Uma alternativa transversal abala a paralisia da Alemanha

(Por Eduardo J. Vior, in Geopol.pt, 27/06/2023)

Expulsa recentemente do partido A Esquerda, Sahra Wagenknecht prepara-se para fundar uma nova formação diferente do sistema atlantista e do populismo de direita.


Ao expulsar a líder histórica da corrente marxista da Esquerda (Die Linke), a direção do partido fez-lhe mais um favor do que um dano. O grande mal, pelo contrário, foi infligido a si própria e, paradoxalmente, ao seu equivalente no outro extremo do sistema político alemão, a Alternativa pela Alemanha (AfD). Rompendo todos os diques do esclerótico sistema político alemão, o discurso pacifista, socialista e popular de Sahra Wagenknecht granjeou-lhe a simpatia tanto dos eleitores de esquerda como dos conservadores. Se agora construir uma força transversal, desencadeará uma torrente que poderá destruir o Estado liberal e ameaçar o domínio dos EUA na Alemanha.

O Partido de Esquerda (Die Linke) apelou no sábado, dia 10, à sua antiga líder, Sahra Wagenknecht, para que renuncie ao seu mandato no Bundestag (câmara baixa do parlamento alemão). Wagenknecht e outros esquerdistas não citados nominalmente devem devolver os seus mandatos, afirma um comunicado da presidência federal do partido. De acordo com a Lei Fundamental, Sahra Wagenknecht não é obrigada a devolver o seu mandato, mas está desvinculada do partido.

Sahra Wagenknecht, de 54 anos, filha de um iraniano (daí o nome “Sahra”) e de uma alemã, foi membro da Juventude Socialista da Alemanha de Leste e, após a reunificação, aderiu ao Partido da Democracia Socialista (PDS), sucessor do antigo Partido da Unidade Socialista (SED) da extinta República Democrática Alemã (RDA). Na nova estrutura, presidiu à Plataforma Comunista, uma corrente interna ortodoxamente marxista, durante vinte anos. Em diferentes alturas, foi também membro da Presidência do Partido Federal e é deputada no Bundestag desde 2009. Durante a sua carreira, teve muitos confrontos com a maioria da direção do partido, que considerava “demasiado adaptada” à democracia liberal.

No entanto, foi depois das eleições legislativas de 2021, em que a esquerda perdeu metade dos seus votos, que a coexistência se tornou quase impossível. Enquanto a corrente dominante, seguindo a deriva identitária da esquerda europeia, prossegue uma agenda centrada nas políticas de género, no ambientalismo, no europeísmo, na abertura das fronteiras e no antirracismo, a minoria de esquerda acentuou a sua luta pelos direitos sociais, o pacifismo, a boa vizinhança com a Rússia e a integração dos imigrantes. Após a eclosão da guerra na Ucrânia, as diferenças acentuaram-se, porque a maioria adoptou o rumo anti-russo de grande parte do sistema político e a esquerda manifesta-se pela procura imediata de negociações com a Rússia, ao mesmo tempo que denuncia os EUA como o instigador da conflagração na Europa de Leste.

Apesar de Wagenknecht sempre ter entrado em conflito com a linha do partido, a maioria conteve-se até há pouco tempo, porque a líder é muito popular, mas a sua confluência de facto com algumas das posições defendidas pela AfD, de direita, já transbordou. Em março passado, juntamente com a feminista histórica Alice Schwarzer, lançou um “Manifesto pela Paz” que recolheu numerosas assinaturas (incluindo de dirigentes da AfD) e apelou a uma grande manifestação pela paz em Berlim. Desde então, a eurodeputada e os líderes do AfD fizeram uma série de declarações em que apelaram a negociações com a Rússia e condenaram as políticas económicas e sociais da coligação governamental.

Já em março passado, uma sondagem da revista Der Spiegel mostrou que os eleitores conservadores, especialmente os apoiantes da AfD, apoiariam um possível partido a fundar por Sahra Wagenknecht. No total, 25 por cento da população imagina-se a votar num partido liderado pela dirigente. Se entrar em campo com uma força própria, Sahra Wagenknecht pode tornar-se uma concorrência perigosa para a AfD, porque goza de grande popularidade entre os eleitores de direita e, com a sua combinação de críticas à migração descontrolada e à sua consciência social, atinge-os.

