O futuro pertence à esquerda e não à direita

(Por Wolfgang Münchau , in DN, 26/02/2019)


Wolfgang Münchau

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Por enquanto, a direita está em crescendo, mas a sua ascensão está autolimitada. Matteo Renzi, ex-primeiro-ministro de Itália, está a preparar-se para formar o seu próprio movimento político centrista, muito parecido com o La République en Marche!, do presidente francês Emmanuel Macron. Um novo grupo centrista no Reino Unido também causou excitação, embora por motivos diferentes.
 

Mas as hipóteses não são boas para muitos deles. A democracia liberal está em declínio por uma razão. Os regimes liberais mostraram-se incapazes de resolver problemas que surgiram diretamente de políticas liberais como cortes de impostos, consolidação orçamental e desregulamentação: instabilidade financeira persistente e as suas consequências económicas; um aumento da insegurança entre as pessoas de baixos rendimentos, agravada pela mudança tecnológica e pelas políticas de imigração abertas; e falhas de coordenação de políticas, por exemplo, na repressão à evasão fiscal global.

Quando a crise financeira os atingiu, os governos europeus continentais não assumiram o controlo total dos seus sistemas bancários, não reprimiram a sério os bónus nem impuseram impostos sobre transações financeiras. Eles não aumentaram os impostos sobre o rendimento nem sobre as empresas para contrabalançar os cortes na despesa do setor público. Eles não reforçaram as políticas de imigração.

As estatísticas económicas usuais não capturam a forma como as vidas das pessoas de baixos rendimentos mudaram nas duas últimas décadas. A estagnação do rendimento real disponível é importante, mas também o é a menor segurança no emprego e a redução do acesso a mercados de crédito e hipotecas.

Penso que a resistência contra o liberalismo virá em etapas. Estamos no primeiro estágio – a fase trumpiana anti-imigração. A imigração acarreta benefícios económicos líquidos, especialmente no longo prazo. Mas também há perdedores, reais e imaginários. A decisão da chanceler Angela Merkel de abrir as fronteiras da Alemanha a um milhão de refugiados em 2015 foi justificada por razões éticas e tenho a certeza de que trará benefícios a longo prazo, mas transformou-se numa crise porque ela não preparou politicamente o seu país.

Também o euro foi uma construção liberal de um clima propício. Quando a crise chegou, os políticos fizeram o mínimo necessário para garantir a sua sobrevivência, mas não conseguiram resolver os problemas subjacentes, que hoje se expressam como desequilíbrios que não se autocorrigem. Sem um ativo seguro único e uma união bancária genuína, a zona euro permanecerá propensa a crises financeiras.

A democracia liberal foi bem-sucedida a derrubar barreiras comerciais, proteger os direitos humanos e fomentar sociedades abertas. Mas a incapacidade para gerir as consequências sociais e económicas de tais políticas tornou os regimes liberais inerentemente instáveis.

Por enquanto, a direita está a prosperar com a reação anti-imigração. Mas a sua ascensão está autolimitada por duas razões. Primeiro, as políticas de direita não estão a ser bem-sucedidas nem mesmo nos seus próprios termos restritos. Um muro ao longo da fronteira com o México não vai impedir os fluxos migratórios dos EUA, da mesma forma que a renacionalização das políticas de imigração na Europa também não o faria. Em segundo lugar, suspeito que a imigração será superada em breve por outras questões, como o impacto da inteligência artificial nos meios de subsistência da classe média; os níveis crescentes de pobreza; e a deslocalização económica decorrente das mudanças climáticas.

Este é um ambiente político que favorece a esquerda radical sobre a direita radical. A direita não está interessada na pobreza e os seus partidos estão cheios de negacionistas das alterações climáticas. Alguns dos populistas de direita podem falar a linguagem das classes trabalhadoras, mas a esquerda tem maior probabilidade de as satisfazer.

A política assassina da esquerda será a taxa de imposto de 70% proposta pela recém-chegada congressista norte-americana Alexandria Ocasio-Cortez. Não é o número que importa, mas a determinação de reverter uma tendência de 30 anos para uma tributação mais baixa de rendimentos e lucros muito elevados. Uma tal política traria danos colaterais, com certeza, mas, do ponto de vista da esquerda radical, danos colaterais são uma promessa, não uma ameaça.

