200 anos de fado tropical

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 09/09/2022)

Miguel Sousa Tavares

A triste prova de que o Brasil é hoje um projecto falhado é que anteontem, no dia em que se celebraram os seus 200 anos de independência, o que ocupava as manchetes dos jornais brasileiros não era nem a história, nem a celebração, nem a exaltação do presente ou a outrora inabalável esperança no futuro, mas apenas o retrato a negro de um país tenso, dividido, onde se fala abertamente de golpe e se discute se a população deve ou não poder comprar ainda mais armas para enfrentar as decisivas eleições do próximo dia 2 de Outubro. De acordo com todas as previsões, Bolsonaro — cujo Governo passou um ano inteiro a desprezar ostensivamente o bicentenário da independência — aproveitou a data do 7 de Setembro para a transformar num misto de demonstração de força militar e intimidação política, transformando as cerimónias num indecoroso comício eleitoral, pondo soldados a desfilar ao lado de camionistas e tractoristas representativos da sua base de apoio rural e dos que desmatam uma área equivalente a 17 campos de futebol todos os dias na Amazónia — e com o nosso Presidente, como também era mais do que previsível, a prestar-se a caucionar aquela indecorosa fantochada. Ao mesmo tempo, Bolsonaro chamava “vagabundo” ao presidente do Supremo Tribunal Eleitoral e convidava para a tribuna de honra do desfile em Brasília, ao lado de Marcelo, oito empresários que, através de um grupo no Whats­App, tinham apelado a um golpe de Estado caso ele perca as eleições de 2 de Outubro. Ora, quando um Presidente da República em funções celebra assim 200 anos de independência do seu país, está quase tudo dito sobre o estado a que chegou esse país e o que ele fez com os seus dois séculos de independência.

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Quase, mas não tudo. É preciso acrescentar que o Brasil nasceu, por mandato divino, como um dos países mais ricos do mundo, no solo, no subsolo e na sua imensa extensão terrestre e marítima, a maior de qualquer país atlântico. Desde a sua descoberta pelos portugueses (sim, descoberta, desculpem lá), o Brasil viveu sucessivos ciclos de riqueza, ditados pela generosidade da sua terra ou das suas entranhas: o da madeira, o da cana-de-açúcar, o do algodão, o do ouro e dos diamantes, o do café, o da borracha, o do gado, o do aço e outros minerais. E agora o da destruição da Amazónia, que, a prazo, será uma tragédia para o Brasil e para o planeta. Acresce que ao longo da sua história, desde a chegada dos portugueses, o Brasil foi ainda beneficiado por uma mão-de-obra escrava, primeiro índia, depois negra: mais de cinco milhões de almas arrancadas de África pelo tráfico negreiro e que construíram o Brasil — uma infâmia só terminada com a abolição da escravatura em 1888, quase 70 anos depois da independência. Assim, já bem entrados no século XXI, podemos dizer que não existiu nenhuma razão — histórica, económica, social ou política — para que o Brasil não fosse hoje um dos países mais desenvolvidos e mais justos do mundo.