Visto em perspetiva, este é o único desenvolvimento que poderia travar o crescimento da direita nacionalista. Uma sondagem do YouGov, publicada na sexta-feira, dia 16, indica que 20% dos eleitores alemães dariam o seu voto à AfD, o que a torna o segundo partido mais forte, atrás da CDU, de centro-direita (28%) e à frente do SPD do chanceler Olaf Scholz (19%). Não há dúvida de que se trata de um terramoto político.

Após apenas um ano e meio no poder, a atual coligação “semáforo” entre o SPD, os Verdes (com 15%) e os liberais do FDP (7%) já não tem mandato para governar. Nas eleições gerais de 2021, o SPD tinha obtido 25,7%, o FDP 11,5% e o Partido Verde 14,8% dos votos. A sua incapacidade para resolver a crise económica e fazer baixar a inflação, a sua insistência numa transição ecológica impopular, a sua imperfeição na gestão do fluxo de requerentes de asilo que entram no país e o seu apoio à guerra dos EUA contra a Rússia retiraram-lhe toda a legitimidade. Esta queda abrupta da coligação deixa um vazio que a AfD, de direita, deveria ser capaz de preencher.

Vinte por cento é já um limiar significativo num sistema político fragmentado como o da Alemanha e alguns observadores políticos colocam o potencial externo da AfD em cerca de 30%. Até agora, uma coligação com a AfD era tabu para os dois maiores partidos, a CDU e o SPD. No entanto, na situação atual, a CDU enfrenta uma escolha: voltar à “grande coligação” paralisante com o SPD da era Merkel ou formar um governo com a AfD de direita.

A questão é que a AfD está a crescer e, quando ultrapassar a marca dos 20%, será mais difícil excluí-la de um governo de coligação. A recessão na Alemanha deverá ser longa e favorecerá as alternativas anti-establishment. O aumento descontrolado da imigração também está a contribuir para o crescimento da AfD. De acordo com dados oficiais, o número de pedidos de asilo na Alemanha aumentou 80% entre janeiro e março de 2023, em comparação com o mesmo período do ano passado. Num contexto de crise e de guerra, este aumento deve-se, sem dúvida, à situação central do país, mas também à força da sua estrutura de acolhimento. No entanto, como salientou Wagenknecht numa entrevista, o problema não é tanto o número de refugiados que o país aceita, mas a falta de políticas de integração para facilitar a convivência entre residentes e recém-chegados.

Igualmente, o SPD, os Verdes e os Liberais gastaram uma fortuna para apoiar a Ucrânia. A AfD, eurocética e defensora de melhores relações com a Rússia, aproveita-se assim do facto de cerca de um terço dos alemães não concordar com a guerra contra a Rússia. Por exemplo, apenas 28% dos inquiridos na última sondagem apoiam a entrega de caças alemães à Ucrânia e 55% dizem que a procura de negociações para acabar com a guerra deve ser intensificada. Apenas a AfD e a esquerda socialista de Wagenknecht levantam estas questões.

Do mesmo modo, a rejeição à União Europeia (UE) está a aumentar. Dezoito por cento dos inquiridos discordam fortemente da noção de identidade europeia. Ao mesmo tempo, o número de eurófobos e de eurocépticos está a aumentar igualmente, respetivamente 41% e 56%. A maioria da população (também noutros países europeus) resiste à delegação de mais poderes soberanos na UE.

Além disso, no ano passado, os Verdes acabaram com a energia nuclear e impulsionaram a transição para as energias renováveis a uma velocidade vertiginosa, gerando uma reação negativa entre os eleitores. Os custos da transição energética são insustentáveis para a classe média baixa e para as famílias mais pobres. A direita e a esquerda também estão a capitalizar este descontentamento.

A curto prazo, o impasse político está a aproximar-se devido à incapacidade dos quatro maiores partidos (CDU/CSU, SPD, FDP e Verdes) para encontrar soluções para a crise e à sua subserviência à política dos EUA. Ao mesmo tempo, após a expulsão da esquerda socialista, o partido da Esquerda poderá ficar abaixo dos 5% dos votos e perder o estatuto parlamentar. As hipóteses de os partidos estabelecidos formarem coligações governamentais com maiorias suficientes entre si foram significativamente reduzidas. A AfD aspira, portanto, a tornar-se indispensável na formação de um governo federal, mas tem de recear a concorrência da esquerda.

