A questão eleitoral

(César Príncipe, in Resistir, 11/01/2022)

Por estes dias, o design das promessas e das invectivas ocupa os placards. Portugal está pontuado de manchas gráficas e rostos ao sol, ao vento, à chuva. E por out-doors e écrans desfilam gentes de uma só cara e gentes descaradas. Os principais destinatários, milhões de vítimas da pobreza envergonhada, consequência da riqueza desavergonhada, voltarão a validar os representantes dos SDT/Senhores Disto Tudo. Não admira a mecânica da alternância. Assegura a pax das corporações. Daí que as indústrias da propaganda estejam repletas de sabonetes encefálicos. Os jornais são detergentes de antiqua geração. Operam no sector recuado. Mas também fornecem produtos on-line. As televisões e as secções de despejos net executam o labor principal. A generalidade promove coros para cantar as Janeiras:   Povo que Lavas na Costa/Povo que Lavas no Rio.

Sempre votei com capacete sanitário.

Quando não havia eleições minimamente livres, lutei à Esquerda com as armas que tinha na mão. E no próximo dia 30 continuarei a exercer à Esquerda o direito electivo que, no campo das oportunidades e capacidades, também ajudei a conquistar e a consagrar. Como tantos, tantos cidadãos. Entremos no estudo de caso, como é do jargão académico. Sem carácter provocatório (conto com resilientes socialistas e até sociais-democratas no álbum pessoal dos dilectos), lanço um apelo de última hora: salvemos o PS, o que se revê na Letra e no Espírito da Constituição e leva a sério o punho e a rosa. Tenho por virtuoso que o PS está a pedir um choque crítico que esconjure maiorias com a faca & o queijo, facilitadoras dos banquetes do regime. Nesta encruzilhada, seria útil que o grosso dos votos do PSD se concentrasse no PS e que o grosso dos votos do PS se inclinasse para a Esquerda. Ou será que os puros-sangue da social-democracia, PS e PSD, estarão a preparar as hostes para uma ainda mais fértil união de facto? Realmente têm sido regulares os actos legislativos de relevo, ensaiados nos passos perdidos e finalizados nas bancadas do BCI/Bloco Central de Interesses. Desde há muito que se podem observar as estreitas ligações do casal. PS e PSD e à trois (com o CDS) & Etc. sempre mantiveram uma geringonça paralela. Bastará rastrear as votações dos diplomas da AR. Entre tantas matérias de consenso, o PSD até sufragou um Orçamento Suplementar do AES/Actual Executivo Socialista.

Os recuerdos nupciais ganham pertinência.

De facto, há união carnal (pelo menos, frequentes toques de cotovelo) e alarde nos princípios: diversas figuras do PS, com lugar no cadeiral mediático, têm confessado e vincado a sua genuína matriz social-democrata. O próprio Secretário-Geral e Primeiro-Ministro não vacilou: sou social-democrata. Ele sabe que os Mercados gostam desta música e provavelmente registaram para memória futura a entrevista do Premier no Porto Canal. De resto, desde a Europa Connosco que o PS se distanciou do povo é quem mais ordena e demais pregões libertários e igualitários. Pela voz do Pai da Democracia, anunciou, sem auscultação dos porta-bandeiras nem convocação dos concílios, o engavetamento do Socialismo, cuja via original continua inscrita no BLF/Bronze da Lei Fundamental. Mas alguns partidos não folheiam a CRP/Constituição da República Portuguesa para a cumprir e a fazer cumprir mas para a ir premeditadamernte, ocasionalmente, cirurgicamente revendo, adulterando, violando, socavando.

Esvaziando-a de Povo e Soberania.