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Todavia, desde que conheço o Brasil — já lá vão muitos anos e muitas, muitas visitas, desde a Amazónia até lá abaixo —, raras foram as vezes em que, falando da história do Brasil com brasileiros, não tive de escutar um rol interminável de explicações e lamentações com as culpas dos estrangeiros: portugueses, “castelhanos” ou americanos. Mas jamais culpas próprias. Como português, dói-me particularmente, claro, assistir ao amor não retribuído, antes maltratado, que o comum dos brasileiros tem por nós (hoje, é verdade, bastante mitigado pelos brasileiros que se deram ao trabalho de conhecer Portugal e aos 300 mil que aqui vivem). Os estereótipos históricos, culturais ou sociais, do roubo do ouro do Brasil, do azar de Pernambuco não ter ficado holandês ou o do Manel de bigode que só prestava para padeiro, por exemplo, são coisas que os meus olhos e os livros de História me ensinaram serem impiedosas mentiras. O “roubo do ouro do Brasil”, o célebre “quinto real”, era o imposto da coroa, correspondente, portanto, a 20% — tomáramos nós, portugueses e brasileiros, que o Estado nos cobrasse hoje apenas isso! Porém, talvez nem um quinto desse quinto tenha, de facto, chegado ao Terreiro das Naus e aos carrilhões de Mafra, perdido nos assaltos da “estrada do ouro” para Paraty ou desviado pelos cobradores locais; em contrapartida, fez a prosperidade de Minas Gerais e deu berço a São Paulo. E, acima e antes, a Amazónia, que hoje Bolsonaro vende aos chineses sob a forma de soja, deve-a, inteirinha e intacta, ao primeiro-ministro português Sebas­tião de Carvalho e Melo, conhecido por marquês de Pombal, que ali mandou construir sete fortes ao longo das suas imensas fronteiras, com pedras trazidas do reino e para a defender das investidas “castelhanas”, e que para lá mandou povoadores dos Açores, a quem o reino dava alfaias e dinheiro em troca do casamento, de altar e papel passado, com mulheres índias. A grande frustração dos holandeses terem sido desapossados de Pernambuco, ainda hoje alimentada por muitos e em nome da superior colonização flamenga e da “espantosa” embaixada cultural do seu governador Maurício de Nassau, basta ir lá e ver: mal chegaram, os holandeses destruíram e queimaram Olinda, que os portugueses depois reconstruíram e ainda lá está, na sua serena beleza. Mas dos 60 anos de Holanda não há um edifício, um monumento, uma obra de arte, uma igreja ou uma quinta agrícola, pois que eles não foram para cultivar, mas apenas para roubar o açúcar que os portugueses cultivavam. E lá estava também, quando se veio embora D. Pedro de coração inteiro, toda a mata atlântica, hoje praticamente desaparecida, a que os portugueses acrescentaram fortes, portos, praças, vilas e milhões de coqueiros trazidos da Índia, como antes trouxeram a cana-de-açúcar e depois o café ou a árvore da borracha. Mas, enfim, pensando no que foi a África do Sul dos boers ou a colonização holandesa da Indonésia, talvez fosse melhor para alguns que um exército formado por portugueses, índios e negros não tivesse derrotado os holandeses na decisiva batalha de Guararapes, em 1648… A cada um a sua sonhada pátria.

De onde vem então este mal secreto que faz do Brasil um insuportável cemitério de esperanças?

Roubámos o Brasil? Sim, explorámos o Brasil, como qualquer colonizador explora uma colónia, e, no sentido literal, explorar é roubar. Todavia, eu olho para isso sem complexos nem sentimentos de culpa. Há, claro, a questão da escravatura, que mancha toda a história de forma incontornável. Mas ela também envolveu os brasileiros, antes e depois da independência, e a triste verdade é que sem a escravatura não existiria o Brasil de 1820.

Até lá, duvido de que o que roubámos ao Brasil não seja incomparavelmente menos do que o que lá deixámos, mesmo sem contar com dois trunfos inestimáveis: a unidade de um país imenso que não se fragmentou, ao contrário da América do Sul espanhola, e a língua que o une.

Duzentos anos depois, a desculpa da colonização portuguesa não colhe. Mais depressa a herança genética do fado de lamentação, que essa, sim, é uma maldição portuguesa. E, todavia, Deus também abençoou o Brasil com gerações de gente notável: construtores, arquitectos, escritores, artistas, músicos, cientistas, jornalistas e, às vezes, até políticos. De onde vem então esse mal secreto que faz do Brasil um insaciável cemitério de esperanças?

2 Eu faço parte dos portugueses que se sentiram gratos e quase resgatados na sua honra com o pedido formal e espontâneo de desculpa que António Costa fez em Maputo a propósito dos 50 anos do massacre de Wiriyamu. Não venham cá com argumentos de que só podemos pedir desculpa se os outros também pedirem ou de que, de desculpa em desculpa, nunca mais acaba a história. É preciso ter a noção da diferença entre o que é circunstancial e o que é intolerável e a noção da simples decência: um massacre é um massacre, não há mas nem todavias que o justifiquem. Em Wiriya­mu, uma tropa portuguesa, armada e fardada para defender o que então lhes disseram ser a pátria, abriu fogo sobre a população civil indefesa de uma aldeia moçambicana, deixando por terra 400 mortos, entre crianças, mulheres e velhos. Se hesitamos em entender isto como uma vergonha sem nome na nossa história, também não a podemos defender quando ela merece e precisa de ser defendida, como acima faço.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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A guerra ilegal como sistema

(Manuel Loff, in Público, 01/03/2022)