Washington utilizou o pretexto da guerra na Ucrânia para cortar os laços de Berlim com Moscovo e Pequim, através de sanções contra a Rússia. A ascensão do partido de direita sugere agora a possibilidade de a RFA recuperar a sua autonomia. No entanto, as suas componentes xenófobas e racistas suscitam a reação das classes médias liberais e põem em alerta todos os seus vizinhos, tanto mais que a ascensão da direita na Alemanha encorajaria a candidatura de Donald Trump nos Estados Unidos. Uma alternativa de esquerda reduziria essas apreensões, mas provocaria a reação americana.

A Alemanha parece não ter alternativa. Só o reatamento das negociações com a Rússia e a China poderia dar-lhe algum fôlego, razão pela qual a chanceler e os dirigentes das maiores empresas industriais do país se reuniram na terça-feira, em Berlim, com o primeiro-ministro chinês Li Qiang. Ali, reafirmaram a necessidade de reavivar os laços bidireccionais entre as duas potências, mas talvez seja demasiado tarde. A degradação das condições de vida e o pânico crescente entre uma população que se sente insegura farão o seu trabalho. Não é previsível que, no atual mapa político estagnado, uma nova força socialista venha a convergir com o nacionalismo democrático (que também integra a AfD), mas um novo partido de esquerda popular e radicalmente democrático poderia mover o tabuleiro de xadrez.

O desmoronamento crescente do sistema político alemão obrigará a que sejam tomadas decisões antes do final do ano. Ou o governo se mexe ou a sociedade mexer-se-á. Entretanto, novos actores entram em cena.

Traduzido par GeoPol do espanhol desde Télam


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Razões da ascensão da extrema direita num país à beira-mar plantado

(António Garcia Pereira, in NoticiasOnline, 29/09/2022)

Quando alguns de nós nos surpreendemos e até nos indignamos com as subidas eleitorais (como já aconteceu em Portugal) e até com a ascensão ao poder (como está a suceder em Itália, por exemplo) de forças e personagens da extrema direita, bem faríamos se procurássemos atentar devidamente nas circunstâncias e nos factores que a tal conduzem e nas formas de os alterar de forma clara e consistente. É que se analisarmos isto com rigor, não são só fascistas e nazis que votam em tais forças. Ao invés, tem havido um número crescente de pessoas que se deixam levar pelo discurso demagógico e até mentiroso, mas por vezes aparentemente apelativo, das promessas fáceis, das denúncias ocas, mas ribombantes, do discurso do ódio contra o outro e do apelo aos instintos mais baixos e mais primários.

Sobretudo em épocas de profunda crise económica e social e em estado de necessidade grave é isso que inevitavelmente acontece quando os partidos e os dirigentes políticos que se dizem (e alguns ainda dizem, outros já nem isso) de “esquerda”, “socialistas” e até “comunistas” traem e rasgam as ideologias e abandonam por completo as bandeiras que foram desde sempre apanágio das forças de esquerda, tais como a preocupação e a protecção dos mais pobres, dos mais doentes, dos mais fracos e dos mais vulneráveis da sociedade e a defesa de adequadas e decentes condições de Educação, de Saúde, de Protecção Social e de Justiça para todos.

E quando a isto se soma a substituição das ideias e dos princípios pelos chamados “tacticismo” e “pragmatismo” (leia-se, oportunismo) e se aceita que a governação possa ser feita com base na ilusão, na mentira e até no medo, a porta fica escancarada para aqueles que, com peles de cordeiro, logo aparecem a clamar ruidosamente contra a corrupção e a incompetência dos políticos tradicionais, contra os imigrantes e aqueles a quem chamam “subsídio-dependentes” e a defender, de forma cada vez mais arrogante e acintosa as velhas e salazarentas ideias do “Deus, Pátria e Família” ou do “A Pátria e o Governo não se discutem”.

Deste modo, o discurso ideológico de que “não há alternativa”, de que “as ideologias morreram”, de que “os fins justificam os meios” e de que a vitória e o sucesso a qualquer preço são a única coisa que importa, constituem aquilo que tenho designado de uma autêntica e viscosa missa hipnótica com que somos bombardeados todos os dias e a qual nos adormece e entorpece a vontade e a capacidade de reagir perante o abuso e a injustiça.

