A selfie de Marcelo e o ódio sonso de Tavares

(Francisco Louçã, in Público, 14/12/2016)

 

louca

Francisco Louçã

Como todos percebemos, o Presidente Marcelo só foi a Cuba para tirar uma selfie com Fidel. A visita de Estado não tinha qualquer outro objectivo. A azia da direita esparramou-se pelo país, mas nenhum dos seus gurus se atreveu a criticar o Presidente. Nem uma palavra. Quando Marcelo mandou mensagem pela morte de Fidel, nem um ai. Quando o governo mandou um ministro ao funeral, silêncio sepulcral. Quando o Papa e Juncker e Merkel e Rajoy mandaram mensagens, caladinhos. Afinal, eles estão a branquear um “ditador ditador ditador”, mas os nossos corajosos reaccionários sobre tal tema não brandiram a sua indignação.

No entanto, paradoxo, houve vários artigos dos gurus da direita sobre o assunto. Só sobre este tema, JM Tavares já escreveu três contra mim. Em cada um deles foi subindo o nível do insulto. Não se preocupem os leitores, Tavares é assim: tem que esbracejar para existir, acha que quanto mais grotesco for o verbo mais será venerado. Só que ele não pretende reflectir sobre a história de Cuba e do seu regime. Pretende catalogar por razões instrumentais, para cultivar o seu pequeno hobby que é a política caseira.

Se ler a imprensa nacional ou estrangeira de referência, verá que jornais hostis ao regime cubano publicaram estudos rigorosos sobre a história de Fidel, do Financial Times ao The Economist, analisando a sua relação internacional (do apoio à invasão soviética da Checoslováquia à guerra de Angola em que derrotou a invasão sul-africana) e a sua evolução interna (da formação do regime de partido único à sua base social). Em Portugal, os gurus preferiram os ajustes de contas porque só se ocupam de si próprios, a história é-lhes irrelevante.

Mais esfuziante do que os congéneres, Tavares indigna-se contra os que, ao contrário dele, não saberiam distinguir uma democracia de uma ditadura. Como todos sabemos, o mundo divide-se entre os tavaristas e os ditadores. Escreve então: “Porque não começar também a elogiar Salazar ou Pinochet, que mataram menos gente e deixaram os seus países mais desenvolvidos?” Este tavarómetro das ditaduras vai directo para Marcelo mas, mais uma vez, a acusação é só assim-assim, o melhor que o nosso Alípio consegue. Sim, pergunta o sorridente Tavares, e porque não elogiar Salazar ou Pinochet?

Tavares precisa destes eflúvios, é o que faz a sua vida. No resto, faz constar que tem umas vagas ideias políticas, é um liberal que arrasa toda a gente, Sócrates, Passos, Costa e quem respirar, tudo com muitos ódios, mas nunca se arrisca naquela coisa da democracia a provar as suas ideias, a tomar posição, a fazer alguma coisa. Está em todo o lado porque não está em lado nenhum. Prefere a porrada de cátedra e, como tem menos atenção do que se acha merecedor, grita mais alto. O homem atira, tonitruante, que de mim “discorda em tudo” e até “no essencial”, como se o mundo fosse um jogo floral e a prosápia me comovesse.

Sabe, Tavares, quando se enche o peito de ditadura e democracia, vale mais o que se faz do que o segura-me-se-não-eu-bato. Espero por isso que consiga perceber o que lhe digo: quando vivi sob a ditadura de Salazar e Caetano, conheci gente que lutava mesmo pela liberdade. Não os insulte com a sua pergunta sobre se se deve elogiar Salazar. Quando estive no Chile, sob a ditadura de Pinochet, conheci gente que estava na clandestinidade e que veio a ser presa. Ouvi Hayek elogiar Pinochet, vi a Casa Branca a apoiar o golpe e vi Mao a reconhecer o novo governo. Os lutadores da liberdade estavam quase sozinhos mas resistiram até vencer. Não os insulte com a sua graçola sobre Pinochet. Sabe, nisto de ditadura e de liberdade, pode-se combater ou pode-se esbracejar. Continue pois a esbracejar no seu ódio, afinal é o que sabe fazer melhor.

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A melancolia de esquerda

(António Guerreiro, in Público, 02/12/2016)

Autor

António Guerreiro

 

Um equívoco muito difundido nos últimos dias consistiu em chamar “romantismo político” – seja tal designação indulgente ou traga o público opróbrio – às manifestações de empatia para com a figura de Fidel Castro (e uso aqui a palavra “empatia” com o sentido que ela tem enquanto atitude historiográfica).

A ideia de romantismo político designa outra coisa completamente diferente, implica uma outra história e outra genealogia. O romantismo político é uma ideologia estética, com os seus ideais de imaginação criativa, autonomia artística e totalidade poética. E, tal como a teoria romântica da literatura, é uma ideologia que incorpora uma reflexão sobre as suas próprias contradições, ou seja, é ao mesmo tempo ideologia e crítica, disposição emotiva e ironia, efusão sentimental e reflexão; embora, nas suas manifestações extremas, possa mesmo ser um irracionalismo político elevado à categoria de religião. Foi com uma crítica feroz do romantismo político, da sua visão estética do mundo e da sua tendência para a discussão perpétua e para a indecisão, que Carl Schmitt deu entrada na cena intelectual alemã, em 1919. O romantismo político, tal como o analisou Schmitt, é uma categoria trans-histórica e quase nunca prescinde de um outro conceito muito próprio da época romântica: o conceito de nação, essa “comunidade imaginada”, às vezes miticamente sublimada. Importa acrescentar que o romantismo político é muito mais propenso a uma relação com o passado (veja-se o que foi a Grécia para Hölderlin) do que às utopias.

Outra coisa diferente é o culto melancólico, como aquele que Fidel Castro suscita: uma melancolia de esquerda, muito mais barroca do que romântica. A ideia de uma melancolia de esquerda surge de passagem num texto de Walter Benjamin e teve alguns ecos pontuais em Itália e Inglaterra nos anos 90. Foi recentemente desenvolvida num livro do historiador italiano Enzo Traverso, acabado de publicar em França (Mélancolie de gauche, éditions La Découverte). Traverso entende a melancolia de esquerda como uma “tradição escondida”, tão antiga quanto a ideia de esquerda, mas dotada de uma vida discreta e quase subterrânea. Foi o colapso dos regimes socialistas da Europa de Leste que a trouxe à superfície, já que antes tinha sido recalcada ou censurada. A melancolia de esquerda é, como diz Traverso, uma melancolia dos vencidos, uma disposição interior que confere uma enorme força de sedução ao objecto de amor perdido, que por isso mesmo se presta à elegia. Não vou aqui resumir em meia dúzia de linhas o interessante livro de Enzo Traverso. Importa no entanto lembrar que Freud publicou um célebre estudo sobre “Luto e melancolia”, onde esses dois estados psíquicos são analisados: enquanto o luto é um sentimento causado por uma perda real que se supera com o tempo (uma vez feito o “trabalho do luto”), a melancolia é causada por uma perda fantasmática, pela relação com um objecto que nunca teve existência real. A presente circunstância faz-nos ver que a melancolia de esquerda é uma disposição que continua a manifestar-se através de sintomas. Esses sintomas não são necessariamente patológicos, a não ser quando se transformam em alucinação e tristeza permanentes. Na Idade Média, os monges eram atacados por uma forma particular de melancolia, a que chamavam acédia. Sucumbir à acédia era um pecado, decretou a doutrina da Igreja: Deus criou-nos para sermos felizes, não para carregarmos às costas o peso desse planeta lento e sinistro que se chama Saturno. A doutrina política de esquerda também quis afastar a melancolia. Em vão.

Gostaria de criticar Fidel

(In Blog O Jumento, 26/11/2016)
fidel
Gostaria de dizer que em Cuba as eleições são viciadas e o poder não é escolhido pela maioria. Pois, mas a América vai ter um presidente que teve menos votos do que a rival em eleições sobre as quais há muitas dúvidas e o mesmo já tinha sucedido na Florida, a mesma Florida dos exilados cubanos.
Se fosse descendente de um proxeneta dos tempos de Baptista, de algum latifundiário ou da burguesia cubana estaria a festejar agora a morte de Fidel. Mas não tenho a certeza de que os cubanos estejam contentes ou mesmo indiferentes, como sugere uma blogger cubana.
Gostaria de dizer que os cubanos vivem mal por causa de Fidel, mas a verdade é que há mais miséria em todos os países da América Latina do que em Cuba, a verdade é que em muitos indicadores de desenvolvimento Cuba está ao nível dos países mais desenvolvidos e nalguns casos mesmo acima dos Estados Unidos.
Gostaria de dizer que em Cuba há uma ditadura, mas como posso ignorar que muitos dos democratas que criticam a ditadura cubana apoiaram uma ditadura no meu país, como posso fazer de conta que algumas democracias da América Latina têm tantos ou mais presos políticos do que Cuba.
Gostaria de criticar Fidel por ter optado pelo isolamento, mas como posso esquecer que foi Cuba quem travou uma das maiores batalhas no continente africano, derrotando as forças armadas do Apartheid, em Cuito Cuanavale. Como posso criticar o isolamento de Cuba se foram os EUA que lhe impuseram o maior boicote comercial na história da humanidade.
É verdade que Cuba não é uma democracia, mas está longe de ser sido a pior das ditaduras da América Latina. É verdade que os cubanos poderiam viver melhor, mas são dos povos com menos miséria da América Latina. É verdade que Fidel foi um ditador, mas muitos dos que dizem que Fidel é um ditador, ajudaram ou apoiaram o mais brutal dos ditadores a derrubar Salvador Allende. Fidel, o ditador, tinha mais autoridade democrática do que muitos governantes democratas que ajudaram ou promoveram ditadores bem mais brutais.
Nesta hora gostaria de criticar Fidel, seguindo os meus princípios. Mas, peço desculpa, não consigo.