vez por ano reúnem-se em Davos, rodeados pela sua corte de clientes (governantes), de promotores (académicos e jornalistas) e de bobos da corte (cantores e “animadores” variados). Quando as acções das suas empresas escalam na Bolsa, permitem-se dar algumas lições de visão económica e de gestão ao mundo basbaque; quando as coisas correm mal, por falta de visão ou excesso de vaidade, despedem aos 10 mil de cada vez e a vida segue.

Abaixo do top existem, é claro, muitos outros níveis e subníveis: os salteadores da ex-União Soviética, os príncipes árabes, os milionários do comunismo chinês, os vendedores de armas e os barões da droga sul-americanos. Depois de devidamente reciclados e branqueados, tudo gente respeitável. Alguns feitos Sir, outros membros da Légion d’Honneur, cavaleiros disto e daquilo, professores honorários e até um rei emérito.

Entre nós, no fim da escala, tudo se passa a um nível lusitanamente provinciano. Num país desesperadamente à procura de heróis, os Presidentes ocupam boa parte do seu ocioso tempo a carregar o peito dos nossos “empreendedores” com comendas a que o tempo se encarrega de tirar todo o lustre: boa parte dos comendadores já levou as empresas à falência ou já acabou a prestar contas à Justiça. Temos, por exemplo, o caso do comendador Joe Berardo, o homem que, entre outras, conseguiu a proeza de ver o Estado emprestar-lhe em exclusivo o único centro cultural decente do país para ele armazenar a sua colecção de pintura. Depois da sua inesquecível prestação numa comissão de inquérito parlamentar, fiquei agora a saber que o Ministério Público desconfia que o comendador terá obtido um atestado médico falso a certificar que tem “dificuldades cognitivas” que o impedem de se defender capazmente em tribunal. Francamente, não percebo porque é que ele precisará de um atestado falso para certificar uma coisa evidente para todos. Quem precisaria de um atestado desses são aqueles que tanta confiança lhe deram.

3 Uma boa anedota é a versão que os americanos puseram a correr sobre a autoria da sabotagem dos gasodutos Nord Stream I e II. Teria sido então um grupo de seis aventureiros e patriotas ucranianos que, à revelia e com o desconhecimento das autoridades de Kiev, embarcaram num simples veleiro e mergulharam depois a 100 metros de profundidade para colocar os explosivos nos gasodutos, em quatro lugares diferentes, zarpando em seguida à vela Báltico fora. A comissão que há meses é suposto estar a investigar o caso — e da qual, obviamente, foi excluída a Rússia, co-proprietária dos gasodutos — ficou em silêncio sobre esta revelação. E o pobre chanceler Scholz, o outro co-proprietário, e que em Dezembro de 2021 ouviu da boca de Biden que o Nord Stream II nunca entraria em funcionamento, resolveu acolher esta versão: ele que antes declarara que a sabotagem só podia ter sido obra de um Estado com meios para tal. No Direito Internacional e nos meios políticos e de informação ocidentais, aquilo que aconteceu com os gasodutos chama-se terrorismo. Mas, nos tempos que correm e de acordo com as novas regras, parece que isso depende de quem o faz e a quem o faz.

4 Um relatório da OCDE agora divulgado, na parte referente à agricultura e ambiente, diz que o Sul do país perdeu 20% das suas reservas aquíferas na última década e que a agricultura superintensiva, responsável pelo problema, está ainda a contribuir para a erosão dos solos e, a prazo, para deixar o Alentejo e o Algarve sem água. Nada que algumas pessoas com juízo e um mínimo de preocupação não andem há anos a dizer à ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes. Mas a ministra, a quem nunca ouvi uma frase que fosse sobre o futuro da agricultura em Portugal, está-se borrifando para a OCDE ou para a falta de água: o problema é complicado demais para a sua cabeça e a solução demasiado arriscada para o seu futuro político. Esta semana, aliás, ela deu-me mais uma prova da sua estonteante incompetência ao falar sobre a escalada de preços nos supermercados e não só. Disse a senhora que está tão atenta ao problema que, inspirando-se no que havia sido feito em Espanha, tinha tratado, logo em Outubro, de constituir um Observatório Alimentar, para, justamente, ir observando a evolução dos preços e, supõe-se, agir depois em caso de necessidade ou estranheza. Previdente, hem? Pois, o problema é que o Observatório da senhora ministra, criado no dia 19 de Outubro de 2022… nunca saiu do papel. Ou seja, à boa maneira deste Governo, existe mas não existe. E, enquanto não existe existindo, os preços alimentares por cá subiram num ano 20%, três vezes o valor da inflação. E a ministra não sabe dizer porquê: está à espera do Observatório para saber.