Na verdade, se olharmos para a Saúde, o que hoje vemos são quase um milhão e quinhentos mil portugueses sem médico de família, urgências hospitalares (agora claramente já sem o pretexto da covid-19) absolutamente atafulhadas, encerramentos de serviços inteiros como os de Ginecologia e Obstetrícia, a continuação da desarticulação e definhamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS), a permanência das infindáveis listas de espera e a subida em flecha, e de todo não explicada, da mortalidade infantil e dos mais idosos. E, todavia, o discurso oficial é o de que até estamos bem neste campo da Saúde…

No campo económico e social, a Pobreza não pára de crescer. Enquanto os salários e pensões permanecem iguais ou têm aumentos irrisórios, a inflação, sendo seis a sete vezes superior a esses mesmos aumentos, corrói por completo o poder de compra de quem vive dos rendimentos do seu trabalho ou da sua pensão de reforma. Mas enquanto as estatísticas europeias e os dados e relatórios das instituições de solidariedade social que estão no terreno (como a Caritas, por exemplo) mostram um mais que notório agravamento da pobreza, este não é afinal reflectido nos números oficiais portugueses, que assim manipulam as estatísticas.[1]

Como justamente afirmou, em depoimento prestado ao semanário Expresso do passado dia 17 de Junho, o economista e professor do ISEG, Carlos Farinha Rodrigues, “temos uma quebra no poder de compra brutal entre 2021 e 2022, que resulta essencialmente da inflação e não tanto da alteração de rendimentos e que, portanto, não irá alterar os indicadores de pobreza. Até pode não haver um aumento da pobreza monetária em 2022, mas há uma perda de condições de vida muito significativa.”

Deste modo, cada vez mais portugueses deixam de conseguir comprar peixe ou carne para se alimentarem condignamente ou pagar os medicamentos ou as despesas de educação dos filhos, só conseguindo subsistir deixando de pagar a renda de casa ou a prestação do banco. Famílias inteiras dependem da ajuda de instituições, de familiares ou até de terceiros e (sobre)vivem abaixo dos limites da dignidade humana.

Se e quando conseguem trabalhos, eles são quase todos precários (ou até mesmo informais, ou seja, por “debaixo da mesa”), com remunerações muito baixas, vivendo estas pessoas com o permanente sobressalto de a todo o momento poderem perder esse magro meio de subsistência. E, todavia, o discurso oficial também a este respeito é o de que não estamos assim tão mal, de que o Governo tem uma “Agenda de Trabalho Digno” e que até já aprovou em Dezembro uma “Estratégia Nacional de Combate à Pobreza” (aliás, sem qualquer desenvolvimento desde então) e se comprometeu, a nível europeu, a atingir a meta, até 2030, de retirar da situação de pobreza 660 mil pessoas, das quais 230 mil são trabalhadores e – pasme-se! – 170 mil são crianças!

Entretanto, o que esta gigantesca (e sempre crescente) legião de pobres vê, ouve, lê e sente é que os sacrifícios, por maiores que sejam, têm de ser suportados só por eles, pois os grandes interesses económicos e financeiros não devem ser hostilizados e, por isso, puderam, com o maior desplante e tranquilidade e precisamente à conta da crise e à custa dos que com ela sofrem, embolsar ganhos absoluta e pornograficamente gigantescos.[2]

Ora, se aquilo que os dirigentes e partidos ditos de esquerda têm para dizer aos pobres deste País é que “aguentem”, quem se pode depois admirar quando o desespero e até a raiva de quem é assim maltratado e espezinhado o faça correr a apoiar aqueles que lhes aparecem como “salvadores”?

Finalmente, temos a Justiça, que se mostra com uma balança cada vez mais desigual: extremamente cara, acessível apenas aos mais ricos e (tal como sucede com o Fisco, por exemplo), muito forte, pertinaz e até implacável com os alvos fáceis, ou seja, os mais fracos, mas lenta, ineficaz e até benevolente com os mais ricos e protegidos do sistema. Entidades administrativas e governamentais (da Segurança Social ao dito Fisco, passando, por exemplo, pelas autarquias locais e os ministérios) sabem que, com o “poço sem fundo” que é hoje e desde há muito a Justiça Administrativa e Fiscal, a esmagadora maioria dos cidadãos atingidos por actos e decisões ilegais não têm quaisquer disponibilidades (financeiras, anímicas ou temporais) para aguentar demandas judiciais que chegam a ultrapassar, só na primeira instância, a dúzia de anos de duração, conferindo-se assim àquelas mesmas entidades, quais autênticas “companhias majestáticas”, uma sensação e um estatuto de arrogante e acintosa impunidade.