Já no que respeita à definição de fronteiras ou linhas vermelhas entre projectos que vingaram nos terrenos da Esquerda, prezaria uma CDU em crescendo nas sondagens do mérito e do reconhecimento. As razões são históricas e alicerçadas na coerência da doutrina, na eficácia da acção, na lealdade da palavra, na defesa dos deserdados. Em última instância, esta imaginária viragem buscaria imunizar o PS do acosso da Direita que se reclama social-democrática e da novíssima ala liberal e da restauradíssima ala cazal-ribeiro. Assim, o PS confiaria o acervo dos seus boletins à Esquerda Parlamentar e Social. Nem que fosse a título provisório. Eis a questão: e se começássemos pela CDU, presenteando-a com um expressivo contingente de eleitorado socialista? Na verdade, nos alvores da Revolução, o PS inflamou o Palácio de Cristal, Porto: Partido Socialista, Partido Marxista. Parecia que não andava longe de uma Front de Gauche. O próprio Sá Carneiro/PPD admitia não lhe repugnar inspirar-se nalgumas passagens da cartilha de Karl, o Marx.

Ocorrem-me remotos entusiasmos.

Sim, Senhor Primeiro-Ministro, quem proporcionou a vitória de Mário Soares nas eleições presidenciais? O PCP. Força nuclear da CDU. Sim, Senhor Primeiro-Ministro, quem possibilitou que Jorge Sampaio assumisse o leme da Câmara de Lisboa e desembarcasse no Palácio de Belém? O PCP. Sim, Senhor Primeiro-Ministro, quem viabilizou a governação da Câmara de Lisboa de João Soares? O PCP.

Sim, Senhor Primeiro-Ministro, quem o sentou na Presidência da Câmara de Lisboa e lhe indicou o caminho do Palácio de São Bento? O PCP. E por aí adiante, pelas estradas da convergência e da divergência. Muitas dívidas o PS contraiu com o PCP, adiando o pagamento durante décadas. De maneira que, Senhor Primeiro-Ministro, honre a Memória de Orlando da Costa, notável escritor, antifascista inabalável e seu pai:   ponha a cruzinha na CDU.

Dá sorte.

10/Janeiro/2022

[*] Escritor.


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João Ferreira, líder para um PCP mudado

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 29/09/2021)

Daniel Oliveira

Desde o início da “geringonça”, os comunistas não tiveram vitórias eleitorais nacionais. Não acho que a perda de influência seja consequência da relação com o PS, mas até mais o oposto – o PCP sentiu que a previsível perda de influência tinha de ser compensada nas instituições. Não tiveram uma vitória nas presidenciais em que apresentaram Edgar Silva ou nas que apresentaram João Ferreira. Não a tiveram nas últimas europeias, com João Ferreira. Não a tiveram nas últimas legislativas. E não a tiveram nas autárquicas de 2017, em que perderam dez câmaras, entre elas Almada. E voltaram a não a ter no último domingo, em que ficaram com menos seis câmaras, passando de 24 para 19. Perderam Alvito, Vila Viçosa, Alpiarça e Loures, que era fundamental. E perderam Moita, Mora e Montemor-o-Novo, nas suas mãos desde 1976. Resta-lhes, de relevante, Évora, Setúbal e Seixal. E Évora foi por menos de 300 votos.

Antes que saltem em cima de uma campa inexistente, o PCP continua a ser a única força autárquica fora do centrão. O Chega, que em estilo fanfarrão chegou a dizer que sonhava com um lugar no pódio autárquico, teve metade dos seus votos e percentagem (com outros é difícil medir-se porque participam em coligações ou apoiam listas de cidadãos em concelhos bastante populosos). E ficou claro que não há qualquer relação entre o voto comunista e o crescimento do Chega no Alentejo. Basta dizer que uma das melhores votações de Ventura nas Presidenciais foi em Elvas (teve quase 10% nestas autárquicas), onde o PCP vale menos de 4% (e valia 3% nas anteriores).

Mas se querem prova ainda mais evidente da mentira construída para poupar a direita tradicional, vão ver os resultados de Moura, onde o Chega apostou tudo para roubar voto comunista: para a Câmara, a extrema-direita cresce às custas do PS e da direita, enquanto o PCP até cresce na votação. Para a Assembleia Municipal, a CDU é a que menos cai. No Alentejo, o Chega cresce onde há comunidades ciganas. E, nesses casos, tira votos a quem os tiver, sejam comunistas, socialistas ou de direita. Mas os comunistas até são os que melhor aguentam.

Mas o PCP é uma potência autárquica que, lentamente, