Des-Natal é que é!

(António Guerreiro, in Público, 23/12/2023)

António Guerreiro

A “desnatalidade” talvez possa inspirar um des-Natal, um movimento de libertação desta “quadra” que nos convoca coercivamente.


É Natal. É tempo de falar de natalidade. Em Itália é um assunto na ordem do dia porque o “Inverno demográfico” transalpino é o mais frio de toda a Europa, que no seu conjunto já está em estado de “colapso demográfico” há algum tempo – de tal modo que, segundo os dados oficiais, em 1950 um europeu médio tinha 29 anos e hoje tem 43. A palavra “desnatalidade”, que designa o défice da taxa de nascimentos em relação à taxa de mortalidade, soa como um termo bizarro. Talvez ela possa inspirar um des-Natal, um movimento de libertação desta “quadra” que nos convoca coercivamente para uma mobilização total.

Ainda a Itália, o bel paese por antonomásia: há alguns anos, quando a taxa de natalidade já era baixa, mas ainda não tão “depressiva”, a Itália deitou-se no divã para analisar os sintomas patológicos advindos de ser um país de filhos únicos e produziu muita psicologia social. Desta “ciência” espontânea, impressionista, resultaram algumas conclusões como esta: ser filho único promovia a emancipação das raparigas (a quem, tradicionalmente, cabiam tarefas domésticas e o dever de se inclinarem perante as prerrogativas masculinas dos homens da família), mas tinha tornado os homens muito mais frágeis, uma fragilidade que eles tentavam superar com atitudes de macho mimado, de maridos insuportáveis que, uma vez divorciados, voltam a casa da mamma, de onde na verdade nunca saíram.

Agora, já não se trata da discussão sobre o “filho único” e as suas idiossincrasias, mas da inexistência de filhos: “Porque é que em Itália já não se fazem filhos?”, pergunta-se por lá com insistência. Até um filósofo como Giorgio Agamben (do qual pensamos que só se interessaria por estas questões demográficas na medida em que elas estão no centro da biopolítica contemporânea) escreveu na rubrica que mantém no site da editora Quodlibet um texto que é quase um obituário, logo no título “Finis Italiae”.

Nele se afirma: “Se existe na Europa um país em que alguns dados permitem certificar com sóbria precisão a data do fim, este é a Itália (…). A perdurar, este declínio [demográfico] conduziria em três gerações à extinção do povo italiano.” Quem leu os escritos de Agamben sabe que jamais ele lamentaria esse facto em chave nacionalista. Mas ele esclarece logo a seguir o que motiva o seu discurso lutuoso: “O que me entristece é a possibilidade perfeitamente real de que não exista mais ninguém para falar italiano, que a língua italiana se torne uma língua morta. Que ninguém mais possa ler a poesia de Dante como uma língua viva, como Primo Levi a lia em Auschwitz ao seu companheiro Pikolo.”

Evidentemente, os Outonos e as previsões de Invernos demográficos como o da Itália, em toda a Europa, não suscitam lamentos pela sorte que estará reservada a Camões (mas o português está a salvo: é falado noutras latitudes de elevada fecundidade, por enquanto) ou a Goethe (também nas questões demográficas a Alemanha já começa a fazer a sua “viagem a Itália”).

A preocupação é de outra ordem, consentânea com o “paradigma económico” que domina a política, mas também a vida dos indivíduos: a queda drástica da natalidade ameaça a estabilidade económica. E isso é suficiente para vê-la como um fenómeno crítico para o qual as economias não estão preparadas porque o seu motor tem uma lógica de funcionamento incompatível. Noutros planos que não o económico, a baixa de natalidade oferece-se a uma discussão sobre se é uma coisa negativa ou positiva.

A questão fundamental é assim formulada: se há cada vez menos nascimentos e cresce a população envelhecida, quem pagará, no futuro, os serviços de saúde e as pensões? Mas este modo de declinar o problema omite a sua raiz profunda: o capitalismo é uma religião do débito e cada criança que nasce já nasce endividada, isto é, com uma “culpa” original (quantas vezes se insistiu, desde a crise financeira de 2008, que a palavra alemã Schuld significa “dívida” e “culpa”?).

O débito público dos Estados e o débito privado são o pressuposto das actuais modalidades de sujeição e implicam uma garantia: que haja no futuro quem os pague. Evidentemente, este futuro, no caso do débito público (que nos transforma todos em sujeitos devedores e se apropria das nossas potencialidades individuais) é sem data. Por isso é que se diz que a dívida é para ser gerida, isto é, reproduzida, mas não saldada. Mas esta condição implica que haja a garantia de que a fábrica do homem endividado continue a produzir cada vez mais sujeitos devedores. Se a fábrica de fazer filhos pára, deixa de haver acumulação de “capital humano” à altura do investimento esperado. E dá-se o colapso.


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Debaixo da ténue espuma dos dias, a grande tempestade ameaçadora

(Henrique Monteiro, in Expresso, 23/12/2021)

Henrique Monteiro

Falamos da covid e, sim, é um problema grande. Falamos dos discursos de Rio, das alocuções de Costa, dos desconfortos do BE e do PCP (como se não tivessem apoiado este ciclo), e das tiradas apopléticas de Ventura. Falamos de muita coisa, mas a grande tempestade que nos ameaça é só referida de passagem. Há quem faça a chamada “greve climática” (contra quê? contra quem?), como se o homem mudasse um sistema complexo dominado por variáveis que nem conhecemos, através de greves. Porém, as revoluções subterrâneas que a todos e a cada um ameaçam; que podem derrubar a civilização, seja através da desumana indiferença, da paralisia cobarde ou do desconhecimento papalvo, são deixadas num plano secundário, ao fundo do palco das palavras e fora do plano das ações. São elas a demografia e as migrações.

Provavelmente, estes dois cavaleiros do Apocalipse que nem São João previu — não são a fome, a guerra, a peste e a morte —, constituem a principal ameaça, não tanto às nossas vidas, mas ao que consideramos vida; não nos ameaça com a morte, mas com o Inferno, tal como Dante e a Teologia o encaram: a ausência de esperança. Não temos para onde fugir nem terra que nos acolha. Nós somos a terra que acolhe e para onde se foge; o chão, que para nós quase só tem angústias, é para eles a esperança da vida melhor. A nossa pobreza é a sua riqueza; a nossa desigualdade o seu paraíso.

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Curiosamente, a história do Natal tem os ingredientes desta realidade: nascimento, ameaça, fuga. Mas para os europeus, para os ocidentais, fuga para onde? Os nascimentos decaem, porque a crença, a esperança, é um incentivo à procriação; pelo contrário, a descrença e o desespero provocam um seco e infértil efeito. As ameaças aí estão. A infância e a juventude deixaram de ser assunto de brincadeira, passaram a negócio sério. Dos brinquedos aos problemas psiquiátricos e sociais, não há jovem a quem não seja incutida (pior do que qualquer efeito secundário possível ou imaginário de uma vacina) uma boa dose de medo da vida; em simultâneo, glorifica-se a temeridade insana nos chamados desportos radicais, que vão do coma alcoólico à escalada. A ideia de felicidade tornou-se de tal modo complexa que a poucos ou a ninguém chega um amor, uma casa, um emprego, filhos e umas férias. Tem de ser muito mais, tem de ser tudo.

Aqui, onde falta gente para trabalhar e jovens, a uma sociedade velha e desiludida, chegam milhares de migrantes que aspiram à nossa felicidade (que cremos ser infeliz). À maioria nem os deixamos chegar; pregámos boa moral sobre os muros de Trump e temos um cemitério de esperança no mar. Aos que o passam, espera-os o campo de concentração.

Aos que se libertam ou fogem, empregos miseráveis, ou demagogos que os classificam como ameaças ou ‘ativistas’ que exaltam a cultura e o modo de vida de que fugiram. Nem de um lado nem do outro (salvo as raras exceções, que sempre existem), nada nem ninguém os integra. Nos centros urbanos fala-se turco, árabe, farsi, nepalês, chinês, hindi… nos Uber, nos táxis, em muitas lojas, entendemo-nos no novo latim bárbaro que é o mau inglês. Gradualmente, eles serão mais e nós menos. Nada de grave, acaso lhes quiséssemos mostrar a virtude da nossa civilização e os convidássemos a estar connosco, estando com eles. O seu destino, porém, é o gueto. O nosso, a prazo, é o fim da mais tolerante, livre e bela civilização construída. Quem não sente esta tempestade? Quem ainda crê no milagre da ressurreição?


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Grisalho e inseguro

(Daniel Oliveira, in Expresso, 06/08/2021)

Daniel Oliveira

Apesar da relevância dos contextos culturais e religiosos, a natalidade está quase sempre relacionada com necessidades económicas. Em países muito pobres, os filhos não são apenas bocas para alimentar, são braços para trabalhar. Portugal é demasiado rico para as crian­ças trabalharem e demasiado pobre para lhes garantir, a elas e aos pais, o conforto desejável. E isso agravou-se na última crise financeira, como o último Censos confirma: comparando com 2011, somos menos 214 mil. Pior só nos anos 60. Em 2013, 35% das mulheres adultas em idade fértil não tinham filhos, em 2019 eram 42%. 93% das mulheres e 97% dos homens com menos de 29 anos não têm filhos. Ou seja, os que têm filhos adiam a decisão. A imigração ajudaria a resolver o problema — na primeira década deste século ajudou. Mesmo assim, seria solução de curto prazo. Os imigrantes adaptam-se aos condicionalismos nacionais.

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Para além da defesa genérica de uma partilha mais equilibrada das tarefas domésticas e de mais creches ou apoios financeiros aos pais, grande parte das “políticas de natalidade” tem sido fiscal, propondo-se resolver o problema onde ele está resolvido: nas pessoas com mais recursos. Os benefícios fiscais só têm um impacto significativo em quem paga muitos impostos — os mais ricos. E não me parece que a proposta de um reforço na reforma por cada filho, feita por Bagão Félix, mude grande coisa. Ninguém decide ter filhos aos 30 a pensar no que receberá aos 70. Pensa nas condições previsíveis nos anos seguintes. Para a maioria, os problemas mais graves não são fiscais ou a longínqua reforma. Nas sociedades mais desenvolvidas da Europa, não ter filhos é, em parte, uma escolha. Para os conservadores, ter filhos é um dever. Para mim, é um direito. Por cá, nem isso é, como mostra o grande desvio entre a fecundidade desejada e a efetiva.

2013 foi dos anos mais trágicos para a natalidade. Vivíamos o pico dos anos da troika e as expectativas eram péssimas. Não por acaso, o índice sintético de fecundidade melhorou entre 2015 e 2019. E, perante a incerteza, deve bater recordes negativos no primeiro semestre de 2021. Se a decisão de ter filhos depende de expectativas, políticas de natalidade são políticas de segurança. Combatendo a precariedade que devasta um país onde se instalou o mito de que temos um mercado laboral rígido.

Sabendo que não há adaptação de horários às necessidades parentais quando o trabalhador não tem o poder negocial que só o vínculo lhe dá. E garantindo habitação acessível, novo fator relevante de estabilidade, que só políticas públicas podem favorecer. E é aqui que está o desencontro político neste debate: os que, por razões morais e religiosas, mais falam de natalidade são os que, por razões ideológicas e sociais, mais se opõem a políticas que não reservem o luxo de ter filhos a quem está preocupado com quanto pode abater nos impostos da mensalidade do colégio. A crise demográfica é cumulativa — quanto menos crianças nascem, menos mães e pais haverá. Por isso serão precisas décadas de políticas sociais e laborais para vencer esta crise. Não são as missas pela natalidade e pela família dos que acreditam que o mercado chega para resolver a precariedade no trabalho e a falta de habitação acessível que abrandarão o envelhecimento do país. E os poucos que têm segurança, quando as coisas correm pior não podem ter filhos por todos.


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