O Conselho Superior da Magistratura (CSM) – supostamente o órgão superior da avaliação da gestão e da disciplina dos Juízes – funciona como uma instituição feudal, fechada no seu terreno dominial, sem efectivo controlo, quer jurisdicional quer político-democrático, das suas decisões, e num registo de permanente opacidade da sua actividade e das suas decisões. E, ciente disso mesmo, permite-se liquidar princípios constitucionais como o do “juiz natural” (chancelando distribuições manuais de processos ou até determinando, ele próprio, distribuições ad hominem). 

Simultaneamente, com o tipo de avaliação que faz dos juízes e com o “modelo” de juiz que com aquela tem vindo a construir (o de que muito bom juiz é o que despacha muito, independentemente da qualidade das suas decisões e da sua postura no processo), tal revela-se fatal, em particular para jurisdições como a de Família e Menores (com decisões bárbaras de retirada dos filhos aos seus progenitores com base em relatórios ditos “técnicos” falsos e cuja veracidade os juízes não fiscalizam) ou a do Trabalho (onde deixa de interessar o apuramento da verdade dos factos e a materialidade das coisas passa a ceder o passo à formalidade, relevando sobretudo a capacidade de despacho do contingente processual, abdicando-se assim, em favor da estatística, de se controlarem com rigor as mais recentes e inovadoras técnicas e manobras patronais de fuga e de fraude à lei, como despedimentos colectivos transvertidos de transmissões de estabelecimento, ou vínculos laborais disfarçados de contratos precários).

Também na Justiça Criminal (como já se viu em decisões como as tristemente célebres da autoria do Juiz Desembargador Neto de Moura, e não só…!), a benevolência machista com os autores de violações e outros crimes sexuais ou de violência doméstica contrasta em absoluto com a dureza das penas aplicadas ao pilha-galinhas e toxicodependentes. 

Contudo, bem mais graves ainda do que tudo isso são as estarrecedoras conclusões de um recente inquérito efectuado pela insuspeita Rede Europeia de Conselhos de Justiça (abrangendo 27 países), no âmbito do qual foram inquiridos 15.821 juízes europeus, dos quais 494 portugueses, sendo que mais de 1/4 (26%) destes últimos declararam acreditar que o fenómeno da corrupção já se infiltrou no próprio sistema de Justiça português e que alguns dos juízes terão mesmo aceite subornos ou praticado outras graves ilegalidades no período destes últimos três anos[3]!

É certo que esta realidade já vem sendo referida, ainda que por muito poucas vozes incómodas – logo silenciadas ou até ameaçadas, inclusive de processos-crime – que salientavam não só a absoluta estranheza de algumas decisões judiciais (como algumas daquelas que têm valido humilhantes condenações do Estado português nos Tribunais internacionais, seja o Tribunal de Justiça da União Europeia, seja o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos) como também a observação de que a corrupção, muito em particular na Justiça Criminal, poderia passar não propriamente pela entrega e recebimento de dinheiro, mas sim pela promoção pública e benefício da carreira do prevaricador, por exemplo, num caso de violação do segredo de justiça a troco daquelas.

Mas perante a enorme gravidade dos resultados do referido inquérito às tais perto de cinco centenas de juízes portugueses, o governo declarou, pela boca da ministra da Justiça, que… o ano de 2021 “foi um ano excepcional”! E aquilo que o CSM entendeu fazer foi apressar-se a recusar qualquer “leitura apressada” (sic!?) daqueles resultados e a autoelogiar-se, afirmando enfaticamente ter actuado disciplinarmente “sempre que teve conhecimento de actos censuráveis imputáveis a Juízes”!?

É então assim que dirigentes e responsáveis da Justiça assumem as suas responsabilidades?!

Doentes e sem a assistência médica e medicamentosa a que têm constitucional direito, cada vez mais pobres e inclusive com fome, diariamente sujeitos ao risco de despejo das suas casas ou do despedimento e permanentemente confrontados com uma Justiça que funciona desta forma, há portugueses que, mais do que justificadamente, se sentem, e cada vez mais, abandonados, destratados, enganados e profundamente angustiados[4].

