O uno e o múltiplo: lições das presidenciais

(Porfírio Silva, in Blog MaquinaEspeculativa, 25/01/2021)

Em maio de 2020, quando foi possível debater explicitamente as eleições presidenciais nos órgãos do meu partido, apresentei o meu ponto de vista, com dois alertas (como foi noticiado, com razoável rigor, por exemplo aqui). 

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Primeiro, o apoio, declarado ou implícito, do PS a Marcelo Rebelo de Sousa introduziria desequilíbrios no regime democrático, porque, ao criar a expectativa de uma votação esmagadora (com o apoio de todos os partidos que alguma vez governaram Portugal em democracia constitucional), abriria um novo espaço à direita extrema, oferecendo-lhe o bónus de ser a principal novidade das presidenciais e, consequentemente, o palco da campanha, sendo desse palco que vivem os movimentos contra o sistema democrático. Com a agravante de que o palco à extrema-direita perturba a capacidade do PSD para ser uma alternativa decente de governo.

Segundo, alertei para o perigo de, naquele cenário de união de facto com MRS, virmos a ter na área socialista somente uma candidatura populista, sem histórico de um programa de esquerda articulado e coerente, mas vocal na crítica à política e nos ataques ao PS.

2. Infelizmente, creio hoje que os factos mostram que tinha razão.

A reeleição de MRS é um resultado que, em si mesmo, nem coloca em perigo nem enfraquece a democracia. Pode vir a ser um risco para a governação socialista, e é provável que isso aconteça no segundo mandato, mas isso é diferente de afectar a democracia. Aliás, MRS não descurou o ataque político ao candidato extremista, em nome de uma direita democrática que não se inibe de invocar o Papa Francisco ou Sá Carneiro. 

Entretanto, a expectativa de uma fácil reeleição abriu o palco ao candidato extremista. Um candidato com capacidade para representar toda a diversidade do espaço do PS teria criado uma verdadeira disputa pelo resultado e teria a vantagem de reduzir a margem de espectáculo para AV, estreitado a sua margem de progressão eleitoral.

Obviamente, a candidatura de uma militante socialista não foi capaz de preencher esse papel, na medida em que resvalou permanentemente para o discurso de uma candidatura contra o PS, insistiu nos temas do populismo justiceiro que sabe serem inaceitáveis para muitos democratas e, finalmente, decidiu misturar a candidatura com a vida interna dos socialistas (pecado mortal de qualquer candidato, qualquer que seja o partido que implique). Tentei alertar para esse perigo, em Carta aberta a Ana Gomes, mas de nada serviu. O resultado está à vista, mesmo quando os candidatos não assumem a responsabilidade pelos seus maus resultados e tentam sacudi-los para os ombros de outrem.

3. Não votei MRS (não me basta achar que um candidato é decente para lhe dar o meu voto, até porque espero que a maioria dos candidatos sejam decentes), mas entendo que muitos socialistas tenham votado na reeleição. Gostando mais ou menos do estilo às vezes excessivamente dominado pela necessidade de ser popular, ou até discordando de algumas das suas posições políticas, uma esmagadora maioria dos portugueses valoriza positivamente a descrispação e a normalização da vida política nacional que MRS operou desde o início do seu primeiro mandato. Basta lembrar que o antecessor foi Anibal Cavaco Silva… para dar logo alguma tolerância a MRS.

Aliás, o PS, ao definir a sua posição face às presidenciais, não podia ignorar que uma maioria do seu eleitorado estava inclinado para votar no PR em exercício: os partidos não podem pensar que podem definir as suas posições ignorando as posições de partida do seu eleitorado. De qualquer modo, o PS tem de fazer, agora, o trabalho de curar as feridas abertas entre os seus militantes e entre os seus eleitores por esta campanha e eleição presidencial.

4. O resultado, alto, excessivamente alto, da extrema-direita, é uma preocupação para todos os democratas. É um problema que está alojado no campo da direita, mas, sendo um factor de contaminação da direita, sendo uma dinâmica que põe em causa a autonomia estratégica da direita democrática, afecta todo o sistema político. Um país democrático precisa de uma direita democrática – e, neste momento, não vejo nenhum partido de direita a assumir um claro combate às teses iníquas do partido fascistóide. Isso é um problema de todos os democratas. Rui Rio não percebe isso e fez uma declaração na noite eleitoral onde o principal destaque foi o seu empenho em sublinhar os sucessos do candidato protofascista.