E o centro radical? Macron demonstrou que o liberalismo de base pode ter sucesso como estratégia eleitoral. Mas existem fatores específicos no sistema eleitoral francês que favoreceram a vitória de Macron em 2017, e ainda é cedo para avaliar se as suas políticas reais vão cumprir o que os seus eleitores desejavam. A Itália também é candidata a uma revolução ao estilo de Macron, mas isso, por si só, não conseguirá resolver os problemas profundamente arreigados do país.

O impacto económico e social das políticas liberais varia conforme os países. A Alemanha evitou até agora a espiral descendente devido à sua posição única dentro da zona euro e a sua base industrial ainda relativamente forte, mas basta esperar até que a força irresistível do carro elétrico autónomo atinja o objeto imóvel dos condutores de carros a diesel.

Entrámos numa era que favorecerá o radicalismo sobre a moderação, e a esquerda sobre a direita. Não vai ser a era de Donald Trump.

© The Financial Times Limited, 2019

Socialista e europeísta?

(Por Ricardo Paes Mamede, in DN, 27/02/2019)

Paes Mamede

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O PS já escolheu o tom para a campanha das eleições europeias deste ano. Os socialistas vão apresentar-se como o mais europeísta dos partidos portugueses. Não apenas o partido que conduziu o país à Comunidade Europeia, ou que assegurou a participação de Portugal no euro desde a sua fundação. Tal como Macron há dois anos, o PS quer ser visto como a força partidária mais empenhada na defesa da União Europeia (UE) contra toda as posições soberanistas, sejam de direita ou de esquerda.

Dada a história portuguesa desde o 25 de Abril, tudo isto parece lógico e natural. Mas não é bem assim.

A UE, tal como existe, assenta no princípio da concorrência livre num mercado plenamente integrado. No mercado único europeu as empresas e os bancos dos vários países devem competir entre si com o mínimo de interferência dos poderes públicos. Mercadorias e capitais movimentam-se livremente, cabendo às instituições europeias garantir que tal acontece em todo o espaço de integração sem discriminações com base na nacionalidade.

A moeda única foi criada não só para facilitar as transacções comerciais e financeiras entre países mas também para disciplinar e limitar a acção dos governos nacionais.

O Tratado de Maastricht e a moeda única retiraram aos Estados membros instrumentos de política fundamentais para fazer face a choques económicos, para promover o desenvolvimento das estruturas produtivas nacionais ou para assegurar o financiamento dos seus países em situações críticas. A perda de instrumentos de política económica à escala nacional não foi compensada pela criação de outros à escala europeia que permitam responder aos problemas que afectam algumas economias mais frágeis.

Quando ocorre uma crise nestas economias o desemprego prolongado e a emigração em massa são os principais mecanismos de ajustamento disponíveis. Para melhor reagirem a tais eventos, os países são incentivados a reduzir as despesas do Estado com protecção social e serviços colectivos, mesmo quando o peso das despesas públicas no PIB é já inferior à média europeia (como é o caso de Portugal). O reforço dos direitos laborais é visto como uma forma indesejável de rigidez. Os governos são também convidados a reduzir os impostos sobre os lucros para tentar atrair investidores, o que dificulta ainda mais a realização das funções sociais do Estado e leva ao aumento da carga fiscal sobre quem vive do seu trabalho.

Não é estranho que muitos se revejam no regime económico acima descrito. Os seus defensores acreditam que um mercado concorrencial com o mínimo de intervenção do Estado contribui para uma maior criação de riqueza e favorece a liberdade individual. Estranho é que os que assim pensam se considerem socialistas.

Ser socialista deveria traduzir-se na defesa do pleno emprego, do combate às desigualdades entre países e dentro cada país, do reforço dos direitos sociais e laborais, da promoção de serviços públicos universais. Nas últimas décadas, a UE tem sido o contrário disto tudo.

Os euro-entusiastas por vezes argumentam que a UE não tem de ser como é e que um maior peso de partidos progressistas no Parlamento Europeu pode tornar o processo de integração mais favorável aos valores da esquerda. É uma ideia generosa, mas não é o que a história nos mostra.

Na segunda metade da década noventa a maioria dos países da UE era governada por partidos da Internacional Socialista. Nem assim foi possível avançar na direcção do que diziam defender: a harmonização fiscal, o estabelecimento de direitos laborais comuns, a criação de um subsídio de desemprego europeu, entre outros.

A pressão da UE para a erosão dos direitos sociais e laborais não é um erro de concepção dos Tratados em vigor, é um dos seus propósitos centrais. A alteração desses tratados só é possível com o acordo unânime de todos os Estados membros. A probabilidade de tal acontecer é virtualmente nula.

Uma visão crítica sobre a UE não impede ninguém de reconhecer o papel que a integração económica europeia teve na preservação da paz no continente, nem de valorizar o princípio da cooperação entre os povos. Por estes e outros motivos, podemos até ser socialistas e reivindicarmo-nos de alguma forma de europeísmo. Confundir isto, os propósitos e os objectivos da UE tal como existe é um equívoco.

Só os ingénuos ou os cínicos podem dizer-se socialistas e defensores da União Europeia que temos.


Economista e professor do ISCTE-IUL. Escreve de acordo com a antiga ortografia

Os socialistas 

(Daniel Oliveira, in Expresso, 12/05/2018) 

Daniel

Daniel Oliveira

A caminho de um congresso, o PS foi ensombrado pelo fantasma de Sócrates em forma de Pinho. É-lhe exigida uma profunda reflexão sobre o seu passado. É um apelo legítimo com uma resposta difícil. Primeiro, porque qualquer reflexão despolitizada sobre a corrupção acaba em afirmações morais tão consensuais como inúteis. Depois, porque este apelo pretende instalar a ideia de que a corrupção é um problema do PS. Não interessa se a tese é desmentida por dezenas de casos que envolvem políticos da outra metade do bloco central.

Transformar o PS em sinónimo de corrupção devolve à direita o discurso que perdeu com os bons resultados económicos do governo. Até às próximas eleições tentarão que a política se faça na RTP Memória. Até os mortos-vivos foram convocados, e Manuela Moura Guedes regressou do mausoléu da longa noite socratista.

Talvez assim o PS passe o congresso no passado em vez de procurar o melhor antídoto contra os corruptos do futuro: um projeto político coerente, única forma de os partidos serem mais do que plataformas de emprego e negócios.

O regresso de Sócrates ofuscou um acontecimento pouco habitual em Portugal: um confronto ideológico entre dois membros de um governo. No “Público”, Augusto Santos Silva e Pedro Nuno Santos traçaram a linha que irá dividir o PS. Sendo um ‘macronista’ num governo que depende da esquerda, Santos Silva não deu passos em falso. Mas, tirando o balanço que faz sobre o trabalho deste e do anterior governo, qualquer militante moderado do CDS ou do PSD subscreveria as generalidades do seu texto. O problema no rumo de Santos Silva não é estar errado, é não ser um rumo. Ele próprio resume isso no título: “Ao PS cabe prosseguir o seu caminho”. Tudo vai bem. Santos Silva, como Macron e uma parte dos partidos de centro em crise, acredita que a grande clivagem de hoje é entre os que estão abertos à globalização e os que a recusam. Esta dicotomia, onde esquerda e direita já não têm lugar, enfia-o no mesmo campo que qualquer neoliberal. E deixa-o a falar para os vencedores deste tempo. Os que acham que tudo vai bem. E a lamentar o crescimento dos populistas que, como explica Pedro Nuno Santos, transformam a dicotomia entre sociedades “abertas” e “fechadas” num confronto entre elites e povo, em que eles obviamente representam o povo. Ao dirigir-se apenas à classe média, tendo o voto dos trabalhadores excluídos como garantido, a social-democracia destrói a aliança social de que ela e o Estado social dependem. Foi isso que fez Blair, a que Thatcher chamou a sua principal vitória, e Schröder, prelúdio tragicamente otimista de Angela Merkel.

A ausência de extrema-direita e o entendimento momentâneo à esquerda levam os socialistas a acreditar que só há hecatombes políticas lá fora. Como explicou Marcelo, fazem mal em não se prevenirem. O PS é um dos poucos partidos socialistas da Europa acima dos 20%. Mas basta uma crise na economia, dois Pinhos e um Sócrates para se juntarem ao grupo. É no debate entre Silva e Santos que está a resposta às angústias socialistas. Escolham um rumo que dê sentido à ação política, devolvendo à social-democracia a capacidade de propor à maioria a aspiração de novas formas de vida partilhada. É aí que está a resposta à crise sistémica que, mais cedo ou mais tarde, chegará cá. E quando chegar, um caso como o de Sócrates será mortal para o PS. Muito mais do que para a direita, que pelo menos tem um discurso claro e seu.