E se a Saúde do Povo, o combate à Pobreza, o Trabalho e a Justiça em condições compatíveis com a dignidade da pessoa humana não são prioridades absolutas daqueles que se proclamam de esquerda e se dizem verdadeiramente preocupados com os problemas do mesmo Povo, quem se pode admirar de que uma parte deste – também privado, é certo, da memória histórica pois igualmente a esta pouca ou nenhuma importância se dá – aceite dar o apoio e o voto àqueles lobos que, embora por enquanto disfarçados de afáveis cordeiros, sempre foram, e sempre serão, os seus algozes?

Retomar, e de forma competente, o ataque a estes problemas e assumir sem hesitações a defesa dos mais pobres, mais fracos e mais vulneráveis, é que devia ser, verdadeiramente, o desafio dos homens e das mulheres de esquerda, em Portugal e no mundo!


[1] Segundo revelou recentemente um estudo do Eurostat, com dados relativos a 2021, Portugal é o segundo país da União Europeia (só atrás da Roménia) com maior percentagem de desempregados em risco de pobreza e de exclusão social (60.4%, número significativamente muito superior ao apresentado pelas estatísticas portuguesas, de apenas 46.51%), o mesmo se passando com os chamados “trabalhadores independentes” (32,4% daqueles que, na sua grande maioria, são trabalhadoras por conta de outrem disfarçados de por contra própria) e com os reformados (22,3%).

[2] Para não irmos mais longe, e a título de meros exemplos, importará referir que, nos primeiros seis meses de 2022, os lucros da Galp foram de 420 milhões de euros, os da EDP de 306 milhões, os do Grupo Jerónimo Martins – Pingo Doce de 261 milhões, os do Banco Santander de 241 milhões, os do BPI de 201 milhões e os da Sonae – Continente de 118 milhões!

[3] Neste aspecto, essa percentagem de 26% dos 494 magistrados portugueses inquiridos apenas foi igualada pela Lituânia e ultrapassada pela Itália (36%) e a Croácia (30%).

[4] Segundo o Relatório do Bem-estar e Teletrabalho – 2022 da NFOM, uma plataforma de comunicação empresarial, este ano, o consumo de indutores de sono subiu de 38% para 62,6%, o de suplementos alimentares sem prescrição médica para 34% e o de produtos legais de canábis de 24% para 43,3%.


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A direita atrasada para o século XXI

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 11/10/2019)

Daniel Oliveira

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Dê as voltas que der, Rui Rio não conseguiu mobilizar o eleitorado de direita. Nem depois de Tancos. Nem perante uma monumental derrota do CDS. PSD e CDS conseguem menos 230 mil votos, menos 2,4 pontos percentuais e quase menos dez deputados do que Pedro Passos Coelho e Paulo Portas. E Pedro Passos Coelho foi responsável por um pacote de austeridade de dimensões nunca vistas na nossa democracia. Rio também não contrariou o aprofundamento da decadência do PSD nos meios urbanos, sobretudo em Lisboa, Porto e Setúbal. Se isto ditará a morte política de Rio só as guerras de barões e baronetes laranjas ditarão. Já começaram.

Quanto ao CDS, só podemos comparar os seus resultados com 2011, quando concorreu sozinho. E a comparação é avassaladora. O CDS perde 440 mil votos (fica com um terço da votação), 7,5 pontos percentuais (também um terço) e 19 deputados (fica com um quinto). Em relação a 2015, perde 13 deputados. Fica próximo, em votos, dos resultados das eleições europeias. E isto acontece sem pressão do voto útil: a direita tinha estas eleições perdidas. A pressão era tão pequena à direita que até deu para eleger dois deputados de dois novos partidos. Quando se anda pelo mapa eleitoral a coisa torna-se ainda mais deprimente. O CDS fica atrás do BE em todos os círculos, incluindo em Vila Real, Bragança, Viseu, Aveiro, Leiria ou Açores. A exceção é só a Madeira. E fica atrás do PAN em Lisboa, Porto, Setúbal e Algarve. Desaparece de quase todos os distritos.

As razões para esta hecatombe parecem-me óbvias. Enquanto o PSD é um partido sem identidade, o CDS é um partido com demasiadas identidades. Já foi quase tudo o que se pode ser à direita. Quando se trata de partilhar poder e a liderança é forte, este é um problema menor. Quando o projeto é ficar na oposição tudo se complica. A sociologia do eleitorado de direita mudou e os dois partidos não conseguiram acompanhar essa mudança.

