Sou alérgico a qualquer tipo de jogo e não gosto de jogos de azar; não porque eu seja ruim nisso, veja bem, mas simplesmente não é a minha praia. Eu sou o que os corretores de todos os tipos mais odeiam: um investidor que compra e mantém. Eu tenho uma espécie de bola de cristal e olho para ela periodicamente, defino o curso de acordo e o mantenho por décadas. Olhei para ele um pouco antes do ano 2000 e com base no que vi, liquidei todos os fundos mútuos e comprei um monte de ouro. Isso me rendeu apenas cerca de 600% de retorno…
Exceto em tempo de guerra, o capitalismo procura invariavelmente controlar a inflação criando uma recessão; e isto acontece mesmo quando a inflação foi causada por um aumento autónomo das margens de lucro dos capitalistas, as quais são inflexíveis em baixa e portanto não seriam reduzidas por uma recessão. Esta estratégia é prosseguida porque uma recessão reduz invariavelmente a procura de produtos primários e, consequentemente, os seus preços; isto serve para reduzir a inflação. Do mesmo modo, uma recessão aumenta a taxa de desemprego e reduz assim a força negocial dos trabalhadores empregados, o que significa que os trabalhadores não obtêm aumentos salariais que os compensem pelo aumento do seu custo de vida; também isto serve para baixar a taxa de inflação.
Se pensarmos nos três pretendentes daquilo que é produzido numa economia capitalista – nomeadamente os capitalistas, os trabalhadores e os fornecedores de produtos primários sob a forma de alimentos e materiais correntes – então pode dizer-se que a inflação emerge porque as pretensões sobre o produto destes três em conjunto excedem a própria produção. A política anti-inflacionária sob o capitalismo consiste portanto, invariavelmente, em baixar as quotas dos dois últimos grupos e não as dos capitalistas, reduzindo a sua força negocial através de uma recessão.
É significativo que mesmo economistas liberais americanos, que reconhecem serem os trabalhadores as vítimas da atual inflação, ainda assim recomendam controlar os aumentos de salários monetários, ou seja, aumentar ainda mais o fardo sobre os trabalhadores, como meio de controlar a inflação. Uma vez que esta é a lógica do capitalismo e que a perspectiva dos economistas liberais está confinada exclusivamente ao capitalismo, eles encaram o modo do capitalismo de controlar a inflação como o único possível. E é também evidente que a motivação do capitalismo para controlar a inflação não reside em qualquer simpatia pelos trabalhadores por ela esmagados (pois então não estaria a procurar controlar a inflação à sua custa), mas sim no facto de a inflação prejudicar interesses financeiros; o valor real dos ativos detidos pela oligarquia financeira é reduzido pela inflação.
Mencionei acima dois grupos à custa dos quais a inflação é perseguida a fim de ser controlada sob o capitalismo. Mas se um destes grupos conseguir resistir a um esmagamento, então o sistema precisa de esmagar o outro grupo ainda mais drasticamente a fim de controlar a inflação. E para fazer isso precisaria de impor uma recessão ainda mais drástica. Isto é exatamente o que parece estar a acontecer no momento presente.
No dia 2 de Abril, os países da OPEP+, constituídos pelos 13 membros da OPEP e 11 outros países não OPEP produtores de petróleo que incluem a Rússia, decidiram reduzir a sua produção petrolífera em 1 milhão de barris por dia a partir de Maio e até pelo menos o fim deste ano. Este corte ultrapassa o anunciado pela OPEP+ em Outubro do ano passado, da ordem dos 2 milhões de barris por dia. Aquele corte ocorrera apesar da pressão maciça em contrário exercida pelos Estados Unidos. Joe Biden, o presidente dos EUA, havia enviado vários dos seus ministros à Arábia Saudita, um líder da OPEP e um aliado próximo dos EUA, e havia mesmo visitado pessoalmente aquele país, a fim de o persuadir a evitar tal ação – mas em vão. Mesmo contra o presente corte os EUA exerceram uma pressão imensa, mas mais uma vez em vão. Estes cortes na produção são o testemunho do declínio da hegemonia dos EUA que se tem verificado ultimamente.
O argumento apresentado pela OPEP+ para o anunciado corte na produção é que a procura de petróleo está a ser reduzida devido à recessão. Por outras palavras, argumentam que quando há uma redução na procura de petróleo, os produtores estão em melhor situação se a produção ao invés do preço for reduzida, que é de facto o que estão a fazer cumprir. O seu argumento pode ser entendido como se segue: suponhamos que há uma redução de 10% na procura ao preço atual; se a produção for reduzida em 10%, então o preço permanece inalterado e as suas receitas totais também caem em 10%. Mas se deixarem a produção permanecer inalterada e deixarem o preço cair até que a procura e a oferta sejam igualadas, então a queda do preço será superior a 10 por cento e portanto a receita cairá mais de 10 por cento. Isto acontece porque a procura de petróleo é inelástica ao preço (na verdade, é exatamente este o significado de inelasticidade-preço da procura). Aliás, é esta elasticidade-preço da procura de petróleo que faz com que as multinacionais petrolíferas aumentem as suas margens de lucro e consequentemente os preços sempre que precisam se safar.
