O boomerang anticomunista

(Carmo Afonso, in Público, 06/05/2022)

Quem sente em si anticomunismo deve verificar se não encontra também fascismo.


Continuamos a assistir ao exercício do anticomunismo primário. Os anticomunistas gostam de confundir o que é o comunismo de hoje com as concretizações comunistas registadas na História. É um direito que lhes assiste. É certo que alguns comunistas também o fazem.

A verdade é que ao ideal comunista – altruísta e igualitário, com abolição de classes e eventualmente do próprio Estado – não foi feita justiça com as tentativas conhecidas de o concretizar. Há quem diga que nunca seria possível, que são ideais utópicos. Não é preciso fazer essa avaliação. É que indo ao programa do PCP e à sua história, encontramos a defesa da democracia, o combate às desigualdades sociais, a defesa das lutas tradicionais e, mais recentemente, das progressistas. Não há revolução, não há estado totalitário ou ditadura do proletariado.

O que detestam então os anticomunistas? A esquerda. Passo a explicar: no comunismo, e no Bloco de Esquerda, é onde estão apenas políticas de esquerda, onde não há centro e onde ninguém se intitula “liberal” (liberalismo no sentido económico, do sentido político já estaríamos esclarecidos).

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O que está em causa no anticomunismo é um conflito com ideais de esquerda democrática sob a aparência de conflito com ideais de esquerda totalitária. O mal-entendido não fica por aqui: os anticomunistas são os mesmos que procuram nos problemas do mercado liberal causas imputáveis à esquerda. O preço dos combustíveis é bom exemplo: diziam que o problema era a carga fiscal. A carga foi substancialmente reduzida e claro que o problema persiste. A realidade é que os lucros das petrolíferas se apresentam exorbitantes e são a explicação cabal para o aumento dos preços a que assistimos. Tentou resolver-se um problema que era de mercado com uma medida da doutrina de mercado.

Da guerra.

Trata-se de uma tragédia, sobretudo para os ucranianos, e para a esquerda portuguesa também não é boa.

Existia uma defesa que o centro-esquerda, do Partido Socialista, fazia relativamente ao ataque anticomunista, que quase desapareceu e que foi substituída pelo ataque às posições dos comunistas relativas à guerra. O resultado é que o centro-esquerda passou a ter um discurso semelhante ao do centro-direita tradicional.

Este discurso passa, mais coisa menos coisa, pelo seguinte: “o fascismo e a esquerda (do BE e do PCP) são dois extremos que ameaçam os valores democráticos e a liberdade. O avanço destes partidos seria perigoso e deveriam ser erradicados da vida pública”. Nada de novo. Também poderíamos falar do anticomunismo da direita radical, mas diria que não vale a pena. Trata-se de um fenómeno passional e intrínseco. Quem sente em si anticomunismo deve verificar se não encontra também fascismo.

O que é novo, entre nós, é essa aproximação do centro-esquerda aos discursos do centro-direita, e da direita radical, que criticam a esquerda e que a isolam e a assinalam como um mal a ser expurgado da vida política. A razão é a guerra mas as consequências poderão sobreviver à guerra.

A primeira coisa a dizer sobre isto é que acusa falta de maturidade política quem faz críticas, dessa natureza, ignorando as consequências, também políticas, do que faz. Devo criticar uma pessoa racializada em frente a alguém que sei ser racista? Diria que não. Outros terão outra resposta.

A segunda coisa a dizer é que o resultado desta convergência em torno da crítica ao PCP pode trazer resultados inesperados: é que as pessoas, quando sentem um aperto, inclinam-se para onde o seu lado sentimental, chamemos-lhe assim, pende. Ninguém de esquerda pode sentir prazer em assistir ao linchamento de um partido como o PCP. Estão a esticar uma corda que pode partir numa parte em que não se esperaria.

O PCP, contrariamente ao que seria previsível, pode sair daqui com vigor. Entre os que atrai ao puro engano – um bom exemplo são os putinistas – e os que sentem o instinto de proteger o partido, que diariamente está nas trends como alvo a abater, o fim do partido pode estar mais longe do que se tem afirmado.

Faz sentido perguntar: o que querem os anticomunistas? Acabar com o PCP.

O que vão conseguir? Talvez dar-lhe um novo alento.

Só o tempo dirá se usam um boomerang ou uma flecha. É sabido que o primeiro, como arma, é ingrato.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico


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A memória é incómoda

(José Pacheco Pereira, in Público, 20/11/2021)

Pacheco Pereira

Nas últimas décadas, a natureza da relação de muitos dirigentes do PSD com a Maçonaria é diferente da dos maçons originais: está associada às possibilidades de carreira política e aos negócios, e muito pouco aos “bons costumes” da tradição maçónica.