Manuel Loff

A invasão da Ucrânia ordenada por Putin é uma grosseira violação do Direito Internacional e traz riscos gravíssimos para a paz mundial. Em cada hora que passa com tropas russas em território ucraniano aumenta o potencial para a prática de crimes de guerra e agiganta-se a escalada belicista por parte da Rússia, da NATO e da própria UE, acelerando um processo de inaceitável militarização desta última. Desde o momento em que a Rússia invadiu, é sobre ela que passaram a recair as responsabilidades principais por tudo isto. Por mais que durante 30 anos grandes potências ocidentais tenham conduzido guerras ilegais – às quais, exatamente como Putin agora, evitaram chamar “guerra” e descreveram como “operações especiais” de sinistros nomes -, por mais que as sucessivas vagas da expansão da NATO tenham sido uma evidente provocação à Rússia, nada justifica a invasão.

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Não deveria ser necessário recordar nada disto. A guerra perpétua é uma componente central da nova ordem internacional do pós-Guerra Fria, e não foi a Rússia nem Putin que a inauguraram. É revelador, contudo, que haja que fazê-lo pelo ambiente de intimidação que sofremos os que recordamos que Putin faz hoje na Ucrânia o que Bush, Blair, Aznar&Durão fizeram no Iraque em 2003, levando à morte, só nos primeiros três anos de guerra e ocupação, de 200 a 500 mil civis. Na Palestina, ilegalmente ocupada por Israel desde 1967, milhares de civis foram mortos pelas forças de ocupação (10 mil só desde 2000, segundo a B’Tselem), para já não falar dos crimes de guerra perpetrados no Afeganistão ou na Líbia em intervenções em algum momento legitimadas pela ONU. Em todos os casos as vítimas civis tendem a ser descritas como “danos colaterais”, como lhes chamava Jamie Shea, o porta-voz da NATO na guerra contra a Sérvia. Ninguém foi até hoje condenado por toda esta mortandade; é para o evitar que os EUA rejeitam aderir ao Tribunal Penal Internacional (TPI), acompanhados nessa atitude por Israel, a Ucrânia ou a Rússia que, depois de ter aderido em 2000, o abandonou em 2016. Putin poderá talvez contar com a mesma impunidade de Bush. A diferença é que os EUA ou os seus aliados não sofreram sanção alguma.

Se a verdade é a primeira vítima de todas as guerras, a memória é a segunda. Abordar esta guerra como se ela fosse a primeira ilegal da história é continuar a invisibilizar o caráter sistemático da violação do Direito Internacional pelo Ocidente sempre que, como a Rússia agora, não obtém o apoio da ONU.

O paralelo é evidente com a guerra ilegal que a NATO, a maior aliança militar do mundo, moveu em 1999 contra a isolada Sérvia, um país mais pequeno que Portugal. Da mesma forma que Putin invocou o “genocídio” que os ucranianos teriam praticado nas regiões russófonas, também a NATO invocou 100 mil mortos kosovares às mãos dos sérvios, número que afinal se reduziria a três mil quando o TPI começou a investigar (Guardian, 18/8/2000). A propaganda tem destas coisas: não é que os sérvios não tenham massacrado kosovares, nem que os ucranianos não tenham matado e feito desaparecer centenas de pessoas em Donetsk e Lugansk desde 2014 (ver relatórios da Amnistia Internacional); a manipulação da informação é que serviu de pretexto para as duas intervenções. Setenta e oito dias e noites consecutivos de “bombardeamentos cirúrgicos” da NATO atingiram na Sérvia colunas de refugiados, hospitais, escolas, órgãos de comunicação, a embaixada chinesa, fazendo cerca de 500 mortos entre os civis (ver dados do Humanitarian Law Center). Na sequência da guerra, e segundo o ACNUR, 200 mil sérvios tiveram de fugir do Kosovo, até então uma província sérvia. Nenhum responsável político ou militar da NATO foi sequer julgado por crimes de guerra. Como recorda o historiador Mile Bjelajac num artigo de 2019, “ainda hoje a guerra do Kosovo é alardeada [no Ocidente] como uma campanha de sucesso com ‘zero baixas’”. Ela tornou-se verdadeiro modelo de guerra ilegal e impune.

