(Por Oxisdaquestao, in Blog Oxisdaquestao, 19/09/2022)
Ainda algumas ideias europeias em relação aos eeuu eram ingénuas sobretudo se diziam respeito à sua literatura e seus autores e ao jornalismo e seus fazedores. Os grandes jornais norte-americanos serviam de referência sobretudo se se tratava de trabalhos jornalísticos de investigação…
1 Trabalha-se, espera-se e sonha-se um ano inteiro pelos dias de Verão, de mar azul, águas irresistíveis, tardes indolentes na praia e noites mediterrânicas, e depois, chegados ao local do crime, levamos com a implacável ventania do Norte com o seu incansável ronco de animal enfurecido, varrendo a praia, gelando a água, expulsando-nos das noites ao ar livre. Enquanto a Europa inteira se derretia de calor, Portugal vivia o princípio de Verão mais frio e desconfortável de que guardo memória, mas que nada teve de atípico: Verões assolados pela nortada, de Caminha ao Cabo Carvoeiro, onde os alegados paraísos de praia só existem nos cartazes de promoção, é o segredo mais bem guardado do turismo português. Portugal é bom para passar todas as estações, menos o Verão.
No aguardo pela lua cheia e alguma esperança de dias e noites mediterrânicas, na contagem decrescente pela greve que anunciavam que definitivamente liquidaria de vez qualquer ilusão de férias tranquilas, fui lendo, sem grande interesse, aquilo que, sem grande empenho, se escrevia na nossa imprensa. Isto é, neste jornal ou no “Público” — ao qual agora se resume a nossa imprensa escrita diária, generalista e em papel, após a trágica decisão de liquidar o “Diário de Notícias”, de que todos os dias sinto a falta. Notavelmente desprovido de um mínimo de testerona editorial ou jornalística, o “Público” está transformado numa tribuna feminista e tão previsível e aborrecidamente correcta, nisso e em tudo o resto, que lê-lo é uma espécie de penitência ao nível dos mandamentos de qualquer credo das igrejas evangélicas. Os únicos resquícios de masculinidade (se assim lhes podemos chamar) que restam naquelas enxutas páginas, onde até os homens se esforçam por escrever como mulheres, são as infatigáveis descrições do Miguel Esteves Cardoso sobre as suas investidas gastronómicas, na vasta pátria que vai de Colares à Praia Grande, com algumas episódicas incursões à Noélia, em Cabanas de Tavira, onde ele revela o segredo para conseguir mesa em Agosto: sentar-se para almoçar às 11h30 e para jantar às 17h30. Uma alternativa de férias.
Assim, num dia o “Público” deu-me a ler um notável trabalho de investigação doméstica, cujas conclusões, pré-determinadas, consistiam em fazer-nos condoer e comover com a, até ver, incontornável fatalidade da maternidade feminina. O que as portuguesas sofrem com o parto, a depressão que lhes causa, o desconforto, o atraso de vida, as sequelas que nunca mais passam, o sacrifício, tudo aquilo que os homens nem imaginam e que, está bom de ver, não partilham, desde os nove meses de gravidez até ao fim da vida. Num país que apresenta a mais baixa taxa de natalidade da Europa e uma das mais baixas do mundo, o apelo subentendido era claro e tonitruante: “Se puderem, se forem lúcidas, não tenham filhos, pensem antes em vocês!”. Eu estou de acordo e até tenho uma solução para isto, para compensar devidamente as poucas que ainda se sacrificam em nome da continuação da espécie portuguesa, da sustentação financeira da Segurança Social e outros relevantes interesses do país. Só que, lamento, é uma solução que também se aplica aos pais, que embora não tenham andado grávidos nove meses nem tenham passado pela sala de partos, participaram toda a vida activamente na criação, educação e sustento dos seus filhos: majorar as pensões de reforma em função do número de filhos que se teve e se sustentou. Considerando que as pensões de quem está na reforma são pagas pelos impostos dos filhos dos reformados que estão no activo, com que justiça hão-de estar em pé de igualdade os que criaram e sustentaram dois, três ou mais filhos e os que não tiveram qualquer filho?
Mais complexo intelectualmente e mais original era outro artigo que o “Público” me deu a ler nos idos de Agosto. Tratava-se de explicar, com a ajuda de uma arquitecta, que Lisboa não era uma cidade “amiga das mulheres”. Sinceramente, a coisa era demasiado intelectual para a minha cabeça, sobretudo em modo de férias, e eu não retive os fundamentos de tão douta conclusão. Não percebi se tinha que ver com a calçada à portuguesa, com o percurso do 28, com as dificuldades em sair sozinha à noite, com os criminalizados piropos ou qualquer outra dificuldade que, sobretudo nestes dias e noites de Verão na cidade, o meu olhar obviamente suspeito não alcança, ao ver deslizar mulheres em todas as direcções e por todos os meios, aparentemente felizes e despreocupadas. Mas talvez sejam todas estrangeiras e não leiam o “Público”. Porém, ocorreu-me uma pergunta, certamente estúpida nos tempos que correm: e será que Lisboa é uma cidade amiga dos homens? E se alguém achar que não, quem se preocuparia com isso? Ah, que saudades do “Diário de Notícias”!