5. A esquerda que não votou MRS dividiu-se, mas não foi isso que a fez perder eleitoralmente. A ideia de que seria preferível uma candidatura única da esquerda é o regresso à ilusão de uma esquerda unitária, ilusão essa que só se pode alimentar de um completo desconhecimento da sociedade portuguesa e de um grande desapreço pela diversidade ideológica e política da esquerda. A fixação na mítica unidade por obrigação persegue a esquerda há décadas e ainda não foi compreendida na sua negatividade intrínseca. Não precisamos de bloco homogéneo contra bloco homogéneo, precisamos de pluralismo, precisamos de diversidade e, acresce, precisamos de capacidade para o compromisso. A pluralidade é complexa e os simplistas querem ter pouco trabalho com a deliberação democrática. Essa mitologia tem de ser desconstruída, para podermos, à esquerda, fazer o que é necessário sem um pesado nevoeiro de ilusões.  6. A esquerda de que precisamos é uma esquerda plural que assuma as suas responsabilidades. Na transição de legislaturas, a solução política que a direita baptizou de “geringonça” desconcentrou-se. Depois de uma legislatura em que um governo minoritário do PS e uma maioria parlamentar plural de esquerda conseguiram desmontar o rumo austeritário e imprimir um rumo de progresso social e económico, e de umas eleições legislativas em que o país renovou a confiança nessa fórmula, com reforço do PS, a cidadania assistiu a uma série de desentendimentos, sobre cuja repartição de responsabilidades não vou aqui insistir, mas que transmitiram ao país a mensagem de que a cooperação estruturada à esquerda estava desordenada. Sem voltar aqui à distribuição de culpas, é evidente que o voto contra do BE no OE 2021 sinalizou uma emergência política: a insensibilidade de uma parte da esquerda às nossas responsabilidades comuns em respondermos conjuntamente ao país. Sem ser cada um por si. Sem ser o salve-se quem puder. Sem a perigosa ilusão de passar as culpas. Especialmente quando enfrentamos a crise maior das nossas vidas, provocada pela pandemia.  

7. Para assumir as suas responsabilidades, a Esquerda Plural (o PS, o BE, o PCP, o PEV) tem de voltar a sentar-se à mesa e assinar um compromisso político conjunto, com um horizonte pelo menos até ao fim da corrente legislatura, onde fique traçado o essencial do rumo e do método para darmos ao país a estabilidade política positiva que é necessária para fazermos frente à pandemia – e para vencermos a pandemia dentro da pandemia que é o aumento das desigualdades sociais.

Se não reunirmos as ferramentas para podermos fazer o que o país necessita, e se deixarmos a direita tomar conta do país neste contexto, o nosso povo sofrerá de novo o peso das políticas anti-sociais da anterior crise. A Esquerda Plural não pode desperdiçar energias e deve concentrar-se, focar-se no essencial – o que passa por um compromisso claro acerca, precisamente, do que é essencial e prioritário.

8. Entretanto, o PS só pode fazer a sua parte neste processo se mantiver a sua identidade e preservar a sua autonomia estratégica.  Tenho a noção das diferenças entre o PS e o BE, e das diferenças entre o PS e o PCP. Não acho sequer que possa ser útil para o Bloco que o PS queira parecer ter as mesmas políticas que o Bloco. Ou que seja útil para o PCP que o PS queira parecer ter as mesmas políticas que os comunistas. Ou que seja útil para a democracia que o PS queira parecer igual a outros partidos, de esquerda ou de direita. O PS só pôde cumprir as suas responsabilidades históricas, desde a clandestinidade, passando pelo período revolucionário, até hoje, porque os socialistas souberam preservar a autonomia estratégica do nosso partido, o partido do socialismo democrático. Preservar a nossa autonomia estratégica é agir de forma a podermos continuar a seguir os nossos critérios nas nossas opções políticas, o que depende de entendermos a nossa identidade histórica e nunca esquecermos o que os portugueses esperam de nós. Só faremos a nossa parte na Esquerda Plural se assumirmos as nossas próprias propostas e o nosso próprio perfil – e, a partir daí, sermos a peça fundamental de uma governação progressista agregadora e mobilizadora.