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Entretanto, para sentir na carne o preço dos legumes, resolvi meter-me no carro e ir a Espanha ver como se passavam as coisas por lá. De onde eu vivo até Ayamonte são 45 quilómetros, logo compensados pelo preço do gasóleo: 20 cêntimos a menos por litro, 12 euros de poupança por 60 litros. Depois fui ao Mercadona, cujo dono disse esta semana que não era possível fixar os preços administrativamente. Pois, talvez não, mas ele não vive em Portugal, apenas vende aqui e deve estar bem satisfeito com isso. No seu supermercado de Ayamonte, por um cabaz de compras que aqui me teria custado entre 90 a 100 euros, paguei lá 62. E, passe a publicidade, a qualidade e a apresentação está muito além daquilo que estamos habituados e ver aqui nos nossos supermercados, desprovidos de qualquer brio e imaginação. No meio de toda esta controvérsia, falta-me informação (e um Observatório) para poder dizer quem é o responsável principal pela escalada de preços na alimentação entre nós, mas desconfio que os produtores não são.

Além de tudo isto, há um mistério que me intriga: temos dos vencimentos mais baixos da Europa a par dos mais altos impostos sobre o trabalho, mas pagamos mais do que quase todos os outros pela habitação, automóveis, energia, comunicações e, agora, alimentação. Portugal pode ser pobre, mas para alguns é um excelente negócio.

P.S. — Já depois de escrito e enviado este texto, caiu a bomba da crise no Credit Suisse, o equivalente a uma declaração de incêndio numa central nuclear. Trata-se de um dos 50 maiores bancos do mundo e o segundo maior do supostamente inabalável sistema bancário suíço. Quando já nem os suíços conseguem controlar os seus bancos, o mundo está definitivamente um lugar perigoso. Para agravar ainda mais os sinais de alarme, a crise é desenca­deada pelo maior accionista do banco, o Fundo Soberano da Arábia Saudita — um país outrora também garantido para a esfera americana e ocidental mas que na semana passada fechou um acordo estratégico de cooperação com a China e o Irão. Completamente cega ao que se passa e se pensa fora do seu mundo de influência e de informação controlada, a Europa, a reboque dos Estados Unidos, continua engajada naquilo que um dos seus responsáveis chamou há dias entusiasticamente uma “economia de guerra”, para manter activo e eterno o conflito na Ucrânia, desprezando quaisquer iniciativas de paz como alternativa.

A pior geração de políticos europeus dos últimos 100 anos não consegue ver o que está diante dos seus olhos e, enquanto se compraz em declarações grandiloquentes, assiste à destruição sistemática da Ucrânia e arrasta-nos a todos para o abismo. A diferença entre Putin e eles é que Putin é perigoso porque é louco e inteligente e eles são perigosos porque são todos sãos mas idiotas.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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Os “Jubileus” dos Saraivas

(Joaquim Vassalo Abreu, 08/04/2020)

Declaro-me emocionado com as reenvindicações dos donos do Futebol… e quase que choro….

Mas este País é pequeno e nele já não cabem os “Padrinhos”’do Futebol! Todos esses que actuando à margem das leis faziam entre eles a “ multiplicação dos pães “,  mas delapidando os seus Clubes e Sad’s.

