Marcelo Rebelo de Sousa, o nosso Marcelo, Presidente dos Afectos e das Selfies, disse a um representante palestiniano, no Bazar Diplomático, que, “desta vez, foram vocês que começaram” e “têm que ser mais moderados”. Há muito que deixei de prestar atenção a MRS, não só por ser um presidente no qual não me sinto representado mas, principalmente, pela vergonha alheia que me causa.
Combatentes do Hamas condizem um jeep capturado ao exército israelita no sul de Israel, perto da fronteira norte de Gaza.
6. Como foi criado o Hamas
O Hamas foi oficialmente criado em 1987, quando foi fundada a sua componente política. No entanto, embora seja hostil a Israel, beneficiou sempre, paradoxalmente, da ajuda deste, que o financiou e apoiou (secretamente) de várias maneiras desde 1973 (quando foi fundada a sua componente caritativa, Mujama al-Islamiya), até, pelo menos, 2019.
Esta afirmação não é uma calúnia. Resulta de confidências feitas por governantes e chefes militares de Israel, incluindo o seu actual primeiro-ministro. Netanyahu [4]. O objectivo confesso de Israel ao apoiar e financiar o Hamas era dividir para reinar — dividir a Organização de Libertação da Palestina (OLP) e, a partir de 1995 (Acordos de Oslo 2) desacreditar a Autoridade Nacional da Palestina (ANP) dirigida pela Al-Fatha, a principal componente da OLP. O que Israel conseguiu fazer com êxito.
7. As tácticas de combate do Hamas
As táticas de combate do Hamas foram inteiramente decalcadas (no caso das TG), ou decalcadas em grande medida (tt.3 e tt.4, no caso das TT [cf. parte 1, secção 3 deste artigo]), das tácticas de combate do Irgun, do Lehi, do Palmach e do Haganá — as organizações paramilitares sionistas que operaram clandestinamente contra os palestinianos árabes (e algumas delas também contra as autoridades militares e civis britânicas) durante o Mandato Britânico da Palestina (1931-1948). Essas organizações constituíram o núcleo duro das futuras Forças Armadas de Israel (“Tzahal”), criadas em 26 de Maio de 1948.
8. O ataque do Hamas a Israel em 7 de Outubro de 2023
O ataque dos combatentes do Hamas a Israel em 7 de Outubro de 2023, denominado “Operação Tempestade Al-Aqsa”, foi uma operação que surpreendeu tudo e todos pela sua audácia, dimensão e eficácia.
«As autoridades israelitas não emitiram quaisquer avisos nem tomaram quaisquer medidas preventivas antes do ataque, o que sugere que não dispunham de informações sobre o planeamento e os preparativos do ataque, apesar do aumento acentuado das tensões entre as autoridades israelitas e os palestinianos nos últimos meses» (“IntelBrief: Complex Attack by Hamas into Israel has Altered the Dynamics of the Conflict.” The Soufan Center. October 9, 2023).
O New York Times também noticiou a surpresa, audácia, dimensão e eficácia deste ataque:
«Com um planeamento meticuloso e um conhecimento extraordinário dos segredos e fraquezas de Israel, o Hamas e os seus aliados dominaram toda a extensão da frente de Israel com Gaza pouco depois do amanhecer, chocando uma nação que há muito considera a superioridade das suas forças armadas como um artigo de fé. Usando drones, o Hamas destruiu as principais torres de vigilância e comunicação ao longo da fronteira com Gaza, impondo vastos pontos cegos aos militares israelenses. Com explosivos e tractores, o Hamas abriu brechas nas barricadas da fronteira, permitindo que 200 atacantes passassem na primeira vaga e outros 1.800 no final do dia, segundo as autoridades. Em motociclos e camionetas, os atacantes avançaram para Israel, dominando pelo menos oito bases militares e lançando ataques terroristas contra civis em mais de 15 aldeias e cidades» (Patrick Kings Ley & Ronen Bergman, “The Secrets Hamas Knew About Israel’s Military.” October 13, 2023).
Parece, pois, ser incontroverso que esse ataque comportou duas componentes: uma componente militar ⎼ que se enquadra no conceito de luta armada da resolução 37/43 da ONU, incluindo as suas modalidades de guerrilha (TG), descritas na secção 4 deste artigo ⎼ e uma componente terrorista, que extravasa do conceito de luta armada para se enquadrar no conceito de tácticas terroristas (TT), descrito na mesma secção.
