As estrelas do devorismo

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 26/11/2023)


As principais estrelas dos devoristas de Novembro de 75 estão reunidas num ato celebratório em Almada, no Congresso do PSD. A data escolhida é muito apropriada. Estão no tempo certo para celebrar o saque que a contrarrevolução lhes proporcionou, mas argumentam com a liberdade ameaçada e o perigo da guerra civil. Seja. Para mim é matéria dada e para eles é matéria recebida. Voltemos aos nossos bolsos, o lugar onde tradicionalmente trazemos a carteira com todos os nossos cartões, os do dinheiro e os que dizem quem somos, o do cidadãos e o do contribuinte. Para o cerimonial dos devoristas ser perfeito, em vez de um pavilhão em Almada deveriam reunir-se na antiga sede do BPN, na rua Marquês de Fronteira, a grande obra dos devoristas, que hoje são oligarcas impolutos. Mas atrás de uma grande fortuna há sempre um crime. A frase é atribuída de Balzac, e convém recordá-la, porque estes crimes não passam no Correio da Manhã.

O suplemento «Dinheiro Vivo», do Diário de Notícias de 6 de Maio de 2019 apresentava um resumo da situação que está a ser comemorada, como um passo para impor uma ideologia que promova a sua ascensão política ao centro das decisões do Estado e de, a partir dele, ao poder de saque sobre as riquezas nacionais. Os devoristas do 25 de Novembro pretendem celebrar a reconquista da banca e do poder de obrigar o Estado a pagar os riscos dos negócios especulativos, de tornar o negócio da banca sem riscos e com alta rentabilidade. A Banca, é a Banca, estúpidos que se celebra. estamos exatamente no mesmo ponto que levou o fundador da família a confessar o segredo do poder: ‘’Deixem-me emitir e controlar o dinheiro de uma nação e não me importa quem faz as suas leis’’.

Elementos retirados do suplemento «Dinheiro Vivo», do Diário de Notícias. As ajudas do Estado aos bancos portugueses custaram aos contribuintes quase 10% do produto interno bruto, que em 2018 estava nos 201 mil milhões de euros. Em vez de financiar a criação de riqueza do país, a banca nacional tem sido um sorvedouro de dinheiro dos portugueses, numa fatura que não cessa de aumentar. São 17 mil milhões de euros. A fatura foi emitida no fim do ano passado (2018) pelo Tribunal de Contas, detalhando o custo de cada banco alvo de intervenção do Estado na última década. Se acrescentarmos o mais recente pedido de “ajuda” do Novo Banco, a fatura deverá este ano (2019) ultrapassar os 18 mil milhões de euros. Trocando por miúdos, cada português já contribuiu assim com 1.800 euros para ajudar a salvar a banca. No Orçamento do Estado para 2019, o governo inscreveu uma despesa de 850 milhões para ajudas à banca, mas o encargo tem tudo para ser maior, já que o Novo Banco vai pedir ao Fundo de Resolução, que é financiado pelo Estado e pelos bancos, mais 1.149 milhões de euros. No que toca a ajudar bancos em problemas, o nosso país não tem igual entre os seus parceiros europeus. Segundo dados do Eurostat analisados pelo Dinheiro Vivo, Portugal é o Estado com a fatura mais pesada da Europa a 28, registando ainda a segunda maior taxa de esforço relativamente ao produto interno bruto. Só no espaço de três anos, entre 2014 e 2017, os contribuintes portugueses pagaram 12,8 mil milhões de euros em apoios ao setor financeiro, com uma taxa de esforço equivalente a 6,6% do PIB. Portugal gastou mais dinheiro em ajudas à banca do que Itália, uma economia oito vezes maior do que a nossa e que, com 10,5 mil milhões de euros, aparece em segundo neste pouco desejado ranking europeu.