O PPD/PSD sempre foi contra duas coisas: o comunismo e a Maçonaria. A natureza dessa oposição não é idêntica. O anticomunismo do PPD e do PSD é uma variante do antitotalitarismo, que é um dos fundamentos genéticos do partido, que se acentuou com a experiência portuguesa do PREC. O confronto com o PCP e a extrema-esquerda foi particularmente violento em Lisboa e no Sul do país e isso marcou o partido e reforçou o sentimento anticomunista. Embora tenha havido elementos do PSD (assim como do CDS) na chamada “rede bombista”, a responsabilidade da sua existência foi de outros sectores, dos militares spinolistas e dos exilados ligados à ditadura que organizaram em Espanha o ELP e o MDLP. Outro sector de resistência contra o PCP estava ligado ao PS e, por via do PS e de Mário Soares, a serviços de informação ingleses e americanos. Todos estes sectores comunicavam entre si.

O então PPD como partido não teve responsabilidade organizada nesses movimentos, apesar das declarações de Emídio Guerreiro, mas as suas “bases” participaram em vários actos de violência contra as sedes do PCP. Os documentos do muito pouco conhecido Serviço de Centralização e Coordenação de Informações do PPD, dirigido por Júlio Castro Caldas, mostram que o partido acompanhava os assaltos às sedes do PCP, mas não participava como organização. Já o mesmo não se passava com a organização conspirativa de antigos militares ligados a Eanes, em que o PPD participou com os seus contactos.

A natureza deste anticomunismo “de combate”, chamemos-lhe assim, mudou de carácter com o fim do PREC, altura em que este serviço foi extinto, mas permaneceu como um fundo na actuação do PSD, de novo acirrado pela violenta campanha do PCP e do PS contra Sá Carneiro, antes e durante o Governo da AD. Porém, anticomunismo e anti-socialismo não são a mesma coisa.

A hostilidade contra a Maçonaria acompanhou o anticomunismo, mas não é da mesma natureza. Vários elementos do PPD que vinham da sua origem eram da Maçonaria. O seu perfil era comum, vinham da oposição à ditadura ligados a movimentos e a grupos que participaram em todos os momentos de resistência, como a campanha de Humberto Delgado, e nunca desistiram do combate contra o regime, mas tinham relutância em aliar-se à oposição hegemonizada pelo PCP. Eram republicanos históricos, socialistas moderados, do “reviralho”, conservadores, anticomunistas e ligados à Maçonaria. Na fase inicial de constituição do PPD vários deles faziam parte das listas de pessoas a contactar preparadas por Sá Carneiro e Magalhães Mota, e alguns entraram para o novo partido. Foi o caso de Nuno Rodrigues dos Santos, que tentou trazer consigo para o PPD a Acção Democrata-Social, sem grande sucesso. Esses maçons, de uma geração mais velha do que a de Sá Carneiro, sempre foram muito respeitados no PPD e no PSD e tiveram cargos institucionais de relevo.

Mas a hostilidade à Maçonaria existia em muito dirigentes que tinham uma formação católica, e nas “bases”, em particular pela sua relação com o PS e pelo seu carácter “secreto”, mas também como herança do sentimento antimaçónico que vinha do Estado Novo. O PPD/PSD era um partido com forte implantação no centro e no Norte de Portugal, o país católico apostólico romano. No entanto, o programa do PPD/PSD manteve o partido como um partido laico, e essa laicidade foi sistematicamente reafirmada em todas as suas revisões.

Nos nossos dias, nas últimas décadas, a natureza da relação de muitos dirigentes do PSD com a Maçonaria é diferente da que tinham os maçons originais: está associada às possibilidades de carreira política, que dá uma relação horizontal, e aos negócios e muito pouco aos “bons costumes” da tradição maçónica. Embora haja alguns elementos no Grande Oriente Lusitano, muitos dos actuais maçons do PSD estão ligados às novas obediências maçónicas, que se viram envolvidas em sucessivos escândalos públicos. A Loja Mozart, com uma forte componente do PSD, é disso um exemplo. Isto muda o carácter e a identidade partidária do PSD.

É uma geração mais nova, que de um modo geral esconde a sua filiação maçónica e, quando saem notícias sobre o seu envolvimento, ou diz que só lá foi uma vez para ver como era, ou entrou e saiu logo, ou mente, dizendo que nunca foi, mesmo quando há provas evidentes da sua filiação. Nas distritais de Lisboa e Porto há um elevado número de novos maçons, que tem um peso no aparelho que nada tem que ver com o perfil dos velhos maçons que vinham da resistência à ditadura, e com biografias estreitamente ligadas a carreiras exclusivamente políticas. Actuam em grupo e patrocinam candidaturas no interior do partido, a nível concelhio, distrital e nacional, mantendo sempre o segredo da sua filiação maçónica.

Isto muda o carácter e a identidade partidária do PSD.

Na génese do PPD, enquanto Sá Carneiro e os outros fundadores tentavam controlar e travar a entrada de membros da extinta União Nacional/Acção Nacional Popular – uma das funções do Serviço de Centralização e Coordenação de Informações do PPD era a investigação das biografias dos que pediam a filiação –, a nível local vários membros da extinta organização entraram no partido. O caso mais relevante foi no Porto.

(Continua)

José Pacheco Pereira é colunista do PÚBLICO


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