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Estão agora remetidos ao seu silêncio estas “abébias”, mas elas rapidamente a terreiro voltarão para reclamar do ostracismo a que estão a ser votados e lembrar da falta que fazem…e perdões, mais perdões e mais ajudas pois o Proença e o Evangelista dizem que também são filhos de Deus…

Que trajédia, Deus meu! E os dinheiros daqueles fabulosos contratos conseguidos às margens das Leis? Que tal repatria-los e devolvê-los aos Clubes que tanto dizem amar? Confesso que isto me comove…

Mas mais emocionado fiquei ainda com as exigências do Saraiva, o patrão dos patrões, mais o seu apelo a um “Jubileu”… e aqui chorei mesmo…

Mas pergunto-me: numa fase como esta vir “pedinchar” ao Estado 20 mil milhões de apoios, isenções de impostos, adiamento ou corte de responsabilidades etc etc etc, não lhes dá assim como um alerta de consciência e admitam pensar: mas como é que eu ( eles) posso pedir apoio aos pobres Portugueses, já fartos de tanto dar, quando tenho (eles) milhões de milhões nos Panamás, Curaçaus, Bahamas, Caimões e muitas Ilhas Virgens?

E os banqueiros, meu santo Deus? E os Banqueiros agora “pressionados” e “chantageados”, como li aí de um “camelo” que insiste em falar? E os Banqueiros, coitados?

Pois, os Banqueiros! Que jogam com o dinheiro dos outros, que apostam milhões em “blufs” exorbitantes, capturados por essas autênticas “máfias” das compras de ações a descoberto ( Short Selling), a troco de umas migalhas em comissões, que apostam quase tudo nos “futuros” qual roleta, e que depois, envolvidos em imparidades e prejuízos, lançam todo o ónus sobre esses tais depositantes, que lhes confiam as suas poupanças, com absurdas comissões por tudo e mais alguma coisa e ainda com custos de serviços obscenos…

Mas nunca prescindindo dos seus chorudos prémios pois eles são únicos e pertencem a um clube privado, qual seita onde elaboram suas próprias leis!

Por exemplo, aquele do BCP, para não falar já do Jardim, nunca tinha sido banqueiro e em pouco tempo saltou de uma qualquer assembleia da Opus Dei directamente para presidente desse mesmo Banco. Esteve lá dois anitos e foi-se embora com um bónus de dez milhões de aéreos. Sim, esse mesmo, o da Leya e aqui confesso que já nem lágrimas tenho….

E enquanto o Marcelo vai interceder junto dos banqueiros para que tenham memória, sejam compreensivos, sejam tolerantes, pensem desta vez um pouco nos Portugueses, num exercício de bajulação e subserviência bacoca, a tal “pressão” e “chantagem” de que fala o tal Lourenço, o Saraiva afirma que o Governo está a agir com atraso…e fala num “Jubileu”…

E que tal Dr. Saraiva dizer a todas essas empresas portuguesas,  as quais o Sr. representa e é porta voz como chefe da CIP, que “patrioticamente” mandaram para a Holanda as suas SGPS’s e lá pagam os seus IRC’s, que voltem para Portugal e ajudem a economia pátria pagando aqui os seus impostos e não engordem mais quem de modo tão egocêntrico actua?

E, já agora, tome o lugar do penitente Marcelo e denuncie V.Ex a Banca, essa Banca que, pelos vistos, nesses empréstimos concedidos à Economia, tendo garantias do Estado que chegam aos 90%, ainda exigem garantias adicionais (e até reais) aos seus sócios ou administradores…

Fazia um favorzinho ao Governo, que diz estar a agir com atraso e um ainda maior ao Marcelo para evitar que ele a seguir se vista com uma sarapilheira, tipo Egas Moniz, e lhes vá novamente bater à porta…

E, finalmente, neste perdão de leves penas, que eu acho como precaução muito bem, porque razão não é libertado Rui Pinto da sua prisão condicional, quando aqueles “assassinos” do CEF estão em domiciliária? Mas quem tem medo do que ele possa revelar? Ou por outra, quem o mandou saber tanto…?