É pela sua componente principal (a componente militar), exclusivamente, que o ataque do Hamas de 7 de Outubro 2023 tem muitas afinidades com a insurreição armada da Zob no gueto de Varsóvia de 12 de Abril de 1943, de que tornarei a falar na secção 9 deste artigo. Referindo-se à acção militar que a ZOB (acrónimo polaco para Zydowska Organizacja Bojowa, Organização Judaica Combatente) realizou nesse dia contra o exército da Alemanha nazi, a partir do gueto de Varsóvia, Marek Edelman comentou no seu espantoso testemunho (The Ghetto Fights: Warsaw 1941-1943 [1990]):
«Pela primeira vez, os planos alemães foram frustrados. Pela primeira vez, a auréola de omnipotência e invencibilidade foi arrancada da cabeça dos alemães. Pela primeira vez, o judeu na rua apercebeu-se de que era possível fazer alguma coisa. Foi um ponto de viragem psicológica».
O mesmo se pode dizer, mutatis mutandis, da acção militar contra Israel que as brigadas Izz al-Din al-Qassam realizaram em 7 de Outubro de 2023, a partir do “gueto” de Gaza.
«O ataque estilhaçou a aura de invencibilidade de Israel e provocou um contra-ataque israelita em Gaza que matou mais de 1.900 palestinianos numa semana, com uma ferocidade nunca vista em Gaza.» (Patrick Kingsley & Ronen Bergman, New York Times,ibidem).
O jornalista Samuel Forey escreveu: «Três semanas após o ataque mais ambicioso da história do movimento islamita [Hamas], o modus operandi do que aconteceu nesse dia está a tornar-se mais claro. Mais de 2.000 homens [das brigadas Izz al-Din al-Qassam] entraram em território israelita através de 29 brechas na barreira que rodeia a Faixa de Gaza. A invasão, um êxito militar, levou a atrocidades cometidas contra civis» (“Hamas attack:October 7, a day of hell on earth in Israel.” Le Monde, October 30, 2023).
O Le Monde noticiou também que: «Depois de atravessarem a barreira, os combatentes [do Hamas] atacaram simultaneamente pelo menos seis bases militares das Forças Armadas de Israel e sete zonas civis, incluindo uma cidade, cinco kibbutzim e um festival de música» (“Israel-Hamas war: Images reveal the strategy behind the militant group’s attack.” October 14, 2023).
Repare-se que o New York Times refere, como vimos, «pelo menos oito bases militares» e não seis, como o Le Monde. A Aljazeera identificou três dessas seis ou oito bases militares israelitas que os combatentes do Hamas invadiram: «o posto fronteiriço de Beit Hanoon (chamado Erez por Israel), a base de Zikim e o quartel-general da divisão de Gaza em Reim» (“What happened in Israel? A breakdown of how Hamas attack unfolded.” October 7, 2023). Não consegui ficar a saber quais foram as outras três ou cinco bases militares referidas pelo Le Monde e pelo New York Times, respectivamente, apesar de ter feito uma demorada pesquisa no Google,no Bing e no Yahoo!
Vale a pena notar, a este propósito, que os combatentes do Hamas que invadiram essas bases militares israelitas «se apoderaram de armas e equipamento e estabeleceram linhas logísticas a partir do território israelita» (“IntelBrief: Complex Attack by Hamas into Israel has Altered the Dynamics of the Conflict,” ibidem). Segundo informações colhidas pelo jornalista Seymour Hersh, o ataque de 7 de Outubro das brigadas do Hamas provocou 317 baixas mortais no exército israelita (algumas dessas vítimas poderão ser militares contratados), além de 58 polícias (“The Labyrinth War,” November 1, 2023, https:// seymourhersh.substack.com/). Segundo a Reuters de 18 de Outubro, citando Netanyahu, o ataque de 7 de Outubro gerou 1.400 vítimas mortais no lado israelita. Se subtrairmos a este número, o número de militares e polícias indicado por Hersh, obtemos 1.025 vítimas mortais israelitas que não eram nem militares nem polícias.