Ali, pelo menos e na sua versão semanal, o seu director, José Ferreira Fernandes, atreveu-se a escrever o que na concorrência seria garantidamente interdito: que a perseguição do #MeToo a Plácido Domingo é uma coisa abominável. Que aos 74 anos de idade, uma das maiores vozes de sempre da Ópera seja perseguido, exposto, silenciado, banido das salas e dos concertos para que fora contratado, porque sete ou oito mulheres o acusam de há trinta anos lhes ter passado a mão pelas coxas ou de se ter permitido outros avanços com elas, seja verdade ou não, é intolerável. Não se trata de consentir ou menorizar o assédio sexual, mas de ter a noção da proporção das coisas, da facilidade das acusações fora de contexto e da violência das penas, decretadas sem mais. Façam o que lhe fizerem, Plácido Domingo ficará sempre na história da música, mas as suas acusadoras não. Tenham razão ou não, nenhum ouvinte se deslocará ao teatro para, em lugar de ouvir Domingo a interpretar “La Traviata”, ouvir uma activista do #MeToo a contar os abusos de que terá sido vítima há trinta anos. Dez minutos de fama não valem uma eternidade de glória.
E um dia destes ainda teremos alguém a escrever uma biografia sobre Mozart e a revelar que ele teria o mau hábito de apalpar as empregadas de limpeza, arriscando-nos a ver Mozart banido das salas de concertos e das editoras discográficas. No seu modo de funcionamento e de execuções sumárias, o #MeToo está a tornar-se uma das mais tenebrosas polícias políticas desde a Inquisição.
2 Tenho denunciado bastas vezes o crime ambiental em curso em Alqueva, com a expansão contínua do olival intensivo e superintensivo, transformado numa monocultura que tudo absorve: água, ajudas financeiras, culturas alternativas, paisagem. Criticando a minha opinião e a de outros mais habilitados do que eu, o director do Expresso, João Viera Pereira, escrevia a 15 de Junho passado: “ Não percebo qual a vantagem de ter um Alentejo abandonado, ou apenas entregue ao sobreiro ou à azinheira, se esse Alentejo apenas serviu para o tornar uma das regiões mais pobre do país”. Obviamente que não é essa a alternativa que alguém defenda. É, sim, uma alternativa fundada num aproveitamento ecológica e agricolamente sustentável e não apenas rentável a curto prazo, determinado pela simples ambição — a qual, quando terminada por exaustão da terra, deixará um deserto à vista. Ao contrário do que J.V.P. escreveu, o olival superintensivo não representa “criação de emprego, aumento das exportações, criação de riqueza” — ou apenas representa a prazo. Não há como ver para crer, apesar de não se ser um entendido na matéria — como ele confessa não ser e eu também. Mas desafio-o a ir ver as plantações à volta de Beja e Ferreira do Alentejo, como ainda há dias voltei a fazer. Mesmo para quem não é entendido no assunto, aquilo é aterrorizador: para melhor rentabilizar o negócio, conseguiram transformar a oliveira num arbusto e o olival numa sebe. Uma sebe de milhares de milhares de hectares a perder de vista, tudo nivelado, tudo igual, sem nenhum sinal de vida ou de biodiversidade. Não se trata, como escreveu J.V.P., num tipo de argumentação sempre de fácil efeito, de “querer o Alentejo como um clube de campo para as elites das grandes cidades”. Trata-se de ir ver para perceber, à vista desarmada, que aquilo é pura ganância, sem freio e sem respeito algum pela natureza, pela paisagem e pelo futuro. Não cheira a riqueza, cheira a tragédia anunciada. Com o nosso dinheiro, com a nossa preciosa água de Alqueva.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
(Pedro Santos Guerreiro, in Expresso Diário, 26/11/2018)
Pedro Santos Guerreiro
(Eu, Estátua de Sal, posso criticar os jornais, discordar do seu alinhamento noticioso, desdenhar da comunicação social. Mas isso sou eu que não sou a Ministra da Cultura.
O Governo e o PS andam cada vez mais nervosos à medida que se aproximam as eleições. É só tiros no pé. Começou a Ministra da Cultura com as touradas; agora sente-se aliviada por não ler jornais portugueses (lembrei-me logo do Cavaco que dizia que também não lia). Depois o César, qual mestre-escola a dar notas, veio chumbar as aptidões do PCP e do BE para governar, dizendo que “não estão preparados”. E para culminar até António Costa, opinando sobre a greve dos estivadores, onde arrasou por completo os direitos de quem trabalha, teve a sua pior e mais lamentável prestação desde que é Primeiro Ministro.
Não, o PS não pode ser deixado à solta. Faz-me lembrar o meu cão. Quando sai à rua só com trela e, de preferência, trela bem curta.