As estrelas do devorismo resultante do 25 de Novembro de 1975 não foram, ao contrário do que se poderia pensar à primeira vista, nem frequentadores do Bar Tamila, nem militares contratados dos Comandos, nem sequer residentes da Quinta da Marinha, nem mesmo cónegos na Sé de Braga, foram o Banco Português de Negócios, o BPN sem fundo, e o Novo Banco. Não foram Eanes nem Jaime Neves, foram Cavaco Silva e Oliveira e Costa, entre outros. O BPN foi o banco do núcleo duro dos devoristas, vale muito mais do que o Regimento de Comandos. O caso BPN refere-se a um conjunto de manobras típicas das ações de assalto sem dor, corrupção, lavagem de dinheiro e tráfico de influências, e que conduziram ao objetivo de levar o banco à nacionalização, isto é, a colocar na conta do Estado os prejuízos resultantes do saque. Ao BPN estavam ligados ex-membros dos devoristas reunidos no X Governo Constitucional, chefiado por Cavaco Silva, como Dias Loureiro, José Oliveira e Costa, Duarte Lima e Miguel Cadilhe. Entre as organizações envolvidas encontram-se, além do BPN, a Sociedade Lusa de Negócios e o Banco Insular. O BPN teve até à sua venda pelo governo PSD/PP chefiado por Passos Coelho ao BIC um custo para o Estado Português de 7 mil milhões de Euros. Não foi dinheiro deitado ao mar. Foi comido pelos devoristas que, como parece evidente, têm bons motivos para celebrar. E a maioria lá estava em Almada, lavadinhos e passados a ferro.

O BANIF seria uma das outras realizações dos devoristas de Novembro. O Banco Internacional do Funchal, de Horácio Roque, herdeiro da Caixa Económica do Funchal e com raízes em Angola, surge numa reportagem da revista Sábado como uma máquina onde foram lavados 1,4 mil milhões de euros dos negócios da elite angolana e com extensões ao escândalo Lava Jato do Brasil. Um banco que acabaria por ser intervencionado pelo Estado português, que o vendeu ao Santander no final de 2015 por 150 milhões de euros, apesar de a operação ter envolvido um apoio total de 2,4 mil milhões de euros por parte dos cofres do Estado. Dinheiro que foi parar aos bolsos de alguém que tem boas razões para celebrar o 25 de Novembro.

O nome seguinte na lista de motivos celebratórios do 25 de Novembro é o do BES/Novo Banco, alvo de uma medida de resolução em Agosto de 2014, apoiado pelo então governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, um quadro da área do PSD, quando o Governo decidiu dividir o antigo Banco Espírito Santo numa parte má e numa parte boa, que ficou com o nome de Novo Banco. Desde então o banco outrora liderado por Ricardo Salgado, custou aos cofres do Estado 4,6 mil milhões de euros, valor que deverá aumentar com o «saneamento» do Novo Banco, entretanto comprado pelo fundo norte-americano Lone Star. Uma prática recorrente nos sistemas de oligarquia, a parte boa fica para os oligarcas, a parte má para o comum das gentes.

Na lista de prejuízos o caso mais desastroso para o erário público acaba por ser o do BANIF, como admitiu Mário Centeno, antigo ministro das finanças e atual governador do Banco de Portugal, que em declarações ao Financial Times revelou que, tendo em conta que o BANIF era apenas o sétimo maior banco português, “foi provavelmente o mais dispendioso resgate de um banco na Europa”.

Num resumo que devemos aos devoristas: a reorganização dos bancos após a reprivatização resultante do 25 de Novembro eliminou todos os bancos anteriores, o Banco Português do Atlântico, o Pinto&Sottomayor, Pinto Magalhães, Fonsecas&Burnay, entre outros mais pequenos e eliminou pelo menos dez mil postos de trabalho. No caso do BPN, o mais antigo deste rol, o peso para as contas públicas tem-se prolongado no tempo e não dá mostras de ter chegado ao fim. Segundo o Tribunal de Contas, a fatura da nacionalização do Banco Português de Negócios, em proveito dos acionistas, não tem parado de crescer, mesmo tendo em conta a venda e a criação de sociedades estatais que acabaram por ficar com os ativos da instituição que foi liderada por José Oliveira Costa.

