O apoio à Ucrânia e a herança do salazarismo

(Whale project, in Estátua de Sal, 06/10/2023, revisão da Estátua)


(Este texto resulta de um comentário a um artigo que publicámos de Daniel Vmarcos, ver aqui. Manifestando algumas ideias com as quais concordo, resolvi dar-lhe o destaque que, julgo, merece.

Estátua de Sal, 07/10/2023)


Infelizmente, quanto ao comprometimento dos tugas com a nobre causa ucraniana, realmente não fiz sondagem nenhuma mas, até no meu trabalho, tenho lidado com muita gente e posso garantir que a adesão é tanta como foi a adesão às vacinas Covid.

E a coisa é fácil de explicar, a propaganda jorra como um rio revolto nas TV’s, na rádio, nas redes sociais em todo o lado. A estratégia foi a mesma das vacinas Covid.

Fomos aterrorizados com imagens de gente entubada em hospitais, acusados de matar idosos por não nos afastarmos dois metros deles; quem não se lembra daquele outdoor, à beira da estrada, mostrando um idoso entubado e a legenda acusadora “dois metros de distância podiam ter ajudado a evitar tudo isto”?! Eu só pensava o que sentiria, uma família que tivesse perdido um idoso com o Covid, ao ver uma merda daquelas.

Depois, a ideia que era instilada é que parecia que todas as doenças tinham desaparecido e só se morria de Covid. Isso fez uma colega minha resolver-se a ir dar a terceira, ate porque tinha gente idosa em casa. Apanhou Covid na mesma e anda desesperada com as sequelas.

Claro que, quando vieram as vacinas, a nossa mente foi levada a pensar “a vacina vai de certeza evitar”. Pior, o malandro que não se for vacinar impede a erradicação da doença; pode matar alguém e é um bolsonarista. Ora, esta estratégia funcionou em pleno, pois que lá fomos todos feitos carneiros.

Assim, porque não repetir agora a estratégia? Só que, desta vez, é quem disser que é má ideia apoiar nazis que é putinista. A mim que só chamava ao homem “aquele peixe-espada subdesenvolvido” a coisa daria para rir se não fosse trágico. E estúpido. E se hoje me resolvo a escrever o nome do homem é porque as sequelas da vacina me fizeram pagar pela língua. Com língua de palmo.

E, se dantes a conversa eram as vacinas milagrosas e a grande vitória da ciência, agora a conversa é a ajuda total e incondicional a um pobre país inocente, indefeso e próspero, atacado por um vizinho odioso que quer roubar o seu pão. E que, com a nossa ajuda total e incondicional, vencerá e libertará finalmente o mundo daquela presença maligna, daquela doença.

Ora, aquele país era sim, uma miséria negra nas unhas de meia dúzia de oligarcas, de onde quem podia fugir, fugia. Um deles acabou morto, como um cão, no Aeroporto de Lisboa, justamente porque devia estar farto da boa vida que lá tinha. Realmente, as pessoas são complicadas, até se fartam de viver bem.

Claro que, se queremos impedir as pessoas de sair do país, porque há uma guerra em preparação em que serão precisas, uma coisinha dessas vem mesmo a calhar. Um ucraniano que pense em emigrar, talvez pense que é melhor juntar-se a uma milícia nazi – que até está a pagar bem para os padrões daquela miséria -, do que arriscar-se a ser torturado até à morte, durante dois dias, nas masmorras de um aeroporto no cu do mundo. Eu, se fosse ucraniano acharia que valeria a pena pensar nisso.

Não que um país mereça ser atacado por dar miséria às suas gentes e por estar a criar milícias nazis ou a treinar neonazis que já matavam gente na Europa – como um deputado da CDU, morto com um certeiro tiro na testa à porta de casa.
Mas se calhar o Zé Cocado podia ter ficado calado em vez de dar aquele discurso no domingo anterior à invasão. Podia ter tido mão nos seus cães nazis, e não começar a bombardear, forte e feio, o que restava das regiões separatistas. Não o fez porque sabia ao que ia, porque esta guerra interessava, porque se queria enfraquecer e dividir a Rússia para melhor pilhar o que lá há. O problema, foi que a Rússia fez o trabalho de casa possível e a coisa está a revelar- se um bocadinho mais espinhosa.

Agora, o que é que faz gente de um país no cu da Europa, bem longe da Ucrânia, engolir esta ideia da pobre Ucrânia atacada sem razão por aqueles bandidos que deviam ser banidos da terra? Bem, o Milhazes e outros comentadeiros ajudam, mas a raiz está, provavelmente, naquele sentimento salazarento de ódio à Rússia comunista, que ainda se iria converter, que assim tinha dito a Senhora de Fátima. Foi o que ouviram a pais e avós e interiorizaram.

Não interessa nada que o Putin não seja comunista, embora o partido comunista lá do sítio também tenha apoiado a coisa. Como, aliás, todos os partidos na Rússia porque até àquela besta do Jirinovski pareceu má ideia ter nazis a sério, mesmo ali ao lado, armados com armas nucleares a poucas centenas de quilómetros de Moscovo.

Aqui, quer-se bater nos comunistas porque os comunistas russos apoiaram a guerra. Ao mesmo tempo, que dizem que a guerra foi obra de um louco doente e solitário, que se levantou de manhã disposto a dar uma tareia no vizinho do lado. Um louco, que estando a morrer de cancro quereria destruir o mundo, até porque não tem filhos nem netos.

Enfim, a argumentação da claque da Ucrânia é uma verdadeira salada russa.
Por acaso, salada russa até é uma alternativa, relativamente barata, para populações a empobrecer porque os seus governos se comprometem a continuar a empobrece-las para apoiar a Ucrânia, enquanto por lá houver um homem, mulher ou criança capaz de pegar numa arma. Isto está para durar, tal como o verão deste ano, que parece interminável, pelo menos no sul da Europa.


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O boomerang anticomunista

(Carmo Afonso, in Público, 06/05/2022)

Quem sente em si anticomunismo deve verificar se não encontra também fascismo.


Continuamos a assistir ao exercício do anticomunismo primário. Os anticomunistas gostam de confundir o que é o comunismo de hoje com as concretizações comunistas registadas na História. É um direito que lhes assiste. É certo que alguns comunistas também o fazem.

A verdade é que ao ideal comunista – altruísta e igualitário, com abolição de classes e eventualmente do próprio Estado – não foi feita justiça com as tentativas conhecidas de o concretizar. Há quem diga que nunca seria possível, que são ideais utópicos. Não é preciso fazer essa avaliação. É que indo ao programa do PCP e à sua história, encontramos a defesa da democracia, o combate às desigualdades sociais, a defesa das lutas tradicionais e, mais recentemente, das progressistas. Não há revolução, não há estado totalitário ou ditadura do proletariado.

O que detestam então os anticomunistas? A esquerda. Passo a explicar: no comunismo, e no Bloco de Esquerda, é onde estão apenas políticas de esquerda, onde não há centro e onde ninguém se intitula “liberal” (liberalismo no sentido económico, do sentido político já estaríamos esclarecidos).

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O que está em causa no anticomunismo é um conflito com ideais de esquerda democrática sob a aparência de conflito com ideais de esquerda totalitária. O mal-entendido não fica por aqui: os anticomunistas são os mesmos que procuram nos problemas do mercado liberal causas imputáveis à esquerda. O preço dos combustíveis é bom exemplo: diziam que o problema era a carga fiscal. A carga foi substancialmente reduzida e claro que o problema persiste. A realidade é que os lucros das petrolíferas se apresentam exorbitantes e são a explicação cabal para o aumento dos preços a que assistimos. Tentou resolver-se um problema que era de mercado com uma medida da doutrina de mercado.

Da guerra.

Trata-se de uma tragédia, sobretudo para os ucranianos, e para a esquerda portuguesa também não é boa.

