Na praia, sem peruca, com rabo de palha

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 27/11/2021)

Clara Ferreira Alves

É o nosso Wally. Onde está o Rendeiro?

Há uma tragédia dentro da história que se tornou entretenimento e meme das redes. E a tragédia não é apenas a do banqueiro fugitivo em paragem incerta. A tragédia é coletiva e é de um país que por vezes perde o respeito próprio e transforma tudo numa anedota. Um país onde, a seguir à entrevista alucinada na CNN Portugal, com pedidos de indultos e indemnizações ao Estado português, o próprio Presidente da República responde em direto dizendo que há uma longa fila para indultos. Tudo isto se tornou não uma derrota da Justiça, mais uma, mas um segmento de comédia nacional, aquela comédia amarga que lemos em Eça de Queiroz, “O Primo Basílio”, “A Relíquia”, “O Crime do Padre Amaro”. Ou vemos nos filmes do Vasco Santana.

João Rendeiro foi condenado numa das sentenças a dez anos de prisão, entre outras penas, pelos crimes de branqueamento de capitais, evasão fiscal e abuso de confiança. Crimes que não nega, mas que no seu narcisismo deve considerar naturais à gestão de fortunas. Uma pena de dez anos é uma brutalidade, para crimes de colarinho branco. Em 1993, um padre católico acusado de pedofilia, ou “práticas sexuais impróprias com menor”, e acusado de homicídio, um crime de sangue, foi condenado a 13 anos de prisão. O padre Frederico, outro criminoso que se tornou fonte de anedotas e entretenimento, teria tentado “abusar” de um rapaz de 15 anos e, sem querer, ou por querer, empurrou-o por uma ribanceira, matando-o. O método forense e o processo judicial colocaram o padre no local do crime. Nesse tempo, ainda não se tinha desvendado o rol de crimes da Igreja Católica, e o padre passou ileso pelos corredores da consciência religiosa. Parece que na Madeira, onde o crime foi praticado, a pedofilia praticada por prelados era comum nas diversas hierarquias, e com a cumplicidade das mais altas, segundo a vox populi. As vítimas eram, como sempre, crianças pobres de famílias destituídas.

Temos aqui o que qualquer moral vigente considera o “crime horrendo” dos tabloides.

Em 1998, cinco anos depois da condenação, o padre Frederico teve direito a uma saída precária e aproveitou para fugir para o Brasil com a cumplicidade da mãe. Foi fotografado em Copacabana, no calçadão. A mãe, que me lembre, não foi perseguida nem humilhada por ter ajudado o filho. As redes sociais e a cauda de linchadores ainda não existiam, mas o padre Frederico teve uma vida regalada apesar dos crimes pelos quais foi condenado.

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Em 2021, quando as penas por homicídio em casos de violência doméstica, crimes praticados no corpo das mulheres ou crianças, são relativamente ligeiras, e quando a tendência do direito penal é para punir com menos tempo, Rendeiro apanhou ao todo 19 anos de cadeia. Isto faz sentido? Faz, se analisarmos o fenómeno da ascensão social em Portugal. João Rendeiro continua a ser descrito como “filho de um sapateiro”. Este pecado imperdoável fez dele um milionário diferente de Ricardo Salgado, protegido pela dinastia de que era a cabeça e a providência, o distribuidor de fundos e de dinheiro, ao ritmo de milhões por mês, para manter o clã abastado e contente. João Rendeiro nunca teve uma das proteções nacionais que asseguram ou a impunidade ou o débil juízo moral.

Não teve a proteção de um partido. Se deu dinheiro para a campanha de Cavaco Silva à presidência ou o apoiou, isso não lhe conferiu a proteção do PSD. Não teve, como Armando Vara ou como os suspeitos Manuel Pinho e José Sócrates, ainda por julgar ao cabo de vários anos, a proteção do PS. Vara, aliás, acaba de ser libertado, ao abrigo da covid, tendo passado pouco tempo atrás das grades. Rendeiro não teve a proteção de uma instituição como a Igreja. Nem, julgo, a da maçonaria ou qualquer grupo ou associação secreta ou à luz do dia. Rendeiro era um operador solitário, um pistoleiro do dinheiro que dava aos clientes bom rendimento. O subprime deu cabo dele, como deu cabo de Salgado, ou continuariam ambos a movimentar-se em círculos das elites embora com pedigree diferente, e poder diferente.