O BPN, o Banco Português de Negócios fez de Portugal um banco de negócios para os devoristas. O BPN é o paradigma do 25 de Novembro de 1975 e da nova classe no poder. No final de 2017, o saldo acumulado das receitas e despesas orçamentais decorrentes da nacionalização e reprivatização do BPN e da constituição e funcionamento das sociedades-veículo Parups, Parvalorem e Parparticipadas ascendia a 4.095 milhões de euros, revelou o parecer do Tribunal de Contas. Aliás, os juízes do Tribunal de Contas admitem que a conta do BPN poderá chegar perto dos 6 mil milhões de euros. Um buraco sem fundo, portanto. É este buraco que Moedas, um antigo alto funcionário do maior banco de investimentos do mundo, o Goldman Sachs e os neoliberais querem celebrar, em nome da liberdade e da democracia! E lá o vimos na Caçada da Ajuda a pendurar uma coroa de flores em memória de militares mortos por uma qualquer causa que não seria, com certeza, a de produzir Moedas! E ficamos por aqui na celebração? Em 25 de Novembro de 2023, celebramos 17 mil milhões de euros engolidos pelos devoristas. mas há ainda as privatizações!

Nos últimos vinte anos, os governos do devorismo, do bloco de interesses vencedor do 25 de Novembro de 1975, decidiram privatizar as mais importantes empresas, empresas estratégicas, à cabeça, a Eletricidade de Portugal (EDP) e as redes nacionais de energia (REN). Estas empresas foram privatizadas em 2011 e tiveram a triste fama de serem maiores privatizações do ano na Europa. Durante 2012, 2013 e 2014, dos devoristas dos governos liderados por Passos Coelho (agora erigido em homem providencial) Portugal ocupou o primeiro lugar no número de vendas a nível europeu e a justificativa política foi a superioridade da gestão privada, combinada com a pressão das instituições europeias para reduzir o déficit e a dívida. Entre 1994 e 1998 a EDP registou mais de dois mil milhões de euros em lucros, em outubro de 2000 o Estado vendeu 20% das ações da EDP, mas apenas 10% da venda permaneceu em Portugal, cerca de 70% das ações foram comprados na Inglaterra e nos Estados Unidos. Entre 2004 e 2009 a EDP entregou aos acionistas em dividendos mais de mil milhões de euros, apesar de acumular uma dívida gigantesca equivalente a cerca de 9% do produto interno bruto português. Em 2015 a EDP continuava no topo da remuneração de acionistas e gestores e a dívida manteve-se aos níveis dos dez anos anteriores. As privatizações da EDP e da REN causaram polémica quando o Ministério Público identificou sinais de tráfico de influências, manipulação de preços e tráfego de informação privilegiada em 2012. Ninguém foi julgado. Em 2011, o presidente da empresa chinesa encarregada de dirigir a compra da EDP (Three Gorges) considerou que a compra era barata e no ano seguinte foi promovido ao comitê central do Partido Comunista Chinês e nomeado vice-governador de uma província chinesa. Durante esse processo surgiram mais irregularidades, a Associação Transparência e Integridade registou que na comissão eventual para o acompanhamento das medidas do programa havia deputados com interesses diretos em empresas envolvidas em privatizações. O Tribunal de Contas reuniu-se apenas com a comissão de acompanhamento da privatização da EDP quando o negócio já estava fechado, e as nomeações para os órgãos sociais da EDP pelo acionista chinês causaram perturbação (um deles, Rocha Vieira, foi o orador principal na celebração do 25 de Novembro na Câmara Municipal de Lisboa!). A EDP foi a empresa que mais dividendos entregou aos acionistas entre 2008 e 2015 (4,4 mil milhões de euros). A maior parte desses lucros resultou das rendas excessivas pagas pelo Estado. A empresa Redes Energéticas Nacionais (REN) integrou o grupo Energias de Portugal (EDP) até 1994, quando foi constituída como uma empresa pública autónoma com a propriedade de redes de transporte de energia importadas e produzidas em Portugal. O Estado deteve a administração da empresa até 2014, quando as últimas ações da empresa foram vendidas e passaram para o controlo chinês. A TAP foi outra importante empresa privatizada. O processo foi objeto de investigação pela Procuradoria-Geral da República devido a suspeitas de corrupção e tráfico de influência. Também sem consequências. Em 2015 foi anunciada a venda da companhia à Atlantic Gateway, e um ano depois, em 2016, o governo anunciou que está em processo de recuperação de 50% do capital, através de um processo de reprivatização da empresa. A empresa Aeroportos de Portugal (ANA), também foi privatizada em 2012, e vendida à Vinci (uma empresa de construção civil francesa) por 3 mil milhões de Euros.

Este é o retrato do resultado do 25 de Novembro de 1975 que os devoristas, a fação dos negócios da grande frente conservadora está a comemorar como ato de preparação para nova vaga de assalto, agora aos fundos PRR.

É um retrato contabilístico que esquece ganhos políticos e sociais? Não esquece, apenas lembra o que deliberadamente tem sido ocultado. Os ganhos têm sido devidamente celebrados: são apresentados como os benefícios da democracia. Mas foi com um regime democrático que o saque aos bens públicos foi efetuado! E esse facto devia fazer-nos refletir, e a todos os europeus, sobre a qualidade desta democracia. Em que medida a nossa liberdade de expressão de vontade em eleições determina as decisões que permitem a acumulação de riqueza nas mãos de grupos organizados e fora de controlo democrático? Como surgem o BPN e o Novo Banco no regime democrático? Como surgem PPP para autoestradas, pontes e hospitais? Como surgem as administrações dos órgãos de manipulação da opinião pública? Quem controla os cambões entre as grandes cadeias de distribuição de onde saem os preços dos produtos essenciais? Quem controla o aparelho judicial que seleciona os seus alvos?

A grande questão do regime democrático é a tradução da vontade dos cidadãos em atos que determinam a vida da polis. É sobre essa tradução que devíamos estar a discutir. Devíamos, neste 25 de Novembro, como em todos, e nos 25 de Abril refletir como os devoristas chegaram ao poder e não a celebrar o modo como chegaram.

A frase atribuída a Churchill de que a democracia é o pior dos regimes, com exceção de todos os outros, é uma falácia. Cai bem, mas não é verdade. É um logro. A democracia inglesa foi sempre e é ainda hoje o regime de maior sucesso mundial baseado no princípio da servidão voluntária. Basta ler a história de Inglaterra, da sua Grande Revolução, a biografia de Winston Churchill e do fundador da família, no século dezoito, John Churchill, primeiro duque de Marlborough.

A propósito aproximam-se eleições e há o PRR!

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Na véspera de Agosto atira-se milho aos pardais — ou pão seco antes do circo estival

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 29/07/2023)

Agosto é entre muitas outras coisas o mês do esquecimento: os problemas ficam esquecidos, assim como as más notícias. O final de Julho é a época de colocar as “vergonhas” que não convém serem muito badaladas fora de portas. Até a Justiça realiza as suas últimas tropelias e se veraneia. Os bancos não escapam à regra de camuflar as garras. Logo os bancos! Este ano aproveitaram a última semana de Julho para anunciaram os seus feitos, os pornográficos lucros obtidos à custa de um sistema financeiro imposto pelos banqueiros aos povos e aos Estados.

O que deveria ser um crime de esbulho, de imposição de regras leoninas, de abuso de poder, é apresentado como sucesso em todo o mundo. Aqui em Portugal também. Antes de fazerem a mala para o Agosto na terra de origem, à beira mar, num parque de campismo, num quarto alugado, num hotel, os portugueses de todos os níveis rendimentos e classes receberam, as seguintes notícias bancárias, sem alarido, ou com o menos alarido possível:

“Maiores bancos com lucros acima de 950 milhões de euros” — sapo.pt“

Banca. Lucros do primeiro semestre rondam os dois mil …” — RTP

“O “super ano” dos bancos: mais de 2.000 milhões de lucros …” -CNN (delegação portuguesa na TVI)

“Aumento das taxas de juro leva lucros da banca para mil milhões” — Abril, Abril

“Lucro do BCP dispara mais de 500% para 423 milhões … “ – sapo.pt (07/07/2023)

“Lucro do Novo Banco sobe 39,9% no primeiro semestre — “O Novo Banco apresenta um resultado líquido de 373,2 milhões de euros (1.º trimestre: 148,4 milhões de euros; 2.º trimestre: 224,8 milhões de euros), demonstrativo da evolução sustentada do negócio e da capacidade de geração de receita e de capital”, refere a entidade em comunicado enviado à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). No período em análise, primeiro semestre, a margem financeira ascendeu a 524 milhões de euros, mais 95,5% em termos homólogos.” — SIC Notícias 28/07/2023

“Lucro do BPI aumenta 26% para 256 milhões de euros até junho “- Banca & Finanças“Lucros da CGD sobem 25% no semestre para 608 milhões” — Jornal de Negócios

“Lucros do Montepio mais que triplicam, para 35,3 milhões, com subida da Euribor.Margem financeira cresceu 70,4%, beneficiando do aumento das taxas de juro, mas depósitos e créditos diminuíram”. — Público

Em 2008 a situação em que os bancos, o sistema financeira e bancário colocou os cidadãos, foi de crise e empobrecimento. A chamada crise do subprime obrigou os Estados, os contribuintes e cidadãos em geral a pagar as más práticas (os crimes) dos bancos.

Um exemplo da internet, do Público, com uma notícia da Lusa de 23 de Dezembro de 2008: “O ano da crise que obrigou estados a voltar a intervir na economia. 2008: O ano da crise que obrigou estados a voltar a intervir na economia.

As consequências imediatas deste colapso (o colapso do sistema de aliciação dos bancos para a contração empréstimos sem garantias, uma burla gigantesca) ficariam restritas ao sector bancário norte-americano, porém, se o risco não se encontrasse disperso por todo o sistema financeiro internacional (a dolarização imposta pelos EUA). O risco do ‘subprime’ passou a ser partilhado não só pelos bancos norte-americanos que concederam os empréstimos, como também pelos seus congéneres europeus e asiáticos que compraram estes activos ‘tóxicos’, bem como por todo o tipo de investidores institucionais (seguradoras, fundos de investimento, etc).”

Os cidadãos de todo o mundo foram obrigados a pagar a criminosa burla do subprime, o BCE colaborou com ela impondo regras draconianas aos bancos nacionais e aos Estados (a troika em Portugal e na Grécia, p.ex). Em Portugal o maior estoiro foi o do BES, mas há também o Banco Privado e os casos de aproveitamento do tipo gangster do BPN e do BANIF.

Agora, após a lição do subprime, o sistema bancário com sede nos EUA (a Reserva Federal (FED)) precaveu-se e antecipou o combate à inflação que a guerra na Ucrânia e o surgimento da moeda dos Brics irá provocar no “Ocidente Alargado”, na verdade o “Ocidente Dolarizado” decretando aumentos brutais de taxas de juro, que permitem aos bancos privados acumular reservas, de jogar com as taxas de juro, tudo à custa dos cidadãos.

Para já, a ligeira descida de inflação provocada nos bens de consumo pelo aumento das taxas de juro, as pessoas gastam menos, tem um efeito devastador no mercado da habitação, como se está a ver, que será pago por proprietários, arrendatários, por hipotecários e até por sem abrigo (contando nestes os jovens e menos jovens que necessitam de casa para uma vida autónoma). Mas a médio prazo o aumento das taxas de juro provocarão uma deflação, isto é uma diminuição na atividade económica ainda por quantificar. Vender-se-á e comprar-se-á muito menos, as falências aumentarão e com elas os desempregados.

Era a boa altura, se os banqueiros tivessem princípios e não mãos de rapinar e instinto de predadores que se atiram a tudo o que brilha, sem cuidar das consequências futuras colaborarem com a atenuação das consequências das suas políticas. Era também altura de os políticos eleitos se atravessarem impondo a vontade e as necessidades dos eleitores. Era altura de pensar numa ordem mundial plural e não hegemónica. Mas isso ia contra a manutenção do poder da banca e das indústrias de guerra e de manipulação civilizacional — a imposição de um pensamento e de um modelo de comportamento único.

Era…

Entretanto, antes destas férias, aqui em Portugal, os banqueiros e o “sistema” entretém-nos através dos seus meios de manipulação com a sala de partos dos vários hospitais, com as greves dos seus sindicatos (há os que o são deliberadamente outros por serem idiotas úteis), com o futebol e respetivos negócios, com os coloides fecais nas praias e com as alforrecas, com os incêndios, embora o tempo não tenha ajudado, com as peregrinações e a eterna questão dos professores, e jamais com a dos alunos e com a educação, com as diatribes do juiz Alexandre a pensão do Pinho, com o helicóptero do Pereira da Altice e com os namoros dos famosos.

Em vez de um roubo de proporções catastróficas e globais, os bancos impingem-nos fait-divers. Pão seco e circo.