9. Cabe ao PS entender a dinâmica do uno e do múltiplo e dar um contributo decisivo para definir e concretizar um rumo partilhado pela Esquerda Plural, com os olhos postos no país, especialmente nos mais carenciados e desprotegidos e nos que contribuem, com o seu trabalho, para o desenvolvimento e a coesão entre portugueses. Isso é essencial, também, para travar a caminhada da extrema-direita.

Deputado do PS


Europa: e tudo acaba no jogo das cadeiras

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 28/05/2019)

Daniel Oliveira

Apesar do estranho alívio, a extrema-direita ganhou mesmo mais espaço. Apesar da alegria desmedida, os “Verdes” subiram muitíssimo menos do que a extrema-direita e sobretudo por causa do resultado na Alemanha, à custa do SPD. Os liberais crescem, mais por causa da chegada de Macron do que por subida de partidos existentes. E os grupos que têm mandado a União Europeia vêm por aí abaixo.

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O fantasma da extrema-direita serviu para caçar votos mas, chegada a hora de os contar, lança-se um suspiro de alívio porque afinal não foi assim tão mau. E chega-se a esta conclusão comparando com resultados de legislativas, com sondagens, com previsões. As notícias que foram saindo iam variando nestas comparações sempre com o mesmo propósito: esconder o óbvio. Mais uma vez, a extrema-direita cresceu.

Ficando apenas pelo Grupo Europa da Liberdade da Democracia Direita (que além de várias forças de extrema-direita tem o Movimento 5 estrelas) e o Grupo da Europa das Nações e da Liberdade, passam de 103 para 112. Isto não impressiona muito. Mas, para fazermos as contas rigorosas, teríamos de ir pescar vários partidos de extrema-direita que estão inscritos nos Reformistas e Conservadores Europeus (os antigos Verdadeiros Finlandeses, o Partido Popular Dinamarquês ou o PiS polaco, por exemplo), que conquistou mais 13 deputados, aos não inscritos, onde estão vários dos estreantes, e até ao PPE, de onde pode sair o partido de Órban, que tem 13 deputados.

Em França, o Rassemblement National (antiga FN, de Le Pen), passa de 24,9% para 23,3%. Desce mas continua em primeiro. E a ela temos de juntar o Debout la France, que tem 3,5%. Se pensarmos que a FN tinha, há 10 anos, apenas 6,4% nas europeias, ficamos com uma ideia mais precisa da caminhada que estamos a fazer. Em Itália, a Liga de Salvini passa, nas europeias, de 6,5% para 34,3%. Mesmo em relação às legislativas do ano passado, duplica a sua votação. Acrescentem-lhe os Irmãos de Itália, com 6,5% (tinham 3,5% nas europeias anteriores). Na Suécia, os Democratas Suecos (a ironia) passam de 9,7% para 15,4%. Na Bélgica, o Bloco Flamengo sobe de 6,8% para 11,5%. E no Reino Unido, o Partido do Brexit ficou em primeiro, com 31,7%, a que devemos juntar os 3,6% do UKIP.

Depois há as falsas derrotas da extrema-direita. Diz-se que perderam na Alemanha e Espanha porque caíram em relação às últimas legislativas. Mas, no que toca às europeias, que é o que interessa para o Parlamento Europeu, a AfD passa de 7% para 11% (teve apenas mais seis décimas nas últimas legislativas) e o Vox passa de uns insignificantes 1,5% para 6,2% (teve 10% nas últimas legislativas).

Por fim, os dois grandes do Leste. Na Hungria, o Fidesz (que ainda está no PPE) sobe de 51,3% para 53%. Mas aí a notícia até é boa, já que cresce à custa do partido ainda mais à direita (o sinistro Jobbik), que desce de 14,7% para 6,4%. Na Polónia, o PiS, no Governo, tem 45,4% (mais 14 pontos percentuais do que há cinco anos), a que devemos acrescentar as listas Kukiz’15 (extrema-direita populista), com cerca de 3,7% e a aliança de partidos extremistas Konfederacja, com 4,5%. Ou seja, maioria absoluta de populistas e extrema-direita.