Não temos informação fidedigna e suficiente (a que temos é incompleta e quase exclusivamente de origem israelita) sobre o modo como estas pessoas morreram que nos permita avaliar a veracidade e a extensão de todas as atrocidades que, alegadamente, terão sido cometidas pelos combatentes do Hamas no âmbito da componente terrorista do seu ataque a Israel: o ataque a zonas civis. Na verdade, não temos sequer informação exacta sobre a extensão desse ataque. O Le Monde refere, como vimos, «sete zonas civis, incluindo uma cidade, cinco kibbutzim e um festival de música». Por sua vez, o New York Times refere, como vimos, «mais de 15 aldeias e cidades». Em quem devemos acreditar neste particular: no Le Monde, no New York Times ou em nenhum deles?
Por outro lado, ao contrário dos 242 reféns feitos pelo Hamas (que têm todos um nome e um rosto conhecido), não foi publicada (salvo melhor informação) a lista dos nomes dos mortos civis israelitas e dos locais onde morreram. Há testemunhos de israelitas que acusam o exército israelita de ser o autor da morte dos seus companheiros, apanhados por “fogo amigo”. É o caso, por exemplo, de Yasmin Porat, uma mulher israelita que foi entrevistada no programa de rádio Haboker Hazeh, da emissora estatal israelita Kan, em 15 de Outubro de 2023. Porat, que sobreviveu ao ataque do Hamas aos colonatos perto da fronteira de Gaza em 7 de Outubro de 2023, afirma que os civis israelitas foram «indubitavelmente» (sic) mortos pelas suas próprias forças de segurança. Diz também que ela e outros israelitas detidos pelos combatentes palestinianos foram tratados «com humanidade» (https://www.youtube.com/watch?v=3cPeRSVgUpQ). Há ainda muita coisa por esclarecer relativamente às vítimas mortais civis do ataque.
Seja como for, em matéria de tácticas terroristas, sabemos, pelo historial dos últimos 36 anos, que Israel e Hamas estão bem um para outro: se um diz “mata!”, o outro diz “esfola!”. As únicas diferenças neste particular ⎼ e não são de modo nenhum despiciendas ⎼ é que (i) um (Israel) é o carcereiro de Gaza e o outro (Hamas) uma das organizações de resistência dos encarcerados de Gaza, e que (ii) um (Israel) mata e aterroriza muito mais e há muito mais tempo do que o outro (Hamas), que, como vimos (cf. secção 7), com ele aprendeu a matar e aterrorizar, convencido que só dessa maneira o poderá derrotar.
[continua]
Notas e Referências
[4] «Qualquer pessoa que queira impedir a criação de um Estado palestiniano tem de apoiar o fortalecimento do Hamas e transferir dinheiro para o Hamas. Isto faz parte da nossa estratégia — isolar os palestinianos em Gaza dos palestinianos na Cisjordânia», explicou Netanyahu aos membros do seu partido, o Likud, em Março de 2019 (citado por Gidi Weitz, “Another Concept Implodes: Israel Can’t Be Managed by a Criminal Defendant”. Haaretz, October 9, 2023). Num vídeo recente [a partir do momento 12m36s], o embaixador da Autoridade Nacional Palestiniana em Moscovo chegou mesmo a quantificar esse apoio financeiro de Israel ao Hamas: 36 milhões de dólares, mensalmente, nos últimos 5 anos (https://www.youtube.com/watc h?v=hS-Aa7E2-Hk).
Não sei se este número é exacto. Mas sabemos que esse apoio começou há muito mais do que cinco anos. Na verdade, começou há mais de quatro décadas. O general Yitzhak Segev, que foi o governador militar israelita de Gaza no início da década de 1980, confidenciou, alguns anos mais tarde, a David Schipler, repórter do New York Times, que Israel ajudou a financiar o Hamas como um contrapeso à OLP. «O governo israelita deu-me um orçamento, e o governo militar dá-o às mesquitas» (David K. Shipler, Arab and Jew: Wounded Spirits in a Promised Land. Crown, 2015), p.221. «O Hamas, para meu grande pesar, é uma criação de Israel. Foi um erro enorme e estúpido», disse Avner Cohen, um governante israelita responsável pelos assuntos religiosos israelitas que trabalhou em Gaza durante mais de duas décadas, até 1994 (Andrew Higgins, “How Israel Helped to Spawn Hamas.” The Wall Street Journal, January 24, 2009). «Quando Israel encontrou pela primeira vez islamistas em Gaza, nos anos 70 e 80, eles pareciam concentrados no estudo do Alcorão e não no confronto com Israel. O governo israelita reconheceu oficialmente um precursor do Hamas, chamado Mujama Al-Islamiya, registando o grupo como uma instituição de caridade. Permitiu que os membros do Mujama criassem uma universidade islâmica e construíssem mesquitas, clubes e escolas». David Hacham, que trabalhou em Gaza no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 como especialista em assuntos árabes nas forças armadas israelitas, «lembra-se de ter levado um dos fundadores do Hamas, Mahmoud Zahar, para se encontrar com o então ministro da defesa de Israel, Yitzhak Rabin, no âmbito de consultas regulares entre funcionários israelitas e palestinianos não ligados à OLP. O sr. Zahar, o único fundador do Hamas que se sabe estar vivo atualmente, é agora o chefe político sénior do grupo em Gaza» (ibidem). «Quando olho para trás e vejo a cadeia de acontecimentos, penso que cometemos um erro» ⎼ diz David Hacham ⎼ «Mas, na altura, ninguém pensou nos possíveis resultados» (ibidem).
