Mais uma vez a “peste grisalha” – uma “justiça” que é uma injustiça

(Pacheco Pereira, in Público, 12/11/2022)

Pacheco Pereira

Um partido que aspira a governar, no seu afã de combater o actual Governo, está a fazer uma cama em que se tem de deitar e, nessa cama, passar o seu tempo a litigar com o Tribunal Constitucional.


Em 2013, num artigo de jornal, um deputado do PSD escreveu: “A nossa pátria foi contaminada com a já conhecida peste grisalha.” A frase suscitou uma furiosa discussão, chegou ao debate parlamentar e foi objecto de processos judiciais. Um reformado que reagiu com veemência à sua classificação como pestífero, e foi por isso processado pelo deputado, ganhou no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e teve direito a uma indemnização. Numa das colunas de verificação de factos confirmou-se a veracidade da frase e do seu autor, “mas” considerou-se uma atenuante que a expressão “peste grisalha” era usada em estudos académicos e não era de sua autoria.

Na verdade, no caso português, toda a frase é sinistra, porque a escolha de palavras densas como “pátria” e “contaminar” não iludem sobre o sentido pejorativo que se pretendia dar à “peste grisalha”. O contexto também não engana: estamos em plena ofensiva do Governo Passos-Portas-troika contra os direitos dos pensionistas e reformados e é a eles que se dirige o amável epíteto de “peste”. Essa ofensiva só não foi mais longe porque o Tribunal Constitucional a impediu.

O contexto da época ainda se torna mais esclarecedor, quando a JSD começou a falar de uma coisa a que chamava “justiça geracional”, considerando que os mais velhos, com as suas reformas e pensões, “roubavam” os mais novos que as tinham de pagar sem ter a garantia de vir a ter idêntico tratamento no futuro. O discurso “geracional”, mais uma variante dos discursos antidemocráticos que circulam nos dias de hoje, estruturalmente semelhante aos discursos “identitários”, era à época uma forma de legitimar a ofensiva contra a “peste”. O que é grave é que ele aparece de novo no actual projecto constitucional do PSD.

O que sabemos sobre esse projecto são as 40 propostas de alteração à Constituição, mais um programa de governo do que um projecto de revisão constitucional, com uma ou outra ideia razoável, mas muitas más. As propostas, que ainda não são o texto da revisão, tornam a Constituição um texto complexo e confuso, dominado pela preocupação de limitar o poder actual do PS, esquecendo-se que, a seu tempo, o PSD terá de governar com uma Constituição que torna a governação quase impossível. A Constituição tornar-se-á gigantesca, cheia de direitos abstractos, escritos na linguagem da moda “do século XXI”, num país que está longe de garantir sequer os direitos do século XIX. Um partido que aspira a governar, no seu afã de combater o actual Governo, está a fazer uma cama em que se tem de deitar e, nessa cama, passar o seu tempo a litigar com o Tribunal Constitucional.

Uma das ideias perigosas é exactamente essa da “justiça intergeracional”. Ela está a expressa nos seguintes pontos:

Justiça intergeracional, combate à sub-representação dos jovens no processo democrático e valorização de todas as gerações:

  • a. Inclusão entre as tarefas fundamentais do Estado da promoção da justiça entre gerações;
  • b. Criação do Conselho da Coesão Territorial e Geracional como um órgão que assegura uma representação paritária das diferentes regiões do território e gerações, (…)
  • c. Alteração da idade legal para exercer o direito de voto: a partir dos 16 anos;
  • d. Reforço da dignidade na terceira idade.

Percebe-se muito bem que quem redigiu este ponto não diz ao que vem. A última alínea – “reforço da dignidade na terceira idade”, numa formulação de slogan, está lá apenas por razões cosméticas, porque o essencial está antes disfarçado em afirmações confusas. O que é que significa o “combate à sub-representação dos jovens no processo democrático”? Quotas? Direitos de preferência? A mais importante é a frase “Inclusão entre as tarefas fundamentais do Estado da promoção da justiça entre gerações”. Muito bem, podemos é perguntar quais são as “injustiças” actuais, porque aí é que se percebe melhor o alvo.