Quando a extrema-direita fica em primeiro em França, em Itália e no Reino Unido, cresce em quase todo o lado e os populistas de direita têm maioria absoluta na Polónia e na Hungria, alguém me explica de onde vem o alívio?

Os grande vitoriosos são os “Verdes”, com uma subida extraordinária na Alemanha e ganhos interessantes em França, na Suécia, na Finlândia e na Irlanda. Mas se olharmos para os resultados gerais, passam de 50 para 69 deputados. Não chega para falar de “onda verde”. É a subida de 10,7% para 20,5% na Alemanha que criou essa ilusão. Ela deu mais dez deputados dos 19 novos deputados dos verdes. E nada disto inclui os aliados de Varoufakis, num movimento pan-europeu que, de Portugal à Grécia, teve resultados modestos, não conseguindo sequer eleger o seu líder, que concorrendo na Alemanha não chegou sequer aos 0,2%. Sim, em todo o lado, as eleições continuam a ser mesmo nacionais.

Quem não pode cantar vitória é a Esquerda Unitária/Verdes Nórdicos, onde estão o Bloco de Esquerda e o PCP. Passam de 52 para 39 deputados, sendo claramente ultrapassados pelos verdes. E neste grupo estão seis deputados do Siryza que, derrotados pela Nova Democracia na Grécia, marcaram eleições legislativas antecipadas e podem bem vir a debandar para o grupo dos socialistas. Depois de França, Alemanha, Grécia (com seis deputados cada uma) e Espanha (com cinco), Portugal é o país com mais representantes neste grupo (dois do BE e dois do PCP).

Os socialistas e social-democratas tiveram, como se esperava, pesadíssimas derrotas. Sobretudo nos países mais relevantes. Na Alemanha, o SPD passa de 27,3% para 15,8%, sendo ultrapassado pelos “Verdes”. É o preço que paga por uma longa aliança com a CDU e pela incapacidade de ser alternativa. Uma pesada herança da terceira via que, depois de cumprida, atirou os sociais-democratas para uma lenta de deprimente decadência. Em França, passam de 14%, que já tinha sido um resultado miserável, para 6,2% (coligados com vários partidos). E as coisas estão de tal forma que, em Itália, festeja-se a passagem do Partido Democrático de 40,8% para 22,7%, porque nas últimas legislativas o partido que federa toda a quase toda a esquerda, centro e parte do centro-direita teve 19%. Os socialistas passam de 191 deputados para 146 deputados – 45 perdas. As exceções são mesmo a Holanda, em que o PvdA passa de 9,4% para 18,9%, e Espanha, onde os socialistas sobem de 23% para 33%. Em Portugal, a subida foi, como sabemos, ligeira.

Não é muito diferente do que aconteceu à direita, com o PPE. Passa de 221 para 180 deputados, menos 41. Se o Fidesz de Viktor Órban vier a sair do PPE, serão menos 52. Os maiores rombos foram em Espanha, onde, com a queda do PP, passam de 17 deputados eleitos (correspondente a 26%) para 12 (correspondente a 20%); França, onde os republicanos passam de 21% para 8,5%; e Itália, onde o partido de Berlusconi passa de 16,8% para 8,8%. E mesmo na Alemanha, a CDU passa de 35,3% para 28,9%, perdendo cinco deputados. Em resumo, quem governa a Europa foi punido.

Depois há, como sabemos, a hecatombe britânica. Aí, os Conservadores (que não fazem parte do PPE), foram dizimados. Estão no Governo – se é que podemos chamar aquilo de Governo – e ficaram, nestas europeias, como quinta força política, atrás do Partido do Brexit, dos Liberais Democratas, dos Trabalhistas e, pasme-se, dos Verdes. Se o UKIP já tinha conseguido, há cinco anos, ficar em primeiro com 26,8%, o Partido do Brexit consegue 31,7% e, se lhe juntarmos o UKIP, mais de 35%. Do sistema, só os LibDem e os Verdes ganham: uns passam de 6,7% para 18,5%, ficando em segundo, outros passam de 7,7% para 11,1%. Os trabalhistas caem de 24,7% para 14% e os conservadores despenham-se de 23,3% para uns extraordinários 8,7%. Mas quem julgue que a revolta é exclusivamente remainer, saiba que as dissidências pró-europeia de trabalhistas e tories, o Change UK, não chegou aos 3%. A revolta parece ser mesmo contra a incapacidade dos dois partidos conseguirem gerir este processo com mínimo de tino, seja para que lado for.

