Manhã do dia primeiro

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 06/01/2018)

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Miguel Sousa Tavares

Da varanda do hotel, saboreio o início desta manhã de 1 de janeiro de 2018, início de outro ano. E não podia começar melhor: nem uma brisa agita a copa das árvores, a floresta tropical que se estende lá ao fundo até à praia de areia incrivelmente branca, como pó de talco solidificado, e até ao mar verde translúcido como convém ao mar das Caraíbas. Cayo Santa Maria, província de Villa Clara, Cuba. Por aqui, devidamente assinalado em toscas placas de uma encruzilhada de caminhos, andou a coluna de guerrilheiros do ‘comandante’ Camilo Cienfuegos, um dos que saíram da Sierra Maestra para derrubar a ditadura do fantoche dos americanos Fulgêncio Baptista, fez ontem, à passagem da meia-noite, exactamente 58 anos — precisamente à mesma hora em que os barbudos invadiram o réveillon em Havana, para pôr fim até hoje à bela vida da oligarquia cubana/americana. Por aqui andou também o furacão “Irma”, deixando um fundo sulco de devastação na mata e nas plantações da ilha, como uma bofetada de mão cheia nas imbecis teses de Donald Trump de que nada de estranho e assustador está a acontecer no clima do planeta que todos temos de habitar.

A absoluta tranquilidade desta manhã , o ar parado, como que suspendendo o tempo, o silêncio de pintura desta paisagem, traz-me inesperadamente à memória o quadro “Manhã de Domingo de Páscoa” (“Easter Morning”) de um dos meus pintores favoritos, Caspar David Friedrich — um pintor de florestas tropicais, por vezes também ocupado em pacatas cenas de aldeia alemã, como nesse fabuloso pequeno quadro pendurado numa das paredes do Museu Thyssen-Bornemisza, em Madrid. Na verdade, nada, de resto, acontece aqui. Sob a lua cheia da noite da passagem do ano, um pequeno mundo de gente proveniente de todos os espaços aéreos, desembarcados numa pista no meio de nada com dois barracões de apoio a justificar o pomposo nome de Aeropuerto International Abel Santa Maria (onde, por incrível azar, aterraram dois aviões ao mesmo tempo, estabelecendo o mais indescritível caos que eu já vira acontecer em 50 m2), tentou o melhor que pôde espalhar uma alegria obrigatória que não fosse apenas consequência dos efeitos do bar aberto. Canadianos fugindo de temperaturas de menos 20 graus e logo se derretendo em cervejas sob o calor de 30 graus do exterior do aeroporto internacional; russos sobreviventes das excursões soviéticas de outrora ainda vestindo os inimitáveis fatos de banho em estilo realismo socialista; italianos, espanhóis, franceses, e, sempre distinguíveis a qualquer distância pelas suas roupas escuras e ainda mais feias do que as habitualmente em uso na família real inglesa, os inevitáveis chineses, a nova praga planetária. (Aliás, é para mim um mistério insolúvel saber o que fazem as chinesas aos montes de roupa que compram como se não houvesse amanhã nas lojas da Gucci, da Armani, ou da Dolce & Gabbana, uma vez que, seja Inverno ou Verão, desfilam sempre nos seus trajes que não se vendem em mais lugar algum do mundo.)

Recebo da ditosa pátria as notícias da crise dos pernis de porco com o Maduro, aqui ao lado, mais o sucesso da operação à hérnia de afetos do Presidente Marcelo

Mas isso agora pouco importa. Há outras notícias e boas no horizonte: está um mar de Hemingway e decido marcar uma saída para a pesca, não atrás do blue marlin, mas apenas da memória desse extraordinário pequeno livro que me roubou uma noite inteira de sono, lá, no longínquo território da adolescência, no século em que as crianças liam livros antes de adormecer. E também, nas intermitências da vagabunda internet local (serão os satélites que não querem nada com Cuba, ou Raúl Castro, já com reforma marcada para Abril, que não gosta dos satélites?) recebo da ditosa pátria as notícias da crise dos pernis de porco com o Maduro, aqui ao lado, mais o sucesso da operação à hérnia de afetos do Presidente Marcelo e do grande gozo com que imagino que ele terá vetado a alteração à Lei do Financiamento dos Partidos, que todos eles, com excepção do CDS e do amigo dos animais, lhe puseram à frente, como se ele fosse lá perder oportunidade tão generosa para aumentar o seu índice de popularidade para 110%! Lá longe, tudo está em ordem, pois. Posso regressar em paz aos meus devaneios nesta varanda tropical.

Fora dos paraísos turísticos à beira-mar, Cuba faz-me lembrar o interior esquecido do Norte e Nordeste brasileiro. Os mesmos povoados de casas mal rebocadas ameaçando ruir, os fios de electricidade cruzando as ruas, o pequeno comércio de subsistência à beira da paragem dos autocarros, os homens sentados em cadeiras de baloiço na sombra dos alpendres, aparentemente sem nada para fazer. Desordem, tristeza, abandono. Todos os dias faltam no hotel limões, bananas, saladas, legumes — o que há é de lata e importado. Tanta carência não pode ser só justificada pelo furacão “Irma” ou pelo embargo americano — a mais desavergonhada medida política, tomada como castigo por os cubanos não terem querido passar de colónia espanhola a americana. Ao lado das povoações, a terra dos campos parece próspera, castanha e húmida das chuvas frequentes. Mas, tirando algumas vacas e cabras que vagueiam pelo que parecem ser pastagens naturais, não se vê nada cultivado. Não há volta a dar nem teorias revolucionárias que o consigam contrariar: se a terra é de todos ou do Estado, não é de ninguém; e se não é de ninguém, ninguém a trabalha. Para quê cultivar o que não se vai colher?

Daqui a dias, quando fizer por estrada os 400 quilómetros que me separam de Havana, pode ser que veja outra realidade, mas duvido. Com o aumento do turismo, começou a despontar há anos uma economia paralela: iniciou-se com as gorjetas, o câmbio alternativo, os serviços sem facturação. Pouco a pouco, o regime foi consentindo esses pequenos negócios a que chamaram “economia socialista de mercado”. Mas ultimamente há sinais de reversão, como se temessem que o sucesso dessa pequena margem de liberdade económica se tornasse o desmentido prático de 60 anos de ideologia oposta. As conclusões do 7º Congresso do PCC, em 2016, parecem as do primeiro Congresso pós-25 de Abril do PCP: sim aos “pequenos arrendatários, usufrutuários, agricultores, trabalhadores por conta própria”. Sim, mas desde que seja tudo em pequeno.

Em Havana, lá me espera o Floridita, que fez agora 200 anos, o bar ícone onde Hemingway se sentava aos finais de tarde a beber os seus daiquiris. Lá passarei, obviamente para beber o meu daiquiri em memória do ‘Papa’. Não só como homenagem ao seu amor por Cuba, onde teve casa durante 20 anos — a Finca Vigia (não confundir com aquela onde Alberto João Jardim viveu ainda mais do que isso) — mas sobretudo para prestar homenagem aos lugares por onde passou aquele que para mim foi sempre o mestre absoluto da simplicidade e eficácia narrativas.

O escritor que escrevia em pé, apoiado num tamborete, para não perder a concentração, mas que escrevia os diálogos sentado, pois que, como dizia, isso para ele era o mais fácil, visto que, tendo sido repórter de rua, sabia muito bem como as pessoas falavam. Quem sabe, talvez a mim me ocorra também um diálogo imaginário entre ele e esse outro mito cubano que é Che Guevara. O homem que viveu de mais frente ao homem que matou de mais. O homem que ergueu uma obra eterna e o homem que posou para uma interminável fotografia.


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia 

Gostaria de criticar Fidel

(In Blog O Jumento, 26/11/2016)
fidel
Gostaria de dizer que em Cuba as eleições são viciadas e o poder não é escolhido pela maioria. Pois, mas a América vai ter um presidente que teve menos votos do que a rival em eleições sobre as quais há muitas dúvidas e o mesmo já tinha sucedido na Florida, a mesma Florida dos exilados cubanos.
Se fosse descendente de um proxeneta dos tempos de Baptista, de algum latifundiário ou da burguesia cubana estaria a festejar agora a morte de Fidel. Mas não tenho a certeza de que os cubanos estejam contentes ou mesmo indiferentes, como sugere uma blogger cubana.
Gostaria de dizer que os cubanos vivem mal por causa de Fidel, mas a verdade é que há mais miséria em todos os países da América Latina do que em Cuba, a verdade é que em muitos indicadores de desenvolvimento Cuba está ao nível dos países mais desenvolvidos e nalguns casos mesmo acima dos Estados Unidos.
Gostaria de dizer que em Cuba há uma ditadura, mas como posso ignorar que muitos dos democratas que criticam a ditadura cubana apoiaram uma ditadura no meu país, como posso fazer de conta que algumas democracias da América Latina têm tantos ou mais presos políticos do que Cuba.
Gostaria de criticar Fidel por ter optado pelo isolamento, mas como posso esquecer que foi Cuba quem travou uma das maiores batalhas no continente africano, derrotando as forças armadas do Apartheid, em Cuito Cuanavale. Como posso criticar o isolamento de Cuba se foram os EUA que lhe impuseram o maior boicote comercial na história da humanidade.
É verdade que Cuba não é uma democracia, mas está longe de ser sido a pior das ditaduras da América Latina. É verdade que os cubanos poderiam viver melhor, mas são dos povos com menos miséria da América Latina. É verdade que Fidel foi um ditador, mas muitos dos que dizem que Fidel é um ditador, ajudaram ou apoiaram o mais brutal dos ditadores a derrubar Salvador Allende. Fidel, o ditador, tinha mais autoridade democrática do que muitos governantes democratas que ajudaram ou promoveram ditadores bem mais brutais.
Nesta hora gostaria de criticar Fidel, seguindo os meus princípios. Mas, peço desculpa, não consigo.

