Grande página

(Joseph Praetorius, 30/06/2019)

Trump toma pela primeira vez contacto directo com um país limpo, onde as pessoas vivem disciplinada e modestamente sem terem de acolher-se aos esgotos, ou ao calor das estações de Metro. Um país cujas limitações às liberdades individuais (provavelmente dificeis de suportar) resultam directamente do estado de guerra permanente, mantido ao longo de gerações e do regime militar que tem de corresponder-lhe.

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País cujas regras de cerimonial militar e político se traduzem em imagens que parecem saídas de documentos históricos do passado. Governado por uma direcção militar e politica que soube fechar-se ao inimigo, ao ponto de nem a CIA saber, ou poder saber, o que lá se passa. A CIA, aliás, sabe muito menos do que a sua propaganda faz supor.

Trump testou a pequena Coreia do Norte. Mediu-lhe bem a consistência. E apresenta-se sem gestos parvos, sem palmadas nas costas, ou quaisquer outras atitudes de familiaridade ou preponderância. Com o respeito instintivo, diria, de quem encontra quem está disposto a cair pela posição que defende e na posição que defende, sem nada ceder e em nada transigir.

À Coreia do Norte, a glória de uma vitória inequívoca em politica externa. A Trump deve-se a honra da sensatez de quem sabe concluir pelo seu próprio exame.

E o pragmatismo militar norte-coreano – na estrutura de referências de um igualitarismo republicano radical – não hesitou sequer na adopção das vantagens da chefia hereditária. Vantagens pragmáticas, mas vantagens.

O avô, no acordo de todos, comanda ainda pela presença do neto, que para ser igual ao avô e ao pai deve, antes de mais, ser igual a si próprio. Como tem sido. Para ele não há, na política internacional ou interna, coisas de que não lhe tenham falado desde cedo. Com ponderação e familiaridade. Nada que não conheça, portanto. Não há modo mais ecomómico nem mais efectivo de formar um dirigente. As coisas fundem-se com a sua própria história pessoal e familiar.

E a assunção desse papel pelo Chefe do Estado também ali me parece interessante. O modelo da camisa de ganga – operária e militar – tornou-se apanágio dele, que parece ser o último a usar o mais modesto dos trajes e o usa sem distintivos de nenhuma espécie. Já todos os outros podem prescindir de tão grande austeridade. Ele não. Há repúblicas onde se faz com simplicidade o que os doutrinadores monárquicos não conseguem fazer entender. A começar por isto que já Santo Agostinho tinha feito notar: as formas de Estado não devem sacralizar-se. E as soluções de liderança adoptam-se por simples pragmatismo. (Sagrar os Reis é um disparate). Nada como a redução a zero da metafísica em política, para poder perceber isso. E também estes detalhes são interessantes temas.

Esta é uma grande página da História deste século.

Ver vídeo abaixo.

Rocket man and crazy live together in perfect harmony

(João Quadros, in Jornal de Negócios, 15/06/2018)

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Donald Trump e Kim Jong-un encontraram-se em Singapura numa cimeira que, para muitos, é o encontro mais importante do século XXI. Eu continuo a preferir o França-Portugal de 2016, mas não vamos por aí.

Foi no luxuoso Capella Hotel, na turística ilha de Sentosa, em Singapura, que os dois líderes, que a maioria das pessoas acha que não jogam com o baralho todo, se reuniram para dialogar, em vez de se encontrarem para uma luta de wrestling, que era o que faria sentido e que todos esperávamos. Era isso ou medir pilas.

Mas a verdade é que fomos surpreendidos: nem Trump fez uma tentativa de apalpar os pequenos seios de Kim, nem o líder norte-coreano tentou envenenar Trump com uma luva transparente contaminada com ébola aquando do aperto de mão. Os dois dos maiores vilões do planeta ficaram muito aquém das expectativas… Talvez eu ande a ver demasiados filmes da Marvel, mas podia ter havido um momento de tentativa de estrangulamento, logo amansado. Um agarrar das partes baixas com um “assobia, assobia!”, executado com rapidez por Trump quando Kim estivesse distraído. Nada.

Acho que houve mais “clima” entre Kim e Trump do que no casamento real do Harry e da Meghan. Provavelmente, o presidente dos EUA olhou para Kim, para a barriga, o penteado, a arrogância, a falta de noção de ridículo, e pensou: “este rapaz podia ser meu neto se eu tivesse ido à guerra do Vietname.”

Vi em directo o encontro e o que mais me impressionou foi o ruído das máquinas fotográficas, pareciam metralhadoras. E o Kim e o Trump nem pestanejaram, como se estivessem habituados a fuzilamentos ou a massacres em escolas. É preciso ter estofo. Se eu passasse por aquela rajada de fotografias, acordava “banhado em suor e com a sensação física, até de dor, de que estava a levar chapadas”.

Também fiquei bastante impressionado com aqueles guarda-costas de fato negro e gravata a correr junto à limusina do presidente da Coreia do Norte. Já me aconteceu aquilo com cachorros. Só falta ladrarem aos pneus.

É impressionante a sincronia daquela gente. Por exemplo, as coreografias da claque da Coreia do Norte, nos Jogos Olímpicos de Inverno, tornaram-se num fenómeno mundial. Já percebi que os norte-coreanos são gente que faz tudo em grupo e com uma sincronia incrível. Deve ser impressionante uma orgia norte-coreana. Deve ser uma espécie de linha de montagem da Mercedes.


 TOP 5

KIM E KONG

1. Lançar balões pelo smartphone. A realidade aumentada chegou aos Santos Populares – Por favor, façam isso com os martelos de São João, que aquilo não se aguenta.

2. Em mais de 5700 pedidos de vistos gold, só nove foram para criar emprego – isso é porque não têm em conta o trabalho que deu a corruptos.

3. Fila na Feira do Livro para tirar uma selfie com Marcelo – antes isso do que para autógrafos com o Chagas Freitas.

4. Ricciardi diz que Sporting está em risco de insolvência – e se há alguém habituado a estar envolvido em insolvências é o Ricciardi.

5. Alfama venceu novamente as Marchas Populares de Lisboa – mas a marcha foi traduzida para francês para os moradores de Alfama entenderem.

Trump ganha sempre

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 12/06/2018)

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Talvez o momento mais revelador da conferência de imprensa de Trump em Singapura, hoje de manhã, tenha sido quando falou na “perspetiva do negócio imobiliário” quanto à vontade de construir “condomínios nas lindas praias da Coreia do Norte”, “maravilhosa localização” entre os turistas da China e os da Coreia do Sul, cheios de dinheiro para irem ao exótico. Eu vi essas praias quando a TV coreana passava as imagens do lançamento dos mísseis, explicou o Presidente norte-americano. Isto é puro Trump: um empresário e não um estadista, que luta contra os concorrentes e promove negócios, mas só considera de modo instrumental a ordem política que resulta da sua ação. Ora, há muitos que o desprezam por isso, ele não faz parte da aristocracia da política, tem maus modos, é petulante, gaba-se do “meu instinto, o meu talento” para ler a alma de Kim Jong-un, é volúvel e incapaz – pois ganha precisamente por isso.

Trump arrisca muito no plano interno, embora esteja a despejar dinheiro para os ricos (um generoso sistema fiscal) e para os pobres (nota-se menos, mas ampliou alguns programas sociais com impacto), só porque juntou uma coligação de aventesmas e esses são os seus candidatos no outono deste ano. Mas arrisca pouco no plano internacional. Aí ganhou tudo até agora: rompeu o acordo com o Irão e Merkel prometeu resistir, mas as empresas europeias já fugiram, a começar pelas que tinham os maiores contratos, a Total e a Airbus; entrou em choque no G7 com todos os outros e Macron, que tinha apostado tudo nos abraços da Casa Branca, veio ufano espanejar um G6 sem os EUA, o que é pura fantasia; mudou a sua embaixada para Jerusalém e deu luz verde a Netanyahu para disparar, e assim ficamos.

E no que arrisca menos é na guerra comercial. Uma economia que tem o poder do dólar e que enfrenta quem tem grandes excedentes comerciais fica sempre a ganhar neste tipo de braço de ferro. Assim foi no passado com Nixon e com Reagan e assim será agora. A Alemanha, a UE e a China sofrerão os custos desta guerra e a economia norte-americana no seu todo só tem a ganhar (mesmo que algumas empresas de jeans e agroalimentar percam). Para mais, Trump tem o controlo do sistema internacional de pagamentos interbancários, pelo que pode usar sanções efetivas contra qualquer empresa, e tem o dólar: os EUA vão emitir dívida pública no valor de 2,4 biliões (triliões, na notação norte-americana) no próximo ano e meio, para financiar o seu gigantesco défice, e os chineses e europeus vão adquirir esses títulos de dívida. Ou seja, vão comprar dólares com os seus excedentes comerciais, para os emprestarem aos EUA, e ficam vulneráveis nos dois lados da operação. Se precisar de reduzir e restruturar a sua dívida, Trump pode forçar uma desvalorização do dólar; querendo reduzir o défice comercial, ameaça os seus concorrentes e consegue pressioná-los nas exportações e no financiamento. Vai sempre recuando na competição com a China, mas não é no imediato que esta potência ultrapassará os EUA, e, quando vier o tempo, já haverá outro inquilino na Casa Branca.

O acordo com Kim Jong-un pode ser mais uma exibição do que uma solução concretizada. Mas o que é evidente é que, em Singapura, Trump está a dizer aos governos europeus e aos seus concorrentes asiáticos que hoje é ele quem manda.