Os produtores portanto ficam melhor se reduzirem a produção quando há uma redução da procura induzida pela recessão do que se mantiverem a produção inalterada e deixarem o preço ajustar-se para igualar a procura com a oferta. Este é o argumento da OPEP+ para cortar a produção; e já antes de o corte na produção ter entrado em vigor, há um aumento de 6% no prazo de uma semana no preço do petróleo bruto, em antecipação do mesmo. Mesmo os preços das ações de algumas multinacionais petrolíferas também começaram a subir.
Se os preços do petróleo forem mantidos em alta através de cortes na produção de petróleo bruto, então o efeito de uma recessão engendrada pela redução da taxa de inflação é reduzido de forma correspondente. Isto significa que a extensão da recessão terá de ser ainda maior, a fim de impor uma restrição ainda maior aos salários reais dos trabalhadores e à quota de outros produtores de matérias-primas não petrolíferas e de alimentos. Mas sendo já bastante baixa a parte dos produtores de matérias-primas não petrolíferas e de alimentos na produção, o fardo terá de ser suportado pelos assalariados. A questão é: será que a classe trabalhadora no mundo capitalista, especialmente nos países capitalistas avançados, permitirá que isto aconteça? Na medida em que não o permitir, a recessão que é a panaceia capitalista para a inflação terá de ser ainda maior.
Contudo, a resistência da classe trabalhadora não se limita ao esmagamento dos salários reais; é também ao maior desemprego. E se a recessão se tornar demasiado profunda, isso provocará uma ação significativa da classe trabalhadora. A Europa já está atormentada por uma onda de greves; de facto, nenhum grande país europeu está atualmente livre de lutas grevistas significativas. Se a recessão se aprofundar, então a classe trabalhadora, sob o ataque em pinça da inflação e do desemprego, tornar-se-á ainda mais militante.
Mas isso não é tudo. Se a recessão se aprofundar, então os bancos ficarão ainda mais sob tensão. Já há um stress considerável experimentado pelo sistema bancário no mundo capitalista avançado, com dois bancos norte-americanos a afundarem. Com o agravamento da recessão e o resultante incumprimento de empréstimos bancários, a situação tornar-se-á ainda mais grave.
Tudo isto aponta para um facto importante. Todo um conjunto de condições está subjacente ao funcionamento aparentemente suave do capitalismo e se o cumprimento de qualquer destas condições for prejudicado, então desencadeia-se uma reação em cadeia que ameaça seriamente a estabilidade de todo o sistema. A hegemonia do imperialismo metropolitano liderado pelos EUA sobre a economia mundial é uma destas condições. Porque esta hegemonia tem sido tão generalizada, tomada como garantida, a maior parte dos analistas nem sequer se apercebe da sua relevância – mas uma fenda na mesma, como a relativa assertividade da Arábia Saudita que testemunhámos ultimamente, o facto de não mais seguir a linha americana, está a ameaçar seriamente a estabilidade do sistema.
O capitalismo mundial tem estado em crise há muito tempo, desde o colapso da bolha imobiliária em 2008. É uma característica da crise que a tentativa de resolvê-la de uma forma simplesmente dá origem a uma crise de alguma outra forma. A manifestação original da crise foi sob a forma de estagnação; mesmo economistas de establishment como Lawrence Summers, o antigo secretário do Tesouro dos EUA, começaram agora a falar de uma “estagnação secular”. Mas a tentativa de ultrapassar esta estagnação através do bombeamento de crédito extraordinariamente barato para o sistema durante um longo período de tempo, e a seguir incidindo em enormes défices orçamentais na sequência da pandemia, provocou a inflação atual.
A guerra da Ucrânia, uma consequência do esforço para manter a hegemonia ocidental sobre o mundo, acentuou esta inflação. E agora o esforço para travar esta inflação está a ameaçar a hegemonia ocidental sobre o mundo, bem como o controlo exercido pelo capital metropolitano sobre a sua classe trabalhadora interna. O que estamos a testemunhar, em suma, é um desmoronamento da conjuntura que estava subjacente à estabilidade do capitalismo neoliberal.