O dinamismo partidário da esquerda, marcado pelo nascimento do BE há quase 20 anos, acompanhou e continua a acompanhar uma sociedade cada vez mais segmentada. A direita ficou paralisada, sem que nada mudasse nela em quase meio século. A clivagem entre liberais e conservadores, moderados e autoritários, não teve repercussões partidárias. O pragmatismo do poder encobriu mudanças e divergências que são centrais para a representação política.

O que o PSD trata através do silêncio que a miragem da chegada ao Governo permite (mesmo não escondendo que o problema existe, como se vê pela resiliência dos passistas), o CDS resolve pela esquizofrenia. Paulo Portas disfarçava-o com a sua arte de transformismo político. Assunção Cristas não tem essa capacidade. O último ano foi uma autêntica montanha russa. Promoveu Adolfo Mesquita Nunes, dando sinais de liberalização do partido; autoproclamou-se líder da oposição depois das autárquicas, passando a ideia de que ocuparia o espaço do PSD e criando expectativas impossíveis de acompanhar; escolheu o ultraconservador e trauliteiro Nuno Melo como cabeça de lista a umas europeias coladas às legislativas; e depois julgou que podia fazer a síntese de tudo isto. Não pode. Num partido da dimensão do CDS não cabem Adolfo Mesquita Nunes e Francisco Rodrigues dos Santos (o quase bolsonarista “Chicão”, líder da JP) sem que um se imponha ao outro.

O CDS acabou ensanduichado pelo ultraliberalismo da Iniciativa Liberal e o racismo e autoritarismo do Chega! – na realidade, no que interessa a cada um, estão os dois à direita do CDS. Tem de escolher com qual deles quer competir. Ou se até prefere ser um partido conservador católico, com preocupações sociais. Não pode, com 4%, ser tudo isto ao mesmo tempo.

O CDS deixou de ser uma barreira à extrema-direita. Ela entrou no Parlamento e terá de ser combatida por forças mais poderosas. Se for inteligente, o CDS clarificará a sua estratégia, irá buscar alguém como Adolfo Mesquita Nunes e tentará representar os liberais de direita, sobretudo os mais jovens que não se reveem no PSD. Se o fizer, não precisa de acompanhar o delírio libertário de direita da Iniciativa Liberal, que cresceu menos pelo seu programa radical e mais pelo descontentamento com a oferta disponível. E só precisa de ser relativamente moderado nos costumes. Não sei quantos votos vale este caminho, estou seguro de que é o que tem mais futuro numa direita democrática que não esteja próxima do centro.

Claro que antes das grandes opções há o curto prazo. Os incentivos eleitorais vão empurrar o CDS para uma coligação com o PSD. O mapa de distribuição de deputados favorece essa opção, porque a direita coligada ganha eleições com resultados medíocres. Mas Rui Rio não tem grande apetência para estes entendimentos e o CDS seria obrigado a ir negociar lugares em péssima situação. Parece não haver caminhos fáceis a partir daqui e dois pequenos partidos estarão a morder as canelas do CDS. Com uma diferença: a IL crescerá às suas custas, o Chega! tenderá a crescer à custa de quase todos, incluindo o PCP.

Alguns comentadores de direita têm escrito que o nosso sistema partidário está a implodir. Olham para a realidade a partir dos seus umbigos políticos. O que implodiu nestas eleições foi o espaço da direita. O da esquerda está a adaptar-se há pelo menos 20 anos e a entrada de novos atores faz-se por folga de votos, não por falhas graves de representação.

Falta à direita fazer o que a esquerda fez e continua a fazer: adaptar-se às novas clivagens, representando-as com projetos diferentes que se podem entender em soluções de poder ou até em frentes eleitorais. É nesta reorganização que o CDS tem de decidir qual é o seu futuro, sabendo-se parceiro do PSD no poder. Se não clarificar, outros, que franquearam as portas do Parlamento tomarão o seu lugar. Quem tudo quer representar tudo acaba por perder.

Nota: deixo para a edição em papel do Expresso o fim das negociações para um acordo de legislatura entre o PS e o BE e o que isso quer dizer quanto à sobrevivência de qualquer coisa que se assemelhe com a “geringonça”