As mulheres que trabalham e a “gerimpança” de Costa

(José Soeiro, in Expresso Diário, 18/01/2022)

Foi notícia há dias um triste recorde. A não renovação de contratos de trabalho a prazo a trabalhadoras grávidas e ou a pais em gozo de licença parental atingiu um novo máximo. Em 2020, segundo os dados divulgados, houve mais de duas mil comunicações à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) a este propósito. Num país onde se ouvem discursos inflamados sobre o “inverno demográfico”, em que o Governo anuncia a importância das políticas de “conciliação do trabalho com a vida familiar” e em que as regras da direita no campo laboral permanecem na lei do trabalho, este indicador acaba por revelar como podem ser sonsos os apelos natalistas que recusam alterar as raízes da insegurança no trabalho e das condições materiais sob as quais as pessoas têm de fazer as suas escolhas e projetos de vida.

Num encontro recente com trabalhadoras das cantinas escolares – serão cerca de 30 mil em Portugal, que asseguram essa função essencial de alimentação de crianças e jovens – chocaram-me os relatos das condições de desvalorização económica e pessoal que estas mulheres vivem na pele. Trabalhando em escolas públicas, são intermediadas pelas empresas privadas com as quais o Estado subcontrata as refeições dos alunos e alunas. Em cada ano, são recrutadas sete ou nove meses, muitas vezes com uma empresa de trabalho temporário como duplo intermediário entre elas e a empresa de restauração, sendo obrigadas a ir para o fundo de desemprego (a que nem sempre têm acesso dada a exiguidade dos seus descontos) duas a três vezes por ano, sempre que há pausas letivas. É um exemplo luminoso da desigualdade e da exploração estimuladas pelas próprias políticas públicas e pelo modelo liberal de subcontratação, que precariza as relações laborais e comprime os salários. A continuação deste modelo, que é uma das explicações para os baixíssimos salários médios que temos, é o futuro prometido pelas direitas – as que estão na origem do desequilíbrio que persiste na contratação coletiva e as que, sob a capa de um suposto “ímpeto reformista”, querem, por exemplo, acabar com o salário mínimo nacional, como defende a Iniciativa Liberal. 

António Costa, que em 2012 criticava o PS de António José Seguro por ter aprovado as normas da direita no trabalho, pede agora desbragadamente uma maioria absoluta que sabe que não terá, ao mesmo tempo que aponta para uma espécie de “gerimpança” que lhe permita governar com o PAN (um partido disponível para acordos quer com o PS quer com o PSD) libertando assim o seu futuro executivo dos “empecilhos” da esquerda, objetivo que se revela, cada vez mais, a verdadeira causa da crise política que o primeiro-ministro provocou com a ausência de uma negociação que permitisse a aprovação do Orçamento.

É justamente esta uma das questões maiores destas eleições. É impossível mudar a política sem mudar o trabalho, num país que não conseguiu superar o padrão de precariedade, a pobreza assalariada, a estagnação do salário médio e o crescimento das múltiplas formas de sofrimento no trabalho. Por isso, não há como não insistir neste problema. A transformação que é preciso fazer para abrir um novo ciclo político que mude as relações de trabalho em Portugal depende decisivamente da força que a esquerda tenha no novo quadro parlamentar, conjugada com a capacidade de se criarem novas formas de exprimir e organizar os conflitos e as lutas laborais de quem tem menos voz coletiva. O reforço do Bloco como terceira força política é a garantia necessária para impor um acordo em torno da justiça no trabalho e da valorização dos salários. No momento eleitoral, o voto de cada trabalhadora conta tanto quanto o do primeiro-ministro. Como vimos no passado, os estados de alma e a empáfia de campanha de quem gostaria do poder absoluto valem muito pouco, ou mesmo nada, se for essa a escolha de quem vota. 


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Grisalho e inseguro

(Daniel Oliveira, in Expresso, 06/08/2021)

Daniel Oliveira

Apesar da relevância dos contextos culturais e religiosos, a natalidade está quase sempre relacionada com necessidades económicas. Em países muito pobres, os filhos não são apenas bocas para alimentar, são braços para trabalhar. Portugal é demasiado rico para as crian­ças trabalharem e demasiado pobre para lhes garantir, a elas e aos pais, o conforto desejável. E isso agravou-se na última crise financeira, como o último Censos confirma: comparando com 2011, somos menos 214 mil. Pior só nos anos 60. Em 2013, 35% das mulheres adultas em idade fértil não tinham filhos, em 2019 eram 42%. 93% das mulheres e 97% dos homens com menos de 29 anos não têm filhos. Ou seja, os que têm filhos adiam a decisão. A imigração ajudaria a resolver o problema — na primeira década deste século ajudou. Mesmo assim, seria solução de curto prazo. Os imigrantes adaptam-se aos condicionalismos nacionais.

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Para além da defesa genérica de uma partilha mais equilibrada das tarefas domésticas e de mais creches ou apoios financeiros aos pais, grande parte das “políticas de natalidade” tem sido fiscal, propondo-se resolver o problema onde ele está resolvido: nas pessoas com mais recursos. Os benefícios fiscais só têm um impacto significativo em quem paga muitos impostos — os mais ricos. E não me parece que a proposta de um reforço na reforma por cada filho, feita por Bagão Félix, mude grande coisa. Ninguém decide ter filhos aos 30 a pensar no que receberá aos 70. Pensa nas condições previsíveis nos anos seguintes. Para a maioria, os problemas mais graves não são fiscais ou a longínqua reforma. Nas sociedades mais desenvolvidas da Europa, não ter filhos é, em parte, uma escolha. Para os conservadores, ter filhos é um dever. Para mim, é um direito. Por cá, nem isso é, como mostra o grande desvio entre a fecundidade desejada e a efetiva.

2013 foi dos anos mais trágicos para a natalidade. Vivíamos o pico dos anos da troika e as expectativas eram péssimas. Não por acaso, o índice sintético de fecundidade melhorou entre 2015 e 2019. E, perante a incerteza, deve bater recordes negativos no primeiro semestre de 2021. Se a decisão de ter filhos depende de expectativas, políticas de natalidade são políticas de segurança. Combatendo a precariedade que devasta um país onde se instalou o mito de que temos um mercado laboral rígido.

Sabendo que não há adaptação de horários às necessidades parentais quando o trabalhador não tem o poder negocial que só o vínculo lhe dá. E garantindo habitação acessível, novo fator relevante de estabilidade, que só políticas públicas podem favorecer. E é aqui que está o desencontro político neste debate: os que, por razões morais e religiosas, mais falam de natalidade são os que, por razões ideológicas e sociais, mais se opõem a políticas que não reservem o luxo de ter filhos a quem está preocupado com quanto pode abater nos impostos da mensalidade do colégio. A crise demográfica é cumulativa — quanto menos crianças nascem, menos mães e pais haverá. Por isso serão precisas décadas de políticas sociais e laborais para vencer esta crise. Não são as missas pela natalidade e pela família dos que acreditam que o mercado chega para resolver a precariedade no trabalho e a falta de habitação acessível que abrandarão o envelhecimento do país. E os poucos que têm segurança, quando as coisas correm pior não podem ter filhos por todos.


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A hora dos ’emprecários’

(José Soeiro, in Expresso Diário, 11/07/2020)

José Soeiro

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A greve dos entregadores no Brasil é um sinal novo e importante. Os trabalhadores de plataformas como a UberEats, a Glovo, a iFood ou a Rappi têm sido essenciais durante a pandemia. O volume de pedidos não deixou de aumentar neste período – mas subiu também, para o triplo, o número de trabalhadores que procuraram nas plataformas digitais algum rendimento, num contexto em que outras atividades estavam paralisadas e em que a maioria dos brasileiros, por não ter “carteira assinada”, não tem qualquer forma de proteção social.

Uma investigação divulgada recentemente dava um retrato do setor naquele país: 75% trabalha exclusivamente para estas plataformas e está conectado a duas aplicações distintas ao mesmo tempo. 77% dizem que trabalham mais de 10 horas diárias, quase metade 12 horas. Não têm contrato ou vínculo à plataforma, os rendimentos são altamente variáveis em função dos pedidos e dos rankings, com uma percentagem significativa a ir para a multinacional que é proprietária da aplicação, não têm infraestruturas básicas de descanso ou para irem ao quarto de banho, não têm proteção social, os acidentes correm por sua conta e ficam entregues a si mesmos em caso de doença, incluindo a covid. A larga maioria usa moto, mas mais de um quarto move-se de bicicleta. Metade declara ter sofrido já um acidente durante o trabalho. Se reivindicam qualquer coisa, a retaliação é simples: são bloqueados na aplicação, ficam “em branco”, sem que lhes sejam encaminhados pedidos para o seu telemóvel. No Brasil, os entregadores são maioritariamente homens, abaixo dos 34 anos e negros.

Foi contra esta desproteção radical que milhares deles encheram as ruas de algumas das principais cidades brasileiras no início deste mês. Paulo Galo, 31 anos, porta-voz do Movimento dos Entregadores Antifascistas, já presente em 11 estados, faz o balanço da maior manifestação de sempre de estafetas: “Tinha muito companheiro ainda iludido na ideia de ser empreendedor e tal, e sem entender que a luta é pelos nossos direitos”. E acrescenta: “Nunca vi a rua de São Paulo tão linda, olhar nos olhos dos meus companheiros e reconhecer que ali não estavam empreendedores e sim trabalhadores”.

Também em Portugal, o universo das plataformas não tem parado de crescer. Segundo um estudo da Comissão Europeia, envolve já cerca de 10% da população empregada. Não admira, por isso, que se esbocem tentativas de organização sindical, propostas para criar uma aplicação pública de entregas com padrões laborais decentes e sem multinacionais (como foi aprovado na Câmara de Lisboa) ou que haja quem tente lançar a semente de uma possível cooperativa de estafetas.

Qualquer uma destas iniciativas procura reconstruir direitos e formas de representação junto da que é, provavelmente, a modalidade mais radical de precarização que hoje existe: a que passa por converter patrões em clientes, por converter empresas em meros intermediários e por converter trabalhadores em empresas. Este movimento de fundo, há muito identificado pelo jurista Jorge Leite quando falava na “deslaboralização das relações de trabalho”, é uma distopia selvagem – mas está aí. Sem precisar de acabar formalmente com os contratos de trabalho, com a proteção no desemprego ou na doença, sem precisar de proibir os sindicatos ou de acabar com o direito à greve, o que este processo faz é tentar esvaziar qualquer uma dessas categorias, retirando delas, cada vez mais, uma parte significativa da classe que vive do trabalho.

São centenas de milhares os “emprecários” em Portugal. Há mais de meio milhão de trabalhadores independentes, e mais algumas centenas de milhares de empresários em nome individual. Estamos a falar praticamente de um quarto da força de trabalho. Serão verdadeiramente “empresários” e “independentes” todas estas pessoas?

No setor da cultura ou nas entregas de comida, na prestação de cuidados ou em profissões técnicas, muitas pessoas foram, de facto, empurradas para a condição de empresários de si próprios para que as suas relações laborais fossem enquadradas pelo direito dos negócios, subtraindo-lhes assim todos os direitos associados a um contrato. São precários-empresa.

Esta realidade dos ’emprecários’ (aparentes empresários na realidade precários), ficou escancarada com a pandemia. Entre abril e junho de 2020, houve 198.999 trabalhadores independentes que pediram o apoio extraordinário da segurança social por terem ficado sem atividade. Houve 25.108 membros de órgãos estatutários (às vezes de associações criadas para se empregarem a si próprios, como acontece na cultura) que o fizeram também. À luz das leis que temos, estes cerca de 200 mil desempregados não tinham acesso a subsídio de desemprego (porque supostamente não têm sequer empregador) e não cabiam sequer no mais que residual “subsídio por cessação de atividade”.

A falácia do “transforma-te numa empresa que és tu” parece ter sido posta a nu nos últimos meses. Na maior parte das vezes, é mesmo só um engodo que nos desprotege. De facto, é como trabalhadores que muitas destas pessoas se reconhecem – vejam o que se passa na Casa da Música e em Serralves, mas também nas plataformas – e não há medidas extraordinárias de proteção social que resolvam a raiz do problema, que é a falsificação de milhares de relações laborais em relações de prestação de serviço.

Também por cá, esta realidade dos ’emprecários’, dos falsos independentes e das plataformas mexe. A pandemia veio expô-la como nunca. Mais tarde ou mais cedo, também por cá acabará por explodir.