Suspendam a respiração enquanto nos garantem que o Silicon Valley Bank não tem nada a ver com o Lehman Brothers, que a Califórnia fica muito longe daqui e que o sistema bancário europeu de hoje não tem nada a ver com o de 2008. Suspendam a respiração porque já ouvimos isto antes e sabemos o que se passou depois, quando tudo desabou num instante como um castelo de cartas minado pelo mais simples e devastador dos males: a falta de confiança. A falta de confiança dos depositantes dos bancos e o pânico que rapidamente lhe sobrevém é justamente aquilo que, sobretudo depois de 2008, nos garantiram que não voltaria a acontecer, pois a lição fora aprendida e os reguladores nunca mais iriam afrouxar a guarda sobre essa imprevisível classe profissional dos banqueiros. Mas eis que ouvimos Biden dizer agora que ia apertar o controlo e a regulação, porque afinal ainda persistem zonas livres à disposição da imaginação e do aventureirismo dos banqueiros. As explicações técnicas e científicas para a falência do Silicon Valley Bank — certíssimas e lógicas a posteriori, como sempre — assentam na mesma raiz do mal tantas vezes vista antes: cobiça, risco desmedido, apostas num céu sempre azul, irresponsabilidade da gestão… Nada que não fosse previsível, pois essa é a natureza infalível dos banqueiros dos tempos modernos, aqueles a quem confiamos as nossas poupanças e que, na hora do desastre, temos de socorrer com os nossos impostos. Deve haver outra forma de fazer banca, mas, por alguma misteriosa razão, nem eles a cultivam nem os governos a ela os obrigam. Enfim, suspendamos a respiração a ver se desta vez os salvamos do desastre. Aliás, não há nada mais que possamos fazer.
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO
2 Os tempos estão cheios de cavaleiros andantes de tristes aventuras destas. Ao mais alto nível, chamam-se Bezos, Musk, Zuckerberg e apresentam-se à Humanidade como génios dos tempos modernos, donos e detentores de um poder nunca antes detido por ninguém: a tecnologia e o capital necessário para deles fazer depender quatro quintos do planeta. Uma vez por ano reúnem-se em Davos, rodeados pela sua corte de clientes (governantes), de promotores (académicos e jornalistas) e de bobos da corte (cantores e “animadores” variados). Quando as acções das suas empresas escalam na Bolsa, permitem-se dar algumas lições de visão económica e de gestão ao mundo basbaque; quando as coisas correm mal, por falta de visão ou excesso de vaidade, despedem aos 10 mil de cada vez e a vida segue.
Abaixo do top existem, é claro, muitos outros níveis e subníveis: os salteadores da ex-União Soviética, os príncipes árabes, os milionários do comunismo chinês, os vendedores de armas e os barões da droga sul-americanos. Depois de devidamente reciclados e branqueados, tudo gente respeitável. Alguns feitos Sir, outros membros da Légion d’Honneur, cavaleiros disto e daquilo, professores honorários e até um rei emérito.
Entre nós, no fim da escala, tudo se passa a um nível lusitanamente provinciano. Num país desesperadamente à procura de heróis, os Presidentes ocupam boa parte do seu ocioso tempo a carregar o peito dos nossos “empreendedores” com comendas a que o tempo se encarrega de tirar todo o lustre: boa parte dos comendadores já levou as empresas à falência ou já acabou a prestar contas à Justiça. Temos, por exemplo, o caso do comendador Joe Berardo, o homem que, entre outras, conseguiu a proeza de ver o Estado emprestar-lhe em exclusivo o único centro cultural decente do país para ele armazenar a sua colecção de pintura. Depois da sua inesquecível prestação numa comissão de inquérito parlamentar, fiquei agora a saber que o Ministério Público desconfia que o comendador terá obtido um atestado médico falso a certificar que tem “dificuldades cognitivas” que o impedem de se defender capazmente em tribunal. Francamente, não percebo porque é que ele precisará de um atestado falso para certificar uma coisa evidente para todos. Quem precisaria de um atestado desses são aqueles que tanta confiança lhe deram.
3 Uma boa anedota é a versão que os americanos puseram a correr sobre a autoria da sabotagem dos gasodutos Nord Stream I e II. Teria sido então um grupo de seis aventureiros e patriotas ucranianos que, à revelia e com o desconhecimento das autoridades de Kiev, embarcaram num simples veleiro e mergulharam depois a 100 metros de profundidade para colocar os explosivos nos gasodutos, em quatro lugares diferentes, zarpando em seguida à vela Báltico fora. A comissão que há meses é suposto estar a investigar o caso — e da qual, obviamente, foi excluída a Rússia, co-proprietária dos gasodutos — ficou em silêncio sobre esta revelação. E o pobre chanceler Scholz, o outro co-proprietário, e que em Dezembro de 2021 ouviu da boca de Biden que o Nord Stream II nunca entraria em funcionamento, resolveu acolher esta versão: ele que antes declarara que a sabotagem só podia ter sido obra de um Estado com meios para tal. No Direito Internacional e nos meios políticos e de informação ocidentais, aquilo que aconteceu com os gasodutos chama-se terrorismo. Mas, nos tempos que correm e de acordo com as novas regras, parece que isso depende de quem o faz e a quem o faz.