Comentário da Estátua, 27/11/2018)
Um mês de trabalho depois, a ministra da Cultura já precisa de férias dos jornais portugueses. Podia ser enfado, mas é desrespeito pela própria função. Podia ser uma gaffe, mas é uma estupidez. Da ministra. Da Cultura. Da pasta da comunicação social. Daqui a nada está a pedir “deixem-me trabalhar”.
Não há como usar ironias, uma frase bruta precisa de posições brutas. “Uma coisa ótima de estar em Guadalajara é que não vejo jornais portugueses”, diz Graça Fonseca, com um sorriso nos lábios de quem não sabe que cargo desempenha ou, talvez seja melhor dizer, do cargo que ocupa. Habituada a política de gabinete, Graça Fonseca deve estar a adorar passear pelo México como atriz convidada, rodeada de uma corte de literatos, afinal é uma experiência. A experiência de uma ministra à experiência.
À experiência, sim, porque Graça Fonseca nunca tinha tocado estas bandas, o que não é eliminatório. O seu perfil assegurava robustez política, mas em meia de dúzia de semanas já magnetizou duas polémicas. O seu perfil sugeria a humildade de quem iria ouvir, mas compraz-se por nem sequer ler. O seu perfil criava o benefício da dúvida, que tem aniquilado com o malefício da falta de dúvidas.
Eliminatório é o desdém fútil. Eliminatório é cultivar a não leitura de jornais, porque o regozijo com essa sua “coisa ótima” é uma sugestão a leitores para que deixem de o ser. Se governar fosse só gerir um orçamento, Graça Fonseca seria uma casa decimal, mas é a ação e o discurso político que podem fazer de um ministro um número inteiro. Com piadas como esta, a ministra parece concorrer furiosamente para ser um zero, um zero à esquerda.
Os jornais são contrapoder ou não são jornais. Fazem perguntas, têm memória, duvidam, cobram promessas, cruzam factos e têm a mania de publicar coisas diferentes das que o poder gostaria. No país ideal de Graça Fonseca não havia notícias, havia comunicados. Hoje, por exemplo, talvez lhe fosse aprazível que todos os jornais tivessem como manchete “Governo cumpre três anos de sucessos”, sobre uma fotografia de António Costa em Bruxelas com a legenda “Estadistas europeus vergam Reino Unido às misérias da saída da UE” e uma chamada para “Graça Fonseca leva cultura portuguesa aos píncaros no México”. Notícias sobre o mau serviço da CP, zero. Do favor que a Santa Casa esteve para fazer há um ano injetando 170 milhões no Montepio, nem uma breve. De Marcelo, nada nunca. Da estrada de Borba, da greve dos estivadores ou das negociações com os professores, coisa nenhuma.
É mesmo preciso dizer a Graça Fonseca que só os políticos autocráticos ou ignorantes dissuadem interessadamente a leitura de jornais? É mesmo preciso dizer à ministra da Cultura o que é cultura?
É por isso que há políticos que gostariam de escolher jornalistas, de condicionar perguntas e que repetem frases sobre decadências e dependências dos jornais, fogo tão fácil de atear nas redes sociais. A quem mais convirá que os jornais enfraqueçam do que ao poder? Quem beneficiará mais de criar má reputação? Querem mesmo um país sem jornalistas exigentes e sem leitores inteligentes? É mesmo preciso explicar Trump? É mesmo preciso dizer a Graça Fonseca que só os políticos autocráticos ou ignorantes dissuadem interessadamente a leitura de jornais? É mesmo preciso dizer à ministra da Cultura o que é cultura?
Talvez Graça Fonseca tenha acordado feliz naquela manhã em Guadalajara, nimbada de orgulho por representar Portugal como país convidado de honra na Feira Internacional do Livro. Talvez tenha aberto jornais mexicanos e lido artigos semelhantes sobre Portugal: que não, não é apenas o país de Ronaldo, de Saramago e de Pessoa, que há “escritores como António Lobo Antunes, Nuno Júdice, José Luís Peixoto y Gonzalo M. Tavares”. Talvez tenha pensado no poema de Pessoa e sentido o prazer de não cumprir um dever, ter um jornal para ler e não o fazer. Talvez tenha à tarde cruzado as mãos com a poeta uruguaia Ida Vitale, que aos 95 anos recebeu o grande prémio na Feira, que lê jornais e se diz pasmada com a coluna de emigrantes que chega ao México a caminho dos Estados Unidos, onde na Casa Branca está “o monstro ruivo”, como lhe chama.
Talvez pudesse ter sido só isto, uma resposta enfastiada à pergunta anticlímax de uma jornalista sobre touradas. Mas não é só isto. É uma ministra da Cultura possivelmente deslumbrada com o seu novo cartão de crédito cultural e provavelmente feliz por estar longe de Portugal e dos seus jornais.
No fundo, ser ministra da Cultura é “uma coisa ótima”. Graça Fonseca ainda está fora de Portugal, aliás, pelo que este texto não vai ler. Ou, como diz a ministra, não vai ver. Está certo. Como escreveu um heterónimo do poeta, “eu sou do tamanho do que vejo”.