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Perderam a vergonha

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 19/05/2023)

Miguel Sousa Tavares

Contas feitas, percebe-se que os ganhos resultantes do notável desempenho do PIB não foram parar às mãos dos pensionistas, nem dos trabalhadores do sector privado, nem dos funcionários públicos, todos com aumentos em 2022 aquém da inflação: foram parar às mãos do Estado e da banca. Os banqueiros nacionais cavalgam a onda de euforia com taxas de juro nos empréstimos que são um garrote para famílias e empresas e remuneram a poupança dos clien­tes com taxas a rondar o zero. E com isso festejam o “sucesso” da sua gestão, anunciando lucros extravagantes aos accionistas e atribuindo-se os correspondentes prémios pornográficos de gestão. “É o mercado a funcionar”, diz o presidente da Associação de Bancos, Vítor Bento. Não, não é: é exactamente o contrário, é um pequeno mercado, funcionando em concertação, a deturpar as regras do jogo. E, por isso, quando o banco público anuncia um comportamento mais decente, logo aparece um banqueiro (António Esteves, no último Expresso) a defender que não faz sentido haver um banco público e que a CGD deveria ser privatizada. Parece que já não se lembra que isso foi feito no passado e que, após várias peripécias pouco edificantes, os banqueiros nacionais que não correram a vender os bancos a estrangeiros acabaram a ser resgatados pelo Estado depois de indecorosas falências. Custou-nos para cima de 20 mil milhões de euros, que poderiam ter sido gastos em tantas coisas mais de que o país precisa e cuja gratidão a classe demonstra agora e assim uma vez mais.

ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Mas, no lugar deles, eu usaria de cautela. Este tom de arrogância com que hoje se nos dirigem é certamente ainda herdeiro da crença em tempos anuncia­da por Fernando Ulrich sobre a paciên­cia dos portugueses: “Ai, aguentam, aguentam!” Pois eu não estaria tão certo. A história por vezes dá cambalhotas imprevistas e nada lhes garante que da próxima vez em que estiverem por baixo e em pânico alguém tenha pena deles.

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2 Há dias, a TVI passou uma notável reportagem acerca de um tema sobre o qual também já aqui escrevi: a revolução ferroviária em Espanha, comparada com o que se passa em Portugal. Para tudo resumir rapidamente, a Espanha agarrou na oportunidade dos dinheiros europeus, que nós destinámos não se consegue perceber bem a quê, para levar a cabo uma verdadeira revolução do transporte ferroviário. Enquanto nós ainda insistíamos na pré-histórica “bitola ibérica”, convencidos de termos a companhia deles, eles investiam tudo na bitola europeia e na alta velocidade, deixando-nos a ruminar sozinhos com a “bitola lusa” e a lamentar que eles se tenham desinteressado de reactivar o Lusitânia Expresso. Enquanto eles compravam comboios ultramodernos e confortáveis, Pedro Nuno Santos (P.N.S.) gabava-se de ter comprado barato a sucata da Renfe para a mandar restaurar em Gaia. Enquanto eles, no espaço de três anos, encheram o mapa de Espanha de linhas de alta velocidade, e continuam, nós apostámos em melhorar linhas caducas, sempre ultrapassando os prazos e preços das empreitadas e nunca garantindo com isso comboios mais rápidos. Enquanto eles abriam a exploração das linhas a operadores estrangeiros, atraindo franceses e italianos em concorrência com a estatal Renfe, o sempre visionário P.N.S. declarava que “a ferrovia é importante de mais para não ser exclusivo português” e o TGV, se um dia chegasse, seria um negócio tão bom para a CP que estava fora de questão abri-lo à iniciativa privada. Conclusão: enquanto nós continuamos basicamente com um serviço ferroviá­rio igual ao que havia em meados do século passado, em Espanha a linha de alta velocidade abrange já milhares de quilómetros ligando o país todo e os seus comboios são três vezes mais rápidos do que os nossos e cinco vezes mais baratos — o que teve como consequência imediata multiplicar por quatro o número de passageiros, serem todos rentáveis e fazer mais pela redução da poluição atmosférica do que dezenas de vácuos discursos. É a diferença entre fazer política para as juventudes partidárias e os congressos do partido ou fazer política de serviço público.