Levantaram-se entre nós muitas vozes contra o que se descreveu como falta de clareza da condenação do PCP da invasão russa. É curioso. E pedir contas ao Estado português por ter participado em guerras ilegais como as da Sérvia e do Iraque? E exigir sanções já contra a ocupação israelita da Palestina? E o julgamento de 30 anos de guerras ilegais?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico


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Repetir as eleições não é um desastre?

(Pedro Tadeu, in Diário de Notícias, 16/02/2022)

Recebi agora a notícia de que as eleições legislativas do mês passado vão ser repetidas no círculo da Europa no dia 27 de fevereiro. Proponho-me um exercício mental: sem consultar nenhum catrapázio, sem ajuda da internet, vou listar 10 consequências negativas da anulação das eleições do passado dia 30 de janeiro nesses locais. Cá vai:

1 – O raro emigrante que faça o sacrifício de voltar a tentar votar nestas eleições, depois de saber que o seu empenho democrático anterior foi burocraticamente destruído, tem certamente uma alma caridosa e merece um lugar no Céu. Porém, uma boa parte destes emigrantes, pessoas normais, depois de se sentirem gozados pelo Estado português, nunca mais votará. O círculo Fora da Europa, já tradicionalmente muito abstencionista, corre o risco de passar a mobilizar, no futuro, apenas meia-dúzia de eleitores.

2 – Os votantes do dia 27 de fevereiro serão influenciados pelos resultados reais já conhecidos nos restantes círculos eleitorais. Isto cria uma base de raciocínio que leva a uma decisão do voto substancialmente diferente em relação à base de que partiram os eleitores do dia 30 de janeiro. É uma desigualdade subjetiva, mas sentida.

3 – Como os dois deputados que o círculo da Europa elege não vão influenciar substantivamente a formação de grupos parlamentares ou a composição de maiorias, a perceção junto da opinião pública é que este ato eleitoral é pueril. Isto contribui para a degradação do prestígio do ato eleitoral em si, para o aumento da descrença nos procedimentos democráticos, para mais uma acha para a fogueira do ceticismo geral na democracia.

4 – Como esta decisão do Tribunal Constitucional decorre de um erro burocrático generalizado, que invalidou 157 mil votos, outra das consequências negativas deste acontecimento é o reforço na opinião pública da incompetência endémica do Estado, da sua incapacidade em fazer bem as coisas mais simples – um belo serviço aos ideólogos da destruição do papel Estado na sociedade.

5 – Outra componente do Estado que sai ferida nesta ocorrência é a da Justiça: dado o que se passou com os erros no processo eleitoral é formalmente justo mandar repetir estas eleições mas, contraditoriamente, a imagem que sai para o cidadão comum é a de que o Tribunal Constitucional mandou fazer uma eleições que não servem para nada, resultando num desperdício de tempo e de dinheiro.

6 – A nova Assembleia da República vai tomar posse mais tarde e a normalidade política tarda a voltar. Estamos num limbo.

7 – O atraso que a decisão do Tribunal Constitucional vai provocar na tomada de posse do novo Governo – dizem as notícias que será só lá para meio de março – implica também que a aprovação de um Orçamento do Estado para o resto do ano acabe por ter efeitos práticos apenas lá para junho.

8 – A gestão dos dinheiros públicos vai ser gerida em duodécimos durante mais tempo e isso vai ter consequências práticas na tesouraria das instituições da Saúde, da Educação, da Segurança, etc. Muitos fornecedores e muitos trabalhadores a recibo verde que prestam serviço ao Estado correm o risco de receber pagamentos com atrasos ainda maiores.

9 – As atualizações das pensões de mais de 2 milhões de pessoas, o anunciado aumento extra de 10 euros, podem também atrasar-se ainda mais. Provavelmente só lá para junho.

10 – O governo que ainda está em exercício agoniza e vai empurrar com a barriga decisões importantes ou vai tomar decisões inopinadas que deveria passar ao governo seguinte.

Não foi difícil perceber algumas das consequências graves deste fiasco no processo eleitoral, o que me leva a concluir que elas eram facilmente previsíveis. Se estudasse a questão com mais tempo, certamente encontraria mais e piores.

Quem decidiu repetir as eleições pensou nos prejuízos que ela acarreta para a sociedade? Os interesses conflituantes, que a boa justiça deve sempre avaliar, foram todos ponderados? E quem provocou politicamente esta situação está de consciência tranquila? E a Administração Pública, que falhou, já encontrou alguém responsável por este desastre?

Jornalista


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