Existia uma defesa que o centro-esquerda, do Partido Socialista, fazia relativamente ao ataque anticomunista, que quase desapareceu e que foi substituída pelo ataque às posições dos comunistas relativas à guerra. O resultado é que o centro-esquerda passou a ter um discurso semelhante ao do centro-direita tradicional.

Este discurso passa, mais coisa menos coisa, pelo seguinte: “o fascismo e a esquerda (do BE e do PCP) são dois extremos que ameaçam os valores democráticos e a liberdade. O avanço destes partidos seria perigoso e deveriam ser erradicados da vida pública”. Nada de novo. Também poderíamos falar do anticomunismo da direita radical, mas diria que não vale a pena. Trata-se de um fenómeno passional e intrínseco. Quem sente em si anticomunismo deve verificar se não encontra também fascismo.

O que é novo, entre nós, é essa aproximação do centro-esquerda aos discursos do centro-direita, e da direita radical, que criticam a esquerda e que a isolam e a assinalam como um mal a ser expurgado da vida política. A razão é a guerra mas as consequências poderão sobreviver à guerra.

A primeira coisa a dizer sobre isto é que acusa falta de maturidade política quem faz críticas, dessa natureza, ignorando as consequências, também políticas, do que faz. Devo criticar uma pessoa racializada em frente a alguém que sei ser racista? Diria que não. Outros terão outra resposta.

A segunda coisa a dizer é que o resultado desta convergência em torno da crítica ao PCP pode trazer resultados inesperados: é que as pessoas, quando sentem um aperto, inclinam-se para onde o seu lado sentimental, chamemos-lhe assim, pende. Ninguém de esquerda pode sentir prazer em assistir ao linchamento de um partido como o PCP. Estão a esticar uma corda que pode partir numa parte em que não se esperaria.

O PCP, contrariamente ao que seria previsível, pode sair daqui com vigor. Entre os que atrai ao puro engano – um bom exemplo são os putinistas – e os que sentem o instinto de proteger o partido, que diariamente está nas trends como alvo a abater, o fim do partido pode estar mais longe do que se tem afirmado.

Faz sentido perguntar: o que querem os anticomunistas? Acabar com o PCP.

O que vão conseguir? Talvez dar-lhe um novo alento.

Só o tempo dirá se usam um boomerang ou uma flecha. É sabido que o primeiro, como arma, é ingrato.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico


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A memória é incómoda

(José Pacheco Pereira, in Público, 20/11/2021)

Pacheco Pereira

Nas últimas décadas, a natureza da relação de muitos dirigentes do PSD com a Maçonaria é diferente da dos maçons originais: está associada às possibilidades de carreira política e aos negócios, e muito pouco aos “bons costumes” da tradição maçónica.


O PPD/PSD sempre foi contra duas coisas: o comunismo e a Maçonaria. A natureza dessa oposição não é idêntica. O anticomunismo do PPD e do PSD é uma variante do antitotalitarismo, que é um dos fundamentos genéticos do partido, que se acentuou com a experiência portuguesa do PREC. O confronto com o PCP e a extrema-esquerda foi particularmente violento em Lisboa e no Sul do país e isso marcou o partido e reforçou o sentimento anticomunista. Embora tenha havido elementos do PSD (assim como do CDS) na chamada “rede bombista”, a responsabilidade da sua existência foi de outros sectores, dos militares spinolistas e dos exilados ligados à ditadura que organizaram em Espanha o ELP e o MDLP. Outro sector de resistência contra o PCP estava ligado ao PS e, por via do PS e de Mário Soares, a serviços de informação ingleses e americanos. Todos estes sectores comunicavam entre si.

O então PPD como partido não teve responsabilidade organizada nesses movimentos, apesar das declarações de Emídio Guerreiro, mas as suas “bases” participaram em vários actos de violência contra as sedes do PCP. Os documentos do muito pouco conhecido Serviço de Centralização e Coordenação de Informações do PPD, dirigido por Júlio Castro Caldas, mostram que o partido acompanhava os assaltos às sedes do PCP, mas não participava como organização. Já o mesmo não se passava com a organização conspirativa de antigos militares ligados a Eanes, em que o PPD participou com os seus contactos.