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A verdade nua e crua, e que muita gente não gosta de ouvir, é que ser jovem é, sob todos os pontos de vista, melhor do que ser velho. Não há sequer comparação possível entre as oportunidades de quem tem futuro e quem só tem passado. Pode ter dificuldades em arranjar emprego, mas não são certamente maiores do que as de uma pessoa que nem precisa de ser velho, basta ser de meia-idade. Pode ter salários mais baixos e precariedade, sem dúvida, mas ser desempregado de um dia para o outro com família constituída e receber o subsídio de desemprego por uns meses é um drama maior.

E, se há injustiça é a invisibilidade social da condição de velho, a que se soma a condição terrível de ser velho e pobre, e que a sociedade, obcecada pela moda da juventude – os jovens têm sempre boa imprensa –, pura e simplesmente ignora por comodidade e desatenção.

As ruas das cidades nunca foram tão hostis aos velhos, que podem tropeçar numa trotinete atirada ao chão em qualquer lado, ser atropelados por uma bicicleta em sentido contrário ou a andar nos passeios, ser obrigados a ler em ecrãs sem resolução para quem já vê mal, a subir e descer escadas em prédios em que o condomínio desde a troika a primeira coisa que deixa de compor são os elevadores, com correios que obrigam a deslocações e perda de tempo para receber a reformas ou pagar as contas, com transportes inadequados e difíceis de apanhar. Habituem-se, modernizem-se, chamem um Uber… E a enorme solidão que o egoísmo crescente de famílias e vizinhos traz numa sociedade em que as relações sociais são substituídas por simulacros virtuais. E ser velho hoje é insulto, e não é preciso ir mais longe para o ver do que as caixas de comentários deste jornal.

Sim, há “injustiça geracional”, só que num sentido diferente daquele que o PSD coloca nas suas propostas de revisão constitucional. Há uma parte que vem da natureza e pode ser minimizada, mas não eliminada, e outra que vem de uma sociedade dominada pela moda, pelo egoísmo e pela falta daquilo a que Shakespeare chamava “the milk of human kindness”.

O autor é colunista do PÚBLICO


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Envelhecer assim

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 08/01/2021)

Clara Ferreira Alves

(Só posso dar os meus parabéns à Clara pela qualidade literária deste belíssimo texto. Não, as palavras ainda têm força, mesmo quando sobrevoam a tristeza, a finitude e o medo. Porque há palavras que ficarão para sempre e nos irão sobreviver. Sobreviver à fugaz viagem pela nossa existência.

Comentário da Estátua, 09/01/2021)


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Os velhos estão a morrer. E nem todos de corona. Este final de ano levou mais uns tantos, entre eles o Carlos do Carmo, o príncipe na cidade. Sobra uma mágoa seca, tão seca como aquele fado sem música que o Carlos cantou junto ao caixão do José Cardoso Pires, há muitos anos, e que foi a comovente despedida. Na Biblioteca das Galveias, a biblioteca pública onde José Saramago se refugiava a ler os clássicos enquanto trabalhava num emprego diminutivo, sabendo que havia mais na vida do que gastar as horas sem pensar. A voz do Carlos do Carmo ecoou no silêncio, cantou o fado sem um tremor, num desgosto limpo. Houve quem abandonasse a sala para chorar fora dali. Aquela emoção não podia ser quebrada com choraminguice. Só com a voz. O heroísmo da voz.

A safra deste ano dá-nos certeza de que uma geração ilustre não dobrou o cabo das tormentas. E viveu o último ano da vida numa clausura de pestíferos. Entramos em janeiro, um mês cruel para os velhos, um mês duro e metálico, um mês escarpado e que corta a pele como aço, um mês gelado e indiferente, com medo. Não há pior modo de entrar no ano novo. Toda a gente, naquela altura da vida a que se convenciona chamar “de certa idade”, tem medo. Pode não tomar todas as precauções, por incúria, por bravata, por desatenção ou por falso sentido de segurança, isto não me acontece a mim, mas o medo está lá, acoitado como um animal selvagem na caverna, à espera. Não há sentimento mais fácil de detetar do que o medo. Não são precisas palavras, o medo lê-se no corpo, e lê-se com clareza no corpo dos velhos.