Um homem inteligente foi a Havana

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 28/013/2016)

Autor

                               Daniel Oliveira

Durante décadas os EUA arrastaram um bloqueio politicamente indefensável. Indefensável porque os Estados Unidos apoiaram e continuam a apoiar ditaduras bem mais brutais do que a castrista. A guerra fria e a sua própria segurança poderiam justificá-lo. Mas muito maior risco foram os EUA para a segurança de Cuba do que o oposto. As tentativas de assassinato do antigo chefe de Estado cubano e a falhada invasão de 1961 faz com que a paranoia cubana com o seu vizinho gigante não seja disparatada. E não, a preocupação dos EUA nunca foi – nem com Batista, nem com Fidel, nem com Raul, nem com qualquer governo de qualquer país da América Latina – a democracia. Quem use esta retórica ou é tolo ou faz de nós tolos.

O prolongamento do bloqueio a Cuba só trouxe problemas aos Estados Unidos. Tornou evidente que os EUA não aceitam a soberania dos Estados vizinhos. Na realidade, essa foi uma das funções do bloqueio: deixar bem claro a todos os latino-americanos que um caminho que os afastasse do lado de cá da guerra fria seria pago com pobreza e isolamento. Passado esse período, e quando se multiplicaram os governos de esquerda eleitos (Venezuela, Brasil, Bolívia, Argentina, Equador, Uruguai e por aí adiante), o bloqueio apenas teve dois efeitos simbólicos: manter a solidariedade da esquerda democrática latino-americana com um regime que, ao contrário dos seus, não contava com a legitimidade do voto, e reduzir a influência dos EUA juntos dos povos vizinhos, que compreendem bem a ameaça que paira sobre as suas cabeças.

Não cumprindo nenhuma função compreensível, porque se manteve e mantém o bloqueio? Por razões internas. A política americana, sobretudo no Estado da Florida e no Partido Republicano, é refém dos cubanos no exílio e estes são reféns da antiga elite corrupta da ilha que, é bom recordá-lo, nunca teve qualquer simpatia pela democracia. Com uma pequena elite intelectual e democrática cubana espalhada pelos EUA, Europa e Cuba, que nunca conseguiu construir uma verdadeira liderança popular, faltou nos EUA uma pressão de cubanos sensatos para uma política diplomática inteligente nas relações com Havana. Sobrou, como alternativa a Fidel e Raul, uma extrema-direita cubana sem qualquer apoio ou credibilidade dentro do país.

Há muito que os políticos norte-americanos mais sensatos perceberam que, tirando alguns corajosos intelectuais, não há uma oposição organizada e democrática capaz de conquistar o poder em Cuba e que uma mudança abrupta de regime, para alem de improvável, poderia levar de Miami para Havana gente ainda menos fiável do que Raul Castro. Não levariam na bagagem a democracia e, em vez de um inimigo, os EUA passariam a ter como vizinho uma perigosa incógnita.

Infelizmente, foi preciso um Presidente que não tem de vencer eleições na Florida e sem qualquer possibilidade de conquistar simpatias nos sectores que impõem este estúpido bloqueio para que as coisas começassem a mudar mais depressa. Nas circunstâncias internas da ilha e tendo em conta as características da elite política e económica dos exilados, a democracia e a segurança só poderão ser conseguidas por via de uma transição interna. E talvez só possa ser feita com alguém que tenha a legitimidade histórica, revolucionária e até familiar de Raul Castro. Com pequenos passos.

É assim, pelas mão do ditador irmão do ditador, a conta-gotas e sem ouvir o povo, que as democracias devem nascer? Não. Mas como nos ensinaram a Líbia e a Síria, entre o que devia e o que pode ser há por vezes uma distância considerável. A inteligência da política é tentar chegar ao mesmo lugar de outra forma.

Ao visitar Havana Barack Obama fez muito muito mais pela democracia em Cuba do que 54 anos de bloqueio.

De um passo histórico semelhante ao que já dera para uma maior abertura do Irão, com resultados já visíveis. Pela credibilidade que este gesto deu aos EUA junto dos outros Estados latino-americanos, tão importantes para a sua estratégia política e económica, os norte-americanos irão agradecer um dia . E os cubanos ainda mais.