E não me digam que não lhes dá assim como que uma vontade de chorar…


As malas-artes do comendador

(António Guerreiro, in Público, 14/04/2019)

Saber que o empresário Joe Berardo deve quase mil milhões de euros à bancafaz-nos soltar um riso amargo quando, à entrada do Centro Cultural de Belém, somos esperados por grandes painéis a indicar que estamos a entrar no condomínio de luxo parcialmente ocupado pelo Museu — Colecção Berardo. A dívidas sumptuárias correspondem residências sumptuárias.

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A primeira residência do inquilino do CCB foi em Sintra, num Museu de Arte Moderna criado para o efeito, num edifício com alguma história e dimensão, mas que proporcionalmente à grandeza do ocupante era uma espécie de T2 na linha de Sintra. Dessa inauguração, em 1997, poderíamos dizer o que Marx disse, ao assistir à abertura da Exposição Universal de Londres, em 1851: “O povo acorreu para ver as mercadorias”. E é bem verdade que a arte, na visão marxista, representa a mercadoria por excelência: puro valor de troca e zero valor de uso. O povo que se deslocou a Sintra era toda a arraia-miúda e grossa das artes, em Portugal (e algumas espécies estrangeiras para fazer uma caldeirada cosmopolita), e gente vária e numerosa do campo artístico e cultural (para não me armar em snob, devo dizer que também lá estive, na condição de jaquinzinho). Berardo, pouco dado à fina eloquência, não se lembrou de dizer que estava a oferecer um presente a Sintra e a todos os portugueses; essas palavras ao estilo dos nobres mecenas do nosso tempo, que circulam entre a arte contemporânea e a indústria do luxo, foram proferidas por Bernard Arnault, o director executivo do grupo LVMH, quando inaugurou no Bois de Boulogne, em 2014, o museu da Fundação Louis Vuitton: “É um presente a Paris e à França” (e nesta noção de presente, cadeau, joga-se uma diferença essencial com a ideia de dom que informou, durante séculos, a actividade mecenática). Joe Berardo, muito longe do requinte destes novos príncipes, não o disse explicitamente, mas estava subentendido. E não precisava porque havia muita gente a dizê-lo por ele.

Sabemos agora, passados mais de 20 anos, que foram os portugueses, entretanto, que emprestaram cerca de mil milhões de euros (cem euros, cada português) ao empresário. Muitíssimo mais do que vale a colecção, quando for convertido o seu valor simbólico em valor real. Sabendo tudo isto, conhecendo bem a história, entramos no Museu — Colecção Berardo e o que vemos, obstinadamente, não é arte, mas activos financeiros. E activos financeiros dos quais somos investidores involuntários. Vemos então, em exposição, uma parafernália financeira, à espera de ser convertida em dinheiro para pagar dívidas ou iludir os credores que, apesar do nome, não crêem naquilo que jamais entenderão. E se entendessem exprimiriam certamente uma enorme impaciência perante as manobras deste coleccionador que quis, à escala portuguesa, ser o representante de uma plutocracia mundial que faz da arte contemporânea um laboratório de formas de criação de valor. Num momento em que o devir especulativo estava acelerado, aquela colecção exibia a solidariedade que a arte estabelece com o dinheiro e o “novo capitalismo”. Ao contrário das trocas comerciais tradicionais — em relação às quais as obras de arte ocupavam um lugar marginal, inscrevendo-se num regime particular do valor —, as economias neo-liberais integraram a arte nos mecanismos do mercado como um factor de investimento e especulação, uma das principais formas de investimento e de mais-valia, de circulação do dinheiro e de valores-refúgio. Mas a colecção mostrou também, nas suas andanças expositivas, que até uns restos de discursos sobre a autonomia artística não passam de uma tagarelice que não pode ser levada a sério. Joe Berardo foi o supremo representante do empresário que não empreende nada, instalado na financiarização da economia. A operação CCB/Colecção Berardo inscreveu-se numa lógica de valorizar a capitalização da totalidade da colecção.

A conclusão última — e escandalosamente política — desta triste história é que é possível encontrar no mundo da arte, onde menos se esperava, aquela oposição entre o capital e o trabalho que Marx definiu e analisou. De tal modo que, na sociologia do campo artístico, se inventou um mot-valise para designar esta nova figura a que corresponde a maior parte dos artistas: o prolartariado.