Ao contrário do que P.N.S. defendia, qualquer tentativa para dar finalmente aos portugueses um verdadeiro serviço ferroviário tem de começar obrigatoriamente pelo encerramento desse cancro chamado CP, que já demonstrou bastas vezes não ser regenerável. E é óbvio que não será também com João Galamba, o discípulo ideológico e metodológico de P.N.S., que isso se fará. Enquanto todos os comentadores e os ditos “opositores” andam salivando de entusiasmo com os episódios, menos que menores, de Galamba, o seu adjunto, o computador, o SIS e outras coisas que não têm que ver com nenhuma política ou ausência dela, aquilo que interessa passa-lhes ao lado. Por exemplo, a forma como Galamba, o fura-greves de serviço ao Governo, pôs fim às intermináveis greves dos maquinistas da CP na semana passada. Confrontado com um caderno reivindicativo que, entre outras exigências impossíveis de satisfazer numa empresa eternamente deficitária, contemplava a extraordinária reivindicação de “horários compatíveis com a vida familiar” (imagine-se o mesmo exigido para aviação, aeroportos, serviços de saúde, forças de segurança, etc.), o que fez Galamba? Suprimiu o revisor nos comboios onde a afluência o não justificava, e o dinheiro que a CP pagava aos revisores passará a pagar, em acréscimo, aos maquinistas — pois que, como se compreende, é mais difícil conduzir um comboio que não tem um revisor lá atrás, nas carruagens. Resultado: acabou a greve dos maquinistas e vão começar greves dos outros trabalhadores da CP, que se dizem discriminados. Melhor ainda: como isto foi negociado directamente pelo ministro, passando por cima da administração da empresa, e estes não se demitiram depois de terem sido assim desautorizados e humilhados, imagine-se o regabofe que será agora a gestão daquilo. E a isto — atirar dinheiro para cima das greves, sem uma ideia de futuro, e assistir tranquilamente à degradação contínua de um serviço essencial para o país — chamam pomposamente “a ferrovia”!

3 Num momento em que o SNS atravessa uma crise que faz duvidar da sua própria sobrevivência, a promoção da saúde pública — titulada por uma Secretaria de Estado com o mesmo nome — não teria mãos a medir, se não com as drásticas medidas de fundo necessárias, ao menos com uma infinidade de outras, que, não sendo drásticas, poderiam, com imaginação, facilitar a vida de quem espera em vão pela ajuda pública em matéria de saúde. Mas, não alcançando tais altos voos e à míngua de fazer prova de vida, a senhora que tutela a tal Secretaria de Estado lançou mão do mais habitual dos expedientes: novo pacote de sanções contra a Rússia, perdão, contra os fumadores. A sua proposta de lei, caninamente aprovada em Conselho de Ministros, não contém uma só medida que promova ou defenda a saúde pública ou proteja os direitos dos não fumadores: é apenas um (mais um) castigo infligido gratuitamente aos fumadores, e porque sim. Proibir, como ela diz, impante, os fumadores de practicamente fumar em todos os lugares ao ar livre seria eficaz se ao mesmo tempo proibisse todos os veículos de circular na via pública ou os paquetes de Lisboa, a maior fonte de poluição atmosférica da cidade, de se manterem com as caldeiras a funcionar enquanto estão atracados. Restringir a venda de tabaco apenas às tabacarias vai obrigar os fumadores a gastar mais tempo e gasolina à procura de postos de venda e vai reduzir o negócio a muitas pequenas lojas, mas não vai impedir um único fumador de deixar de o ser. Convidar os concessionários das praias a proibir os fumadores de fumar nos seus espaços é atribuir-lhes um direito, inconstitucional, de estabelecerem a lei num espaço do domínio público marítimo e convidá-los à parceria fascisto-higiénica da sua mentora. Quanto à nobre intenção, que resta, de proteger a saúde dos fumadores de si mesmos, é coisa que não cabe nas funções governativas da senhora — da minha saúde ocupo-me eu, estalinismos dispenso. A sua propostazinha é apenas o conhecido e ancestral reflexo irresistível da tentação ditatorial do pequeno funcionário: gozar os seus 15 minutos de fama e de poder absoluto, remédio efémero para as suas frustrações ou vaidades pessoais.

Mas a democracia, minha cara secretária de Estado, distingue-se dos demais regimes não apenas por ser o governo legítimo de uma maioria sobre uma minoria mas, sobretudo, por ser aquele em que uma maioria respeita os direitos de uma minoria. Espero bem que a Assembleia da República, que, por iniciativa do PAN, já concedeu aos animais muito mais direitos do que hoje os fumadores têm, lhe explique isto quando for votar a sua vergonhosa proposta de lei.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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