Esta semana, ao visitar um hospital encontrei uma sala de espera cheia de velhos, homens e mulheres, uns mais novos, nos setentas, outros mais velhos, depois dos setentas. Os mais novos estavam sozinhos, e pela posição do corpo nas cadeiras via-se que não estavam confortáveis. O corpo torcido, virado para dentro, procurando ocultar-se. O corpo desconfiado e obrigado a distância. Ninguém falava, agora não podemos falar, o vírus não gosta da mudez e temos de contrariar o vírus. Este e os outros, os do inverno, os da gripe, os rinovírus, esse cardápio de doenças do frio que foram remetidas para plano secundário.

Os mais velhos estavam acompanhados. À minha frente, um homem muito velho seguia com uma mulher mais jovem, mas não jovem, que lhe segurava o braço e vigiava o passo. O velhote caminhava em passinhos trémulos, como uma criança a aprender a andar. Caminhava curvado, e notava-se que a altura do esplendor da vida não tinha sido aquela, tinha sido mais alto, a velhice obrigava-o a curvar-se como um prédio empenado. Os passos eram pequenos, um bocadinho de cada vez, e atravessar a sala tornava-se uma viagem de minutos. A mulher devia ser a filha, a criança que ele educou e da qual cuidou e que agora foi chamada a fazer o mesmo por aquele pai-criança, aquele pai destituído de poder ou controlo sobre o mundo. A inversão é clara, e inevitável.

Um velho tem tantas coisas de criança, incluindo a impaciência e a lágrima fácil. Depois de anos de repressão das emoções por uma cultura que não as aprecia, os velhos choram com facilidade. Mesmo que finjam que não choram. Uma parte dessas lágrimas acresce ao conjunto de indignidades da velhice, o olho húmido perpétuo, outra parte deve ter a ver com a desinibição, e uma terceira com a certeza de que tudo se torna tão difícil com a idade, desde descascar uma laranja a desrolhar uma água das pedras. Os ossos perderam a força e a pele engelhada recusa ficar com tudo a cargo. O corpo deixa de responder às mais pequenas coisas, numa teimosia que obriga a pedir ajuda para atravessar dois metros quadrados.

O poeta T. S. Eliot tem um poema enigmático, “The Love Song of J. Alfred Prufrock”, de 1917, poema do tempo da guerra e da peste, em que Prufrock pergunta se ousará perturbar o universo, se ousará comer um pêssego. E sabe que ao envelhecer enrolará a dobra das calças. “I grow old… I grow old…/ I shall wear the bottom of my trousers rolled.” Tantas interpretações críticas sobre esta “Canção de Amor de J. Alfred Prufrock”. Para mim, e este é o poema preferido, o que aprendi de cor desde que o li a primeira vez, nunca houve outra interpretação. O poema da despedida, o poema do fim das coisas, do fim do amor e do amor do corpo, o poema da memória dilatada pela lucidez, o poema da vida medida em colherinhas de café, a vida de alguém que ouviu o canto das sereias, que não foi o príncipe Hamlet nem estava destinado a ser, e que no monólogo da gloriosa introspeção consegue reduzir as perguntas a uma. Ousarei perturbar o universo?

Ao contemplar os velhos do hospital, o medo dos corpos assustados com a novidade incompreensível da doença que gosta de atacar os velhos, os doentes, os pobres, os fracos, recitei o poema em pensamento. Os livros ainda dão consolo. O medo dos velhos, o medo daqueles olhinhos húmidos atrás das máscaras, analisando o espaço em volta e os perigos que o habitam, o medo dos monstros lunares e marcianos da ficção científica, o medo do que é estranho, é uma crueldade a acrescentar às outras. Não se trata já de enrolar as calças porque a altura diminui, ou de não conseguir comer um pêssego porque escorrega das mãos e os ossos não seguram os sólidos, trata-se de sobreviver à solidão a que este vírus condenou os velhos. A um terror vivido em solitário, atrás de vidros e de janelas e portas, atrás do escudo da proteção a que foram condenados. Conheço velhos que passaram a noite de Natal e a noite de fim de ano sozinhos nas casas. Muito pior do que ver um pêssego escapar das mãos. Pior quando a memória ainda segreda, foste em tempos uma pessoa inteira, tiveste poder sobre ti e sobre os outros, dominaste o mundo com a tua força, mediste a vida em colherinhas de café porque escolheste medi-la assim. E ouviste o canto das sereias. E sabes que não cantarão para ti, escreve Eliot.