Outros vencedores de domingo são os liberais. Sobretudo por causa do partido de Macron que, ficando em segundo através da sucção de socialistas e republicanos, consegue 22,4%. No Parlamento Europeu, os liberais passam de 67 eleitos para 109. Uma subida de 42. Se lhes tirarmos o ganho no Reino Unido, porque nem sabemos se chegarão a tomar posse, perdem-se 15 deputados conquistados (o LibDeb passou de um para 16 deputados), sobram 26 ganhos. Catorze deles foram vêm de França (onde, às custas de Macron, os liberais passam de sete para 21). Mesmo a subida dos Ciudadanos, de 3% para 12%, não traz ganhos em deputados, porque outros partidos espanhóis deste grupo perderam representação.

A Frente Progressista que vai de Tsipras a Macron resume-se à cooptação do Syriza para os socialistas e a um acordo com os liberais na distribuição de lugares. E enquanto se entretêm com o jogo das cadeiras, a extrema-direita continua a crescer, a esquerda a definhar e a Europa a afundar-se

Com esta constituição do no novo Parlamento Europeu, os liberais passarão a ter um papel de charneira sem o qual os socialistas não conseguem negociar lugares com os populares. Se acreditou na ideia de que se tentava construir uma “frente progressista” entre socialistas e liberais para combater a extrema-direita é um ingénuo incorrigível. O que está sempre em causa na Europa é a distribuição de lugares. Sem uma maioria absoluta entre o populares e socialistas (tinham 412 eurodeputados, agora têm 326), os socialistas terão de negociar com o centro-direita para dividirem com eles a parte do bolo que costumam ter só para si. E a divisão terá de ser bastante simpática para os liberais, que só têm menos 37 deputados do que eles. É só mesmo de jogos de cadeiras que estamos a falar. A “frente progressista” que vai Tsipras a Macron resume-se à cooptação do Syriza para os socialistas e a um acordo com os liberais na distribuição de lugares. E enquanto se entretêm com o jogo das cadeiras a extrema-direita continua a crescer, a esquerda a definhar e a Europa a afundar-se.

Uma vitória que não parece “poucochinho” num cenário que pouco muda

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 26/05/2019)

Daniel Oliveira

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Como nota prévia, a abstenção. A comparação com 2014 é enganadora. É verdade que a abstenção, há cinco anos, foi de 66,2% e este ano foi de 69%. Mas a verdade é que até votaram mais eleitores. Por uma razão: o registo dos emigrantes que vivem noutros países europeus é automático, o que correspondeu a um aumento de um milhão pessoas nos cadernos eleitorais (emigrantes), aumentando assim a base eleitoral e, por consequência, a taxa de abstenção. Para o que realmente interessa, a abstenção não aumentou de forma significativa. A abstenção é um excelente retrato do nosso europeísmo acrítico. Somos euroabstencionistas. Mas é a verdade é que fazemos parte do clube dos mais abstencionistas. Tenho uma tese sobre isso: nada se joga aqui. Em muitos países europeus, houve, por causa da extrema-direita, uma dramatização que levou mais gente às urnas.

Antes de tudo, temos de decidir o que é vencer ou perder nestas eleições. Uma parte é psicológica – não é nada irrelevante na política –, outra é importante para os efeitos que tem na vida político-partidária, outra é real no campo em que estas eleições acontecem: a Europa. Comecemos pela primeira. E socorro-me do excelente texto (https://expresso.pt/opiniao/2019-05-23-Europeias-o-que-e-ganhar-e-perder–para-nao-se-deixar-enganar–1 ) preparatório deste dia feito pelo David Dinis, escrito na última quinta-feira, que é um bom guia não adaptado aos resultados quando eles já se conhecem.