A natureza deste anticomunismo “de combate”, chamemos-lhe assim, mudou de carácter com o fim do PREC, altura em que este serviço foi extinto, mas permaneceu como um fundo na actuação do PSD, de novo acirrado pela violenta campanha do PCP e do PS contra Sá Carneiro, antes e durante o Governo da AD. Porém, anticomunismo e anti-socialismo não são a mesma coisa.

A hostilidade contra a Maçonaria acompanhou o anticomunismo, mas não é da mesma natureza. Vários elementos do PPD que vinham da sua origem eram da Maçonaria. O seu perfil era comum, vinham da oposição à ditadura ligados a movimentos e a grupos que participaram em todos os momentos de resistência, como a campanha de Humberto Delgado, e nunca desistiram do combate contra o regime, mas tinham relutância em aliar-se à oposição hegemonizada pelo PCP. Eram republicanos históricos, socialistas moderados, do “reviralho”, conservadores, anticomunistas e ligados à Maçonaria. Na fase inicial de constituição do PPD vários deles faziam parte das listas de pessoas a contactar preparadas por Sá Carneiro e Magalhães Mota, e alguns entraram para o novo partido. Foi o caso de Nuno Rodrigues dos Santos, que tentou trazer consigo para o PPD a Acção Democrata-Social, sem grande sucesso. Esses maçons, de uma geração mais velha do que a de Sá Carneiro, sempre foram muito respeitados no PPD e no PSD e tiveram cargos institucionais de relevo.

Mas a hostilidade à Maçonaria existia em muito dirigentes que tinham uma formação católica, e nas “bases”, em particular pela sua relação com o PS e pelo seu carácter “secreto”, mas também como herança do sentimento antimaçónico que vinha do Estado Novo. O PPD/PSD era um partido com forte implantação no centro e no Norte de Portugal, o país católico apostólico romano. No entanto, o programa do PPD/PSD manteve o partido como um partido laico, e essa laicidade foi sistematicamente reafirmada em todas as suas revisões.

Nos nossos dias, nas últimas décadas, a natureza da relação de muitos dirigentes do PSD com a Maçonaria é diferente da que tinham os maçons originais: está associada às possibilidades de carreira política, que dá uma relação horizontal, e aos negócios e muito pouco aos “bons costumes” da tradição maçónica. Embora haja alguns elementos no Grande Oriente Lusitano, muitos dos actuais maçons do PSD estão ligados às novas obediências maçónicas, que se viram envolvidas em sucessivos escândalos públicos. A Loja Mozart, com uma forte componente do PSD, é disso um exemplo. Isto muda o carácter e a identidade partidária do PSD.

É uma geração mais nova, que de um modo geral esconde a sua filiação maçónica e, quando saem notícias sobre o seu envolvimento, ou diz que só lá foi uma vez para ver como era, ou entrou e saiu logo, ou mente, dizendo que nunca foi, mesmo quando há provas evidentes da sua filiação. Nas distritais de Lisboa e Porto há um elevado número de novos maçons, que tem um peso no aparelho que nada tem que ver com o perfil dos velhos maçons que vinham da resistência à ditadura, e com biografias estreitamente ligadas a carreiras exclusivamente políticas. Actuam em grupo e patrocinam candidaturas no interior do partido, a nível concelhio, distrital e nacional, mantendo sempre o segredo da sua filiação maçónica.

Isto muda o carácter e a identidade partidária do PSD.

Na génese do PPD, enquanto Sá Carneiro e os outros fundadores tentavam controlar e travar a entrada de membros da extinta União Nacional/Acção Nacional Popular – uma das funções do Serviço de Centralização e Coordenação de Informações do PPD era a investigação das biografias dos que pediam a filiação –, a nível local vários membros da extinta organização entraram no partido. O caso mais relevante foi no Porto.

(Continua)

José Pacheco Pereira é colunista do PÚBLICO


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