Já tivemos outras pestes. No tempo da tuberculose, os doentes refugiavam-se e pensavam em solidão enquanto o mundo lá fora continuava composto. A tuberculose produziu obras-primas da literatura, como “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann, e produziu mestres da escrita como Albert Camus, que quando teve tuberculose em novo passou o tempo a ler e assim se fez escritor. Deste vírus, não sairá o génio das artes. A tecnologia instituiu outras formas de comunicação e de pensamento, ou aboliu o pensamento. O telemóvel de última geração não salvará os velhos. Já ninguém lê livros. E a idade não deixa ler. Na solidão das salas e das casas, a companhia que lhes resta, no cansaço do dia, é a televisão. No hospital, no consultório, na espera, lá está ela, a luz azul acesa com pessoas dentro que falam com uma felicidade fingida, infantil, para alegrar os velhos.


Uma Sociedade de Idosos

(Por Dieter Dillinger, in Facebook, 17/01/2018)

idosos

Voltando ao Hospital Amadora Sintra verifiquei que todos os acamados que vi e nas urgências eram pessoas muito idosas.

O vizinho do meu amigo tem 86 anos e quase não dá conta de si e o da outra cama deve andar por perto.

Efectivamente, no ano passado devem ter falecido umas 112.000 pessoas e terão nascido 87.200. O país terá perdido 24.800 pessoas ou, principalmente, nascituros.

Não é nada que não esteja previsto, sem qualquer estudo demográfico, sociológico ou o quer que seja.

Basta a olhar à nossa volta, ver os idosos familiares e amigos partirem e reparar que só existe classe média com dois cônjuges a serem explorados e nenhum ou um filho.

Por um lado será um mal, mas por outro nega a tese dos milionários e seus representantes políticos da falta de sustentabilidade da Segurança Social.

A esperança de vida atingiu os 81,5 anos em 2017, mas com ela aumenta a mortalidade e até diminui o número de pensionistas, pela simples razão de que não ficamos por cá.

Temos 2,8 milhões de pensionistas que deverão descrescer nos próximos anos e décadas, mesmo vivendo mais. Quanto maior for o volume dos idosos maior será a mortalidade, já que a mortalidade infantil ronda os 3 por mil e durante a maior parte da vida morre-se por acidente e, mesmo assim, já morreram 2.500 pessoas por ano na estrada e agora andam perto das 500. O INEM, os helicópteros de salvamento no mar e transporte de acidentados e doentes, os bombeiros e hospitais salvam muitas vidas por ano.

Para aumentar a natalidade é fundamental isentar das fórmulas que acomodam a sustentabilidade das pensões para baixo a todos os casais que tenham dois ou mais filhos. Com os filhos já estão a garantir a sustentabilidade futura da segurança social.

Por outro lado, as empresas e o Estado devem ser mais amigos das crianças a nascer e proporcionar alguns meios e horários para que os trabalhadores possam cuidar da sua prole.

Se os multimilionários dos gigantes empresariais tipo Pinto Doce, Continente e outros não fazem nada, um dia não terão clientes.

Portugal já só tem uns 10,3 milhões de habitantes e reparem os milionários exploradores que os idosos tendem a gastar muito pouco, excepto medicamentos e cuidados de saúde.

Não será, pois, pela descida das pensões de reforma, como querem os representantes PPD/PP dos milionários, que se encontra a sustentabilidade da segurança social. Ela assegura-se por si, mas à custa do número de habitantes.