Nas Europeias de 2014, o PS teve 31,5%, pouco mais de um milhão de votos – nas legislativas seguintes, em outubro de 2015, teve 32,3%, tendo ficado atrás da coligação de direita. Nas últimas europeias, o PS ficou quatro pontos percentuais acima do PSD e do CDS e António Costa considerou isso “poucochinho”. Se somarmos a votação do PSD e do CDS temos um resultado da direita de 28,5%. Se ainda lhe juntarmos a Aliança, que é uma cisão do PSD, fica com 30%. No cenário mais simpático, o PS ficou cinco pontos acima da votação do universo que correspondia à coligação de há quatro anos. No mais antipático ficou apenas 2,5. Apesar do mau resultado da direita, não me parece que o PS tenha motivos para fazer uma festa de arromba. A diferença é a mesma que levou Costa a falar de “poucochinho”. Mas como estamos a falar de sensações…

Como a direita concorreu em conjunto nas últimas legislativas e europeias, só em conjunto pode objetivamente ser avaliada. É verdade que o PSD e o CDS tinham tido 27,7%, cerca de 900 mil eleitores. Tinham sete eurodeputados (seis para o PSD e um para o CDS). Mas não podemos ignorar que, nessas eleições, Marinho Pinto teve 7%. Um ano depois a PàF conseguiu 38,5%, que já eram uma grande queda em relação às eleições anteriores. Como recordou David Dinis, o pior resultado do PSD sozinho em europeias foi de 31,1%, em 1999, e a última vez que concorreu sozinho, em 2009, teve 31,7%. Os 22,5% são uma derrota evidente. Uma pesada derrota, na realidade.

Quanto ao CDS, a última vez que foi a europeias sozinho, em 2009, teve 8,4%. As outras vezes que concorreu sozinho foi em 1999 (8,2%), em 1994 (12,5%), em 1989 (14,2%) e em 1987, quando houve eleições legislativas simultâneas (15,4%). Manteve o eurodeputado eleito mas, com 6%, tem um resultado catastrófico. O que tivemos nestas eleições foi uma deslocação de votos para a esquerda. E o CDS ficou comprido num discurso radicalizado que não conseguiu segurar os eleitores. PSD e CDS podem ter sido punidos, numa eleição que mobiliza os mais convictos, os professores podem ter contado.

O Bloco teve 4,5% nas últimas europeias, com cerca de 150 mil votos. Só tinha conseguido eleger Marisa Matias. No entanto, este resultado aconteceu num momento extraordinariamente mau para o BE. Nas legislativas seguintes teve 10,2%. O melhor resultado do Bloco em Europeias foi em 2009, com 10,7%. O Bloco é, com o PAN, o maior vitorioso desta campanha. Teve 9,7%, elegeu dois deputados e isto foi um sinal fortíssimo para as próximas eleições.

Já a CDU foi o oposto. Teve um resultado especialmente bom em 2014: 12,7% e mais de 400 mil votos. Em termos de votos, quase o mesmo que teve nas legislativas (pouco menos de 450 mil), que corresponderam a 8,25% O mais importante no PCP, que sofre menos com a abstenção, são os votos. Um mau resultado nas europeias é um péssimo sinal para as legislativas. Teve 6,6% e perdeu um deputado. É verdade o que diz o PCP: o extraordinário resultado de 2014 teve relação com um forte sentimento antieuropeísta logo depois da intervenção da troika. As coisas são mais difíceis agora. Mas o mais importante, por razões mais psicológicas do que políticas, é a posição relativa em relação ao Bloco. Depois da perda da liderança à esquerda nas legislativas e de ter recuperado, nas últimas europeias, esse lugar, esta derrota terá fortes efeitos nos próximos meses. A estratégia de isolamento do BE, para uma “geringonça” a dois com o PCP, é cada vez mais improvável. Nunca os comunistas se meteriam em tal aventura.