Os EUA estavam ao corrente desta longa relação de duplicidade mútua entre Israel e o Hamas. David Long, que foi diplomata dos EUA na Arábia Saudita e chefe da divisão do Próximo Oriente no Gabinete de Informações e Investigação do Ministério dos Negócios Estrangeiros [State Department] dos EUA durante o governo de Ronald Reagan, disse ao jornalista Robert Dreyfuss: «Pensei que os Israelitas estavam a brincar com fogo. Mas não sabia que acabariam por criar um monstro. Não acho que nos devamos meter com fanáticos potenciais»» (Devil’s Game,https://www.c-span.org/video/?190 584-1/devils-game, January 5, 2006).
O Ocidente, entendido como a civilização europeia com a sua matriz filosófica na Grécia e a sua interpretação do mundo a partir do Novo Testamento da Bíblia, do cristianismo, viveu sempre numa contradição entre os valores que racionalmente erigiu como os seus e que apregoava — uma ética — e a sua prática, subordinada aos interesses.
O Ocidente, os seus pensadores e os seus povos, tiveram sempre a noção do pecado enquanto violação dos mandamentos. Os grandes pensadores do Ocidente promoveram o conhecimento do homem enquanto ser racional, mas também enquanto ser ético, que a racionalidade deve ser o alimento da “boa vontade”. A eleição da boa vontade, do bem fazer, como fundamento para os homens serem julgados marcou a rutura entre o cristianismo e o judaísmo.
O cristianismo é uma religião (e uma filosofia) de redenção. A redenção cristã é um resgate de uma situação de “fora da lei” (pecado original) que se salva se cumprir os valores pregados por Cristo. A redenção não faz parte da filosofia do judaísmo. No judaísmo não existe a ideia de que que o relacionamento entre Deus e os seus fiéis precise ser restaurado. Por isso mataram o Cristo que se apresentou na Palestina a afirmar que vinha à Terra restaurar a ligação entre os homens e Deus, propondo a Paz. A fronteira entre o Antigo e o Novo Testamento é a fronteira entre a Guerra e a Paz. O deus dos judeus é o deus dos direitos dos seus fiéis — o Povo Eleito e a Terra Prometida. Os seus fiéis têm direito a tudo e podem fazer tudo para o conseguir. O deus do cristianismo é o deus dos deveres. O conflito que existe há mais de mil anos entre judeus e cristãos assenta no antagonismo entre direitos e deveres.
A filosofia do ocidente pós-socrático funda-se no dever e na ética. Kant é considerado o filósofo do Dever na civilização ocidental. E os ocidentais aceitaram (embora não o tenham praticado) que todo homem, quando diante de uma situação que exija escolha, faz (ou deve fazer) a pergunta: o que devo fazer para bem conduzir minha ação? Está subjacente à pergunta a busca por uma regra de conduta capaz de fornecer meios ao arbítrio para que a escolha seja da melhor ação a praticar. Isso demonstra que o homem ocidental se orienta pela noção do dever e a resposta tem que provir dela. A noção de boa vontade, fundada no princípio do dever, é aquela que se apresenta como regra de conduta na sociedade ocidental.
As nossas ações individuais ou coletivas podem ser consideradas sob um duplo ponto de vista: ou de uma vontade conforme à razoabilidade, ou de um ponto de vista de imposição de uma vontade até onde as inclinações e os meios disponíveis permitirem, sem limites.