4 Um relatório da OCDE agora divulgado, na parte referente à agricultura e ambiente, diz que o Sul do país perdeu 20% das suas reservas aquíferas na última década e que a agricultura superintensiva, responsável pelo problema, está ainda a contribuir para a erosão dos solos e, a prazo, para deixar o Alentejo e o Algarve sem água. Nada que algumas pessoas com juízo e um mínimo de preocupação não andem há anos a dizer à ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes. Mas a ministra, a quem nunca ouvi uma frase que fosse sobre o futuro da agricultura em Portugal, está-se borrifando para a OCDE ou para a falta de água: o problema é complicado demais para a sua cabeça e a solução demasiado arriscada para o seu futuro político. Esta semana, aliás, ela deu-me mais uma prova da sua estonteante incompetência ao falar sobre a escalada de preços nos supermercados e não só. Disse a senhora que está tão atenta ao problema que, inspirando-se no que havia sido feito em Espanha, tinha tratado, logo em Outubro, de constituir um Observatório Alimentar, para, justamente, ir observando a evolução dos preços e, supõe-se, agir depois em caso de necessidade ou estranheza. Previdente, hem? Pois, o problema é que o Observatório da senhora ministra, criado no dia 19 de Outubro de 2022… nunca saiu do papel. Ou seja, à boa maneira deste Governo, existe mas não existe. E, enquanto não existe existindo, os preços alimentares por cá subiram num ano 20%, três vezes o valor da inflação. E a ministra não sabe dizer porquê: está à espera do Observatório para saber.
Entretanto, para sentir na carne o preço dos legumes, resolvi meter-me no carro e ir a Espanha ver como se passavam as coisas por lá. De onde eu vivo até Ayamonte são 45 quilómetros, logo compensados pelo preço do gasóleo: 20 cêntimos a menos por litro, 12 euros de poupança por 60 litros. Depois fui ao Mercadona, cujo dono disse esta semana que não era possível fixar os preços administrativamente. Pois, talvez não, mas ele não vive em Portugal, apenas vende aqui e deve estar bem satisfeito com isso. No seu supermercado de Ayamonte, por um cabaz de compras que aqui me teria custado entre 90 a 100 euros, paguei lá 62. E, passe a publicidade, a qualidade e a apresentação está muito além daquilo que estamos habituados e ver aqui nos nossos supermercados, desprovidos de qualquer brio e imaginação. No meio de toda esta controvérsia, falta-me informação (e um Observatório) para poder dizer quem é o responsável principal pela escalada de preços na alimentação entre nós, mas desconfio que os produtores não são.
Além de tudo isto, há um mistério que me intriga: temos dos vencimentos mais baixos da Europa a par dos mais altos impostos sobre o trabalho, mas pagamos mais do que quase todos os outros pela habitação, automóveis, energia, comunicações e, agora, alimentação. Portugal pode ser pobre, mas para alguns é um excelente negócio.
P.S. — Já depois de escrito e enviado este texto, caiu a bomba da crise no Credit Suisse, o equivalente a uma declaração de incêndio numa central nuclear. Trata-se de um dos 50 maiores bancos do mundo e o segundo maior do supostamente inabalável sistema bancário suíço. Quando já nem os suíços conseguem controlar os seus bancos, o mundo está definitivamente um lugar perigoso. Para agravar ainda mais os sinais de alarme, a crise é desencadeada pelo maior accionista do banco, o Fundo Soberano da Arábia Saudita — um país outrora também garantido para a esfera americana e ocidental mas que na semana passada fechou um acordo estratégico de cooperação com a China e o Irão. Completamente cega ao que se passa e se pensa fora do seu mundo de influência e de informação controlada, a Europa, a reboque dos Estados Unidos, continua engajada naquilo que um dos seus responsáveis chamou há dias entusiasticamente uma “economia de guerra”, para manter activo e eterno o conflito na Ucrânia, desprezando quaisquer iniciativas de paz como alternativa.
A pior geração de políticos europeus dos últimos 100 anos não consegue ver o que está diante dos seus olhos e, enquanto se compraz em declarações grandiloquentes, assiste à destruição sistemática da Ucrânia e arrasta-nos a todos para o abismo. A diferença entre Putin e eles é que Putin é perigoso porque é louco e inteligente e eles são perigosos porque são todos sãos mas idiotas.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia