Calem-se: o povo é quem mais ordena

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 03/11/2018)

MST5

1 Há uma conspiração de extrema-direita a nível internacional, muitíssimo bem pensada, bem planeada e que vem sendo executada passo a passo. Steve Bannon, ex-guru de Trump e despedido por ser demasiado inteligente e incompreensível para aquela fraca cabeça ruiva da Sala Oval, é o rosto mais visível, mas não único. Vestem-se de jeans, recuperam as poses do Village dos anos setenta, argumentam com algoritmos, alimentam o seu tumor no território fértil das redes sociais e no fanatismo religioso das igrejas evangélicas (que, no seu íntimo, desprezam profundamente) e pastoreiam o seu rebanho no novo lumpen-proletariado que a globalização criou nas sociedades afluentes. O medo de um futuro onde as pensões deixaram de estar garantidas, onde o vizinho moreno passou a ser um potencial terrorista, em que qualquer emigrante será uma ameaça ao Estado social, onde a máquina vai substituir o operário e onde a ordem natural das coisas será para sempre subvertida é o seu território de caça. E porque tudo isto é demasiado confuso e demasiado aterrorizador para ser enfrentado, a legião massificada dos aterrorizados e confusos refugiou-se na zona de conforto de um Deus capturado por vendilhões e das redes sociais servidas à medida dos seus medos, das suas raivas, das suas frustrações e dos seu ódios irracionais. E à exacta medida dos planos dos ideólogos contra a liberdade e a democracia. Dos indisfarçáveis fascistas. Que já não precisam de militares, nem de golpes nem de noites de facas longas. O Facebook e o WhatsApp servem-lhes tudo de bandeja e levam-lhes as ovelhas às mesas de voto, como cordeirinhos dóceis ao matadouro.

mw-768

ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

A propósito disto, e de um texto de que adiante falarei, lembrei-me de um belíssimo e perturbante filme de James Ivory, de 1993, baseado no livro de Kazuo Ishiguro, Man Booker Prize, “The Remains of the Day” (“Os Despojos do Dia”, na tradução portuguesa”). No filme, Lord Darlington (interpretado por James Fox) é um aristocrata inglês que organiza, no seu mannor de Darlington Hall, um jantar para um dignitário nazi, em 1935. Darlington, que depois seria exposto como simpatizante nazi, estava sobretudo incomodado por ver que as duas maiores potências europeias estavam à beira de ser arrastadas para uma guerra entre elas, quando as ruling classes de ambas tinham interesses comuns, que estavam a ser dinamitados pela demagogia insuflada nas classes populares e que, de forma trágica, tinham levado ao poder na Alemanha um obscuro cabo chamado Adolf Hitler — um Bolsonaro com 80 anos de avanço. E, para melhor ilustrar o seu ponto de vista, a certa altura, Lord Darlington, à conversa com um amigo, chama o seu buttler (a figura central do filme, num magistral desempenho de Anthony Hopkins), e pergunta-lhe: “Tu sabes o que é a inflação?” E ele responde: “No, Sir”. E, fazendo um gesto, despedindo-o, Darlington comenta para o amigo: “Estás a ver? Este tipo, que não sabe o que é a inflação, tem direito a um voto, tal e qual como eu!”.

Só falta querer retirar o direito de voto àqueles, como eu, que sabem o que é a inflação mas não frequentam redes sociais

Poderíamos chamar a isto o fardo das elites perante a democracia: um homem, um voto. Um princípio essencial, aliás, à natureza da própria democracia. Noutro contexto, o do colonialismo, Kipling falou do “fardo do homem branco” — qual seria o de “civilizar” os povos colonizados. Pois, a história deu as voltas que deu, muitas erradas e trágicas, outras ocasionais e curiosas, e é certamente ocasional e curioso que, por exemplo, a maior democracia do mundo, hoje, seja a Índia — onde Kipling situou o fardo do homem branco. O que isto nos parece dizer é que mesmo quando erradas nos seus valores — que, para sermos justos, deveremos sempre julgar no seu contexto de então e nunca no seu contexto actual — as elites, bem ou mal, cumpriram e cumprem um papel na consciência colectiva dos povos. Sendo um privilégio por origem, devem ser um fardo e um dever por obrigação. Demitindo-se de intervir, por temor ou por desfastio, são um privilégio sem sentido e sem razão de ser. Todos os que tivemos a sorte de estudar, de ler, de aprender, de reflectir, de saber “qual a cor da liberdade”, como escreveu Jorge de Sena, somos tributários do Infante D. Pedro, morto em Alfarrobeira. Morto pela cegueira da turba ignara, incendiada pela inveja dos medíocres, dos que alimentariam depois as fogueiras da Inquisição. Porque, meus caros amigos: quem queima livros não se liberta — suicida-se.

Bem, o dito texto é da autoria de João Miguel Tavares, o qual vai ficar felicíssimo por eu citar o seu nome, pois que vive à procura de quem lhe dê importância e relevância. Mas vale a pena ultrapassar isso porque esta citação o justifica: “Nós, as elites, não percebemos nada de nada… As elites artísticas, intelectuais, jornalísticas, têm de meter na cabeça de uma vez por todas que a sua influência sobre o povo, na hora do voto, é nula. Que os seus poderes de mediação e de persuasão, na era das redes, se evaporaram de vez”.

Eu não sei o que mais me dá vontade de rir — ou de sorrir de tristeza. Se é ver alguém auto-arvorar-se em elite — uma daquelas coisas que, quando se é, não precisa de ser dita, e quando se diz, é porque não se é.

Se é vê-lo pensar que descobriu a pólvora, com o triunfo da multidão das redes sociais sobre as “elites” — isto é, aqueles que leram, que não se contentam em ser informados pelas “verdades” das redes sociais, que reflectiram — coisa sobre a qual (agora, peço eu desculpa) venho escrevendo há anos, com a qual José Pacheco Pereira começou por ser grande entusiasta antes de arrepiar caminho, e de que José Manuel Fernandes, menos inteligente, ainda continua entusiasta, e que Umberto Eco arrasou há tempos num texto demolidor. Ou, enfim, por vê-lo ir a correr, de corda ao pescoço, juntar-se à multidão das redes sociais a tempo de apanhar o último vagão do comboio, proclamando, ofegante: “Eu estou convosco! Eu, membro da elite bem pensante, compreendo-vos. Compreendo o Bolsonaro, o Orbán, a Le Pen, o Salvini, o Trump, tudo, todos! Vocês são o povo e a função das elites é estar ao lado do povo”. É o pensamento profundo de Lord Darlington, drasticamente invertido por este nosso pensador profundo. Só falta querer retirar o direito de voto àqueles, como eu, que sabem o que é a inflação mas não frequentam redes sociais.


2 O juiz Sérgio Moro, o herói da Lava Jato, o Carlos Alexandre tropical, e que presumo que seja também um dos ídolos de referência de João Miguel Tavares, não resistiu ao convite de Bolsonaro para ser ministro da Justiça do seu governo. Com isso, não fez mais do que arrancar uma máscara colada com cuspo. Primeiro, mostrou que entre a magistratura e a política, a sua verdadeira ambição era a política e a primeira serviu-lhe de trampolim para a segunda. Depois, mostrou que não foi por acaso que, poucos dias antes do impeachment de Dilma, revelou uma escuta telefónica de uma conversa entre ela e Lula, sem qualquer relevância processual e em clara violação da lei, com o intuito claro de influenciar a votação do Congresso contra Dilma — assim como depois, a poucos dias da primeira volta das presidenciais, em nova e descarada violação do segredo de justiça, revelou parte da delação premiada do ex-ministro de Lula, Antonio Palocci, com efeito determinante na votação do candidato do PT. Que a sua mulher tenha vindo depois apelar abertamente ao voto em Bolsonaro, já pouco podia espantar: este é o juiz que, sem nenhuma prova directa e baseado apenas em delações premiadas (isto é, testemunhos comprados), sozinho, investigou, acusou, despachou para julgamento, julgou, condenou e meteu na prisão o homem a quem todas as sondagens davam larga vantagem para voltar a ser Presidente do Brasil. Até pode ser que Lula seja culpado de tudo o que o acusam, o que ainda está por demonstrar à luz das normas de um Estado de direito, tal como eu o entendo. Mas o mínimo que se exigia a Sérgio Moro é que tivesse alguma noção de decoro e contenção nas suas ambições.


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

A confissão de Sérgio Moro

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 02/11/2018)

Daniel

Daniel Oliveira

O juiz de Curitiba que concentrou nas suas mãos quase todas as fases do processo contra Lula da Silva, foi, sem espanto de ninguém, convidado para ser superministro do Presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro. E, sem grande espanto também, aceitou. O magistrado concentrará as pastas da segurança e da justiça, coisa muito pouco habitual em democracias maduras. Coisa que o Brasil obviamente não é.

A aceitação deste convite levanta uma primeira inquietação que, não sendo a mais relevante, nos leva para um debate que transcende o Brasil. O governo de Jair Bolsonaro quer alargar de tal forma o conceito de legítima defesa que liberalizará, na prática, a justiça pelas próprias mãos. E quer proibir a investigação de agentes policiais que matem em confronto, o que corresponde a uma ordem geral para matar. A sua agenda em matéria de segurança é próxima da do Presidente filipino, ao estilo de Rodrigo Duterte. O facto de um juiz se sentir confortável com esta agenda diz alguma coisa sobre a sua desvinculação aos princípios fundamentais do Estado de Direito, o que explica muito do que aconteceu no processo contra Lula. Não está sozinho. Há cada vez mais juízes a acreditarem que o seu papel é apenas combater o crime, não é aplicar a justiça. O primeiro objetivo não esgota o segundo.

É bom recordar que Sérgio Moro não se limitou a julgar Lula da Silva. Fez disso um espetáculo político, que foi gerindo em proveito próprio e de terceiros. Da divulgação para a imprensa, ilegal mas totalmente assumida, de escutas de conversas entre Dilma e Lula, com o objetivo de dar força às manifestações contra o governo do PT, a escutas aos advogados do ex-Presidente, tudo foi permitido. Quem se deu ao trabalho de acompanhar o julgamento de Lula sabe que o resultado final foi um aborto kafkiano.

Sérgio Moro usou o poder judicial com propósitos políticos que incluíam a construção de uma carreira fora da magistratura. O que faz dele mais corrupto do que todos os homens que julgou. Porque não há corrupção mais profunda do que a moral

Os objetivos políticos de Moro ficaram totalmente evidentes quando agradeceu a manifestantes de direita pelo apoio que lhe davam nas ruas ou quando fez um vídeo, na véspera das eleições, a falar de corrupção. Só um cego não tinha ainda percebido que Moro tinha ambições políticas. Muito mais grave foi a decisão de Sérgio Moro divulgar, há um mês e em plena campanha, a delação premiada de António Palocci, ex-ministro de Dilma afastado por corrupção. É que segundo o vice-presidente Hamilton Mourão, o juiz já tinha sido convidado, nessa altura, para este cargo. A decisão de divulgar a delação na campanha foi, portanto, de um ato político de que Moro sabia que iria beneficiar.

Podemos suspeitar que Moro esperava, com o seu comportamento nos últimos anos, por um prémio político que agora lhe chega através de um superministério que será a rampa de lançamento para vir a ser Presidente, cargo que evidentemente ambiciona. Mas não precisamos de fazer conjeturas. Podemos ficar pelo que é indiscutível. Sérgio Moro não é um juiz que aceita um cargo político. Ele foi uma peça fundamental num processo judicial que, pelos efeitos que teve no sistema político, abriu espaço para o crescimento de uma candidatura com a natureza de Jair Bolsonaro. E foi o elemento central para impedir que o candidato mais forte concorresse às eleições. Isto deveria chegar para o impedir, por um imperativo ético, de ir para o governo do homem que mais beneficiou com o seu trabalho. A aceitação do cargo revela uma total indiferença perante a necessidade de preservar a imagem de independência da justiça face ao poder político.

Sérgio Moro sempre foi um político disfarçado de juiz. Representava um sector da magistratura de traços populistas que premeditadamente procuraram criar um ambiente que, para além de afastar uma pessoa da candidatura à presidência, favorecesse a ascensão ao poder de um político de perfil autoritário e justicialista. E que esperava ter, nesta nova era, um papel relevante. Usou o poder judicial com propósitos políticos que incluíam a construção de uma carreira fora da magistratura. O que faz dele mais corrupto do que os homens que julgou. Porque não há corrupção mais profunda do que a moral.

Moro. Num País Tropical

(Valdemar Cruz, in Expresso Diário, 02/11/2018)

valdemar1

Já está. Moro não resistiu a dar o golpe de misericórdia na credibilidade da justiça brasileira. Demasiado cheio de si próprio para evitar cair na tentação de dar o salto que ,em nome da decência, não devia, não podia dar, assume em definitivo o papel de justiceiro. De caudilho providencial. De iluminado num país de trevas.

Sérgio Moro vê-se a si próprio como o guardião mor das virtudes abastardadas. Para isso, e ao aceitar o cargo de ministro da Justiça, junta-se a uma encarnação tosca de aprendiz de fascista.

moro1

Moro é o juiz que tripudiou todas as regras para precipitar a prisão de Lula da Silva, de modo a impedi-lo de se candidatar a Presidente da República do Brasil quando liderava todas as sondagens. Abriu assim uma larga estrada para a vitória de Bolsonaro. O mesmo a propósito de quem, na sua última edição, e num editorial raro, o Expresso sentiu a necessidade de reafirmar o seu posicionamento em defesa dos valores essenciais da democracia e “contra o fascismo”. Moro abandona 22 anos de magistratura para se colocar ao serviço do homem que mais beneficiou com as suas decisões na “Operação Lava-Jato”. Tudo isso o descredibiliza.

Gleisi Hofman, presidente do Partido dos Trabalhadoresdenunciou o que apelidou como a “fraude do século”.

Moro agora em transição para ministro, é o mesmo Moro que hás anos, numa entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, negava com todas as letras a hipótese de poder vir a entrar na política. “Não, jamais. Jamais. Sou um homem de Justiça e, sem qualquer demérito, não sou um homem da política“, disse. Como em política dois anos podem ser muito tempo, em junho do ano passado, em entrevista a Christiana Martins, do Expresso, quando questionado sobre se mantinha a recusa em entrar na política, respondeu: “Sim, já repeti várias vezes. Não existe nenhuma possibilidade”. Como definição de caráter, estamos conversados.

A jornalista, escritora e documentarista brasileira Eliane Brum, multipremiada, inclusive com o Inter American Associated Press Award, escreveu um twiitt a dizer que a decisão de Moro “é indecente de tantas maneiras diferentes que precisaremos encontrar palavras novas. Por enquanto, escolho uma: obscenidade. O ego de Sérgio Moro ainda vai levá-lo à latrina da História”.

O anúncio da participação de Moro no Governo de Bolsonaro fez a Bolsa de Valores de São Paulo bater recordes históricosOs investidores mostraram-se eufóricos com o nome do novo ministro.

Tudo isto é Moro. Num país tropical que ameaça transformar-se num novo tipo de República das Bananas.