A ação de Israel desde a sua fundação a meados do século vinte tem sido um contínuo atentado aos princípios do cristianismo da civilização ocidental. O Ocidente do pós-segunda Guerra aceitou a corrupção dos seus princípios e ganhos civilizacionais por razões conhecidas: sentimento de culpa pela Inquisição e pelo Holocausto, por interesses estratégicos, financeiros, económicos. O Ocidente tinha duas opções para se relacionar com Israel, ou escolhia o ponto de vista moral do cristianismo — dos deveres — e impunha as suas regras; ou agia motivado pelo princípio do interesse de que a melhor ação é a que sacia o desejo, o principio da prevalência dos direitos.
Não deixa de ser chocante ouvir políticos ocidentais referir o Direito Internacional, ou o Direito Comum a propósito do longo conflito entre o Estado Israel e os palestinianos para negar os direitos dos palestinianos e defender os interesses dos israelitas em nome do direito!
A política de Israel na Palestina é muito fácil de decifrar: uma limpeza étnica de um território para ali constituir um Estado totalitário, no sentido em que apenas serão cidadãos com direitos os que tenham o mesmo Deus, que cumpram os mesmos rituais, que se submetam aos mesmos rabis, que considerem os mesmos inimigos, que estejam dispostos a cometer os mesmos crimes em nome do interesse do mesmo Estado do Povo Eleito.
O apoio do Ocidente a esta política, com a hipócrita proposta dos dois estados — uma monstruosa falácia — que foi acompanhada com o discurso do “direito de defesa de Israel”, um estado ocupante a defender-se do ocupado! — deu ânimo a Israel para uma longa série de massacres e de crimes, de que o ataque a Gaza é o mais recente e o mais desumano episódio.
Mas, a desumanidade da ação de Israel na Palestina conduz a uma conclusão que cada um de nós, os do ocidente, como nos qualificou Camões, responderá de acordo com as suas convicções. O evidente é que o Estado de Israel, criado pelo Ocidente, impôs aos cristãos o Velho Testamento , impôs a sua religião de direito à violência. O Antigo Testamento contém mais de seis mil passagens que falam explicitamente sobre nações, reis ou indivíduos que atacam, destroem e matam.
Deuteronômio: “Quando vocês avançarem para atacar uma cidade, enviem-lhe primeiro uma proposta de paz. Se os seus habitantes aceitarem e abrirem as suas portas, serão seus escravos e se sujeitarão a trabalhos forçados. Mas se eles recusarem a paz e entrarem em guerra contra vocês, sitiem a cidade. Quando o Senhor, o seu Deus, a entregar em vossas mãos, matem ao fio da espada todos os homens que nela houver. Mas as mulheres, as crianças, os rebanhos e tudo o que acharem na cidade, será de vocês; vocês poderão ficar com os despojos dos seus inimigos dados pelo Senhor, o seu Deus.”
Já seria uma derrota civilizacional o Ocidente aceitar esta barbárie, que podia ser a descrição do que está a acontecer em Gaza, mas ela está associada à derrota do Estado Liberal que foi erigido na Europa à custa de tantos sacrifícios e sangue, da civilização associada aos direitos cívicos e políticos, à separação da religião do Estado, à revolução francesa, às modernas repúblicas.
O apoio “incondicional” a Israel é o apoio a um estado totalitário que tem os mesmos fundamentos dos estados islâmicos. Os políticos ocidentais, os intelectuais do sistema, os seus propagandistas estão a promover uma ordem e um tipo de sociedade de violência, de negação da liberdade, de sujeição clerical, uma sociedade “talibânica”, que não se distingue da sociedade talmúdica ou corânica. Apoiar Israel é uma regressão política e civilizacional. Avanço seria integrar Israel no grupo dos estados laicos e igualitários, promover o fim do duplo apartheid, religioso e étnico. Racista, em suma.
Das três religiões do “Livro” apenas o cristianismo separou a religião do Estado, essa separação foi o interruptor que permitiu ao Ocidente tornar-se simultaneamente a sociedade tecnologicamente mais avançada do planeta, socialmente mas igualitária e politicamente mais diversificada. É desta civilização que estamos abdicar.
É esta assunção de derrota civilizacional que está em causa com o apoio a Israel, que a seguir a Gaza irá atacar a Cisjordânia, até reinventar e impor um fantasioso grande Israel!
É assim que vocês tratarão todas as cidades distantes que não pertencem às nações vizinhas de vocês… (imagem da tomada de Jericó)