Há ainda os pequenos partidos. Nas ultimas eleições, MPT (com Marinho Pinto), Livre, PAN e MRPP foram os extraparlamentares que ficaram acima de 1%. Graças ao resultado de Marinho Pinto, os partidos fora dos cinco grandes tiveram, juntos, cerca de 16% e mais de meio milhão de votos. Nestas tiveram cerca de 15%. Mas é evidente que se têm de destacar os resultados extraordinários do PAN: 5% e um eurodeputado. Tudo indica que os animalistas entraram definitivamente no cenário político português. Mas o resultado do PAN desmente a ideia de que o voto nos pequenos é a revolta de quem queria ouvir falar da Europa. O PAN foi, dos pequenos, o que menos o fez. E quem os ouviu a falar sobre o tema terá reparado que era, de todos eles, de longe, o menos preparado de todos. A diferença entre o PAN e Marinho Pinto é que o PAN, já estando na Assembleia da República, pode capitalizar isto para ser mais de um epifenómeno. Mas se este é o nosso fenómeno ecologista, estamos bem tramados. Mas é provável que o PAN venha a ser uma força importante na próxima legislatura. Talvez aquela com que o PS sonha aliar-se: uma aliança que sairia quase de borla. Como nota, Marinho Pinto, que teve direito a participar no debate dos grandes, ficou com 0,5%.

Em resumo: para o ambiente político de que precisa, o PS conseguiu o resultado que desejava, ficando bastante destacado do PSD. A verdade é que o PS tinha quatro pontos percentuais acima do PSD e do CDS juntos que, em 2014, lhe deu uma vitória “poucochinha”. Agora tem cinco. Ninguém fará esta conta e isso é que interessa.. O Bloco de Esquerda é, com o PAN, o que mais tem a festejar nesta noite, recuperando a vantagem à esquerda.

Uma vitória pessoal de Marisa Matias, que veremos se o BE consegue transportar às legislativas. A CDU fica numa situação muito difícil e a dificuldade dos comunistas mata à nascença o sonho infantil de fazer uma geringonça a dois. Não vai acontecer. O CDS talvez aprenda que a radicalização do discurso, tentada por Nuno Melo, não resulta. E o PAN, que terá um papel nas próximas legislativas, prova que não foram os temas europeus que moveram o voto de protesto. Bem exprimido, a esquerda à esquerda do PS teve 17% em 2014 e tem 16% em 2019. O PS teve 31,5% e tem 33,5%. A direita teve 28% e tem 28,5%. E um partido vindo de fora, e que serve bem a função do protesto, teve 7,% e agora tem 4,5%. Não mudou muito em cinco anos.

Depois há o impacto real que os resultados nacionais têm em Portugal, sobretudo sabendo que há eleições legislativas em outubro. Devemos ter em conta aquilo que já sabemos de europeias anteriores. Que os partidos extraparlamentares costumam ter a vida muito mais facilitada em legislativas, que não têm um circulo único e onde a pressão do voto útil é inexistente. Que o PCP, com um eleitorado mais fiel, costuma ser beneficiado em eleições onde a abstenção é maior. E que os partidos da oposição tendem a ter melhores resultados nas europeias, não sendo isso um padrão seguro. Vistos os resultados, percebemos o que andou a fazer António Costa. Não andou a falar da oposição à extrema-direita, andou a negociar com os liberais a forma destes e os socialistas poderem competir por lugares com os populares. É só sobre isso que se fala na Europa.

Nenhum destes resultados terá grande peso nos equilíbrios do Parlamento Europeu. Farei uma análise dos resultados no resto da Europa para o texto de terça-feira. Apenas uma ideia simples: que apesar do alívio absurdo a extrema-direita ganhou mais espaço, que os verdes foram os grandes vitoriosos da noite, que os conservadores caíram muito e os sociais-democratas se despenharam aparatosamente, não sendo provável que aprendam que alianças à direita os fazem perder votos para todos os lados. É provável que com os votos do partido unipessoal de Emanuel Macron chegassem para que os socialistas europeus ficassem à frente do PPE. Mas o aliado de Costa foi para os liberais. E é com eles que os socialistas falarão para conseguir lugares na luta contra os populares. As lições desta eterna cedência e incapacidade de construir um discurso próprio ficam para daqui a cinco anos, quando desaparecerem mais um pouco.