A ascensão social em Portugal, por mais bem-sucedida que seja, tem de ser sustentada pela autoridade pessoal ou o autoritarismo. O exemplo maior do triunfo sobre as chamadas “origens humildes” é Salazar, claro. E o segundo caso, outro exemplo de triunfo social assente no poder político, é o de Cavaco Silva, recebido em ombros pela direita geracional clássica.

O cavaquismo tornar-se-ia um movimento poderoso de agremiados com lugares de prestígio em instituições portuguesas, o que quer dizer que Cavaco transcendeu não só as origens como fundou um clube privado e seleto, que confere proteção. E assim, o escândalo do BPN, que lesou muito mais Portugal do que João Rendeiro com o Banco Privado, passou como um caso camuflado e sem importância. Dias Loureiro, a figura política mais proeminente a seguir a Cavaco, foi ilibado de todos os crimes, a cabo de anos à espera. Quanto ao PS, é o partido que confere mais proteção direta e indireta, simplesmente porque entre católicos e maçons, e entre famílias e dinastias socialistas, a omertà funciona. Nunca ninguém viu nada ou sabe nada, dentro do PS. Tudo a leste do que quer que seja. Tudo inocentes de esquerda.

Rendeiro não faz parte do clube, não faz parte de nenhum clube, o que quer dizer que se tramou ao ludibriar a gente que lhe entregou as fortunas. E acabou por trair o próprio advogado. À apreciação diferenciada destes crimes pelo jornalismo e pelo corredor de opinião criado chama-se na gíria, em inglês bias, em português viés.

Na tragédia pindérica, um deslumbrado foi apanhado na malha da Justiça e a seguir deixado à solta para fugir à Justiça, entidade abstrata e corporativa. A Justiça resolveu apertar a mulher de Rendeiro como se ela fosse uma criminosa igual ao marido. É o elo mais fraco. Nunca denunciaria o marido, e quem a conhece sabe que nunca apreciou a vida de opulência que o marido escolheu. Os media deliram com as descrições do choro em tribunal, o melodrama, a sessão adiada, um espetáculo degradante para entretenimento coletivo. Foi para casa com a ignomínia de uma pulseira eletrónica, Ricardo Salgado tem direito a veranear na Sardenha.

A mulher de Rendeiro é, a meu ver, uma vítima, alguém sem poder arrastada pela ambição do cônjuge, o foco do opróbrio. Se fosse uma criminosa, teria fugido com ele. O pormenor das “cadelinhas” é penoso, triste. Quem acha graça? Rendeiro nem se apercebeu do ridículo a que sujeitou a mulher, naquela tirada de autovitimização. Vai à praia, faz ginástica, não usa peruca nem rabo de cavalo.

Ao mesmo tempo que assistíamos a isto na CNN Portugal, na SIC-N tínhamos uma grande reportagem e um debate sobre os crimes e tramoias da gente da política, da construção civil e do futebol, envolvendo Vieira, autarcas e, claro, por cima, Ricardo Salgado. Ana Gomes disse que Portugal era, na União Europeia, depois de Malta e de Chipre, o país com mais dinheiro em offshores. E José Gomes Ferreira perguntou onde estava a Justiça para investigar os banqueiros que emprestaram dinheiro dos bancos a amigos, sem retorno, e receberam comissões por isso. Os bancos que tivemos de resgatar.

Onde está o Wally? Ainda bem que não foi ou que desistiu do Belize. Um criminoso desta escala não duraria muito no meio da alta criminalidade internacional. O Brasil é melhor. Boa praia. O padre que o diga.


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Falido por causa de Cavaco

(Dieter Dellinger, 22/11/2018)

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O falido é o dirigente da FNAC (Fábrica Nacional de Ar Condicionado), que foi uma cooperativa e se desenvolveu muito para se tornar numa empresa dos dirigentes iniciais, tendo falido há tempos por causa do então PM Anibal Cavaco.

No início do mandato do inimigo da Pátria, Cavaco, a banca estava ainda toda nacionalizada e, por ordem expressa da besta, não comprou nenhum aparelho de fabrico português para milhares de balcões, mas antes aparelhagem japonesa.

Os aparelhos da FNAC eram fabricados sob licença da grande empresa americana AMANA e a FNAC contava com encomendas do Estado, que dominava não só a banca como muitas empresas e os seus próprios serviços.

Calculava-se que o potencial de compra do Estado ultrapassaria as 20 mil unidades, o que permitia transformar a fábrica também num grande exportador.

Mas, o dirigente da FNAC, Alexandre Alves era considerado comunista, apesar de não haver certezas, e o FdP do Cavaco preferiu retirar trabalho a portugueses a favor dos nipónicos por um facciosismo político verdadeiramente esquizofrénico.

Claro que não foi a única empresa nacional a ser destruída por Cavaco. Muitas outras se seguiram. O gajo só admitia empresas dos amigos do PSD como as do grupo BPN que também faliram e corromperam o Cavaco com a venda de ações baratas e recompradas a preços muito mais altos. Foi algo que os magistrados nunca quiseram investigar.

Agora, Alexandre Alves tem de viver do ordenado mínimo de 580 euros, por ordem judicial, para pagar todos os seus rendimentos e ordenados acima desse valor a outra besta do PSD, a deputada Maria Luís Albuquerque, que nada faz na AR a não ser receber o ordenado, já que como se sabe,  trabalha na empresa recuperadora de créditos “Arrow Global”.

O caso BPN e os Tribunais

(Carlos Esperança, 13/11/2018)

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Não critiquemos os juízes, sobretudo neste caso, em que puniram os delinquentes. Não os confundamos com os ativistas sindicais, com agenda política evidente. Se há queixas, e há, é do Código Penal e do Código do Processo Penal. Desta vez nem os aparentes órgãos oficiosos do SMMP e da ASJ, dissimulados em matutinos e canais generalistas da TV, violaram grosseiramente o segredo de Justiça.

É de louvar, apesar da complexidade e inoperância de megaprocessos judiciais, o rombo produzido em estrelas da galáxia cavaquista:

Oliveira Costa (ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de Cavaco e financiador do PSD) – 12 anos de prisão, por burlas;

Arlindo de Carvalho (ex-ministro da Saúde de Cavaco) – 6 anos de prisão, por burla qualificada e fraude fiscal;

Francisco Sanches, Luís Caprichoso, e António Coelho Marinho (ex-administradores do BPN), José Neto, sócio de Arlindo de Carvalho numa imobiliária, e José Monte Verde, acionista e devedor do BPN – penas efetivas de prisão por burla e fraude fiscal, crimes provados em tribunal.

São nomes conhecidos e personalidades relevantes de uma época que ameaçava passar impune. Sabemos que não vão presos, mas foram julgados, e os termos com que os juízes os descreveram fariam corar de vergonha pessoas de bem.

Fez-se justiça com os veredictos, mesmo sabendo que a esperança de vida dos marginais é inferior à demora dos recursos e ao trânsito em julgado das sentenças. Temia que não chegasse a ser averiguado o “grau de ilicitude elevadíssimo” dos que “brincaram com o dinheiro do cidadão cumpridor e em quem confiou no banco e nos seus administradores nem a “utilização desgovernada e despudorada do dinheiro e que essa conduta não pode passar impune”, como esclareceu o Tribunal.

Passe a ironia, mas a partir de agora é uma questão de trânsito. Há países que têm alta velocidade no trânsito rodo e ferroviário, pessoas que têm o trânsito intestinal lento ou acelerado, cidades com o trânsito normal ou engarrafado, e Portugal, que tem lento o «trânsito em julgado».

Fica uma certa desolação enquanto sucessivos recursos impedem a execução das penas e a amargura de não ver regressar aos cofres do Estado as fortunas que hão de andar por aí, em paraísos fiscais ou em nome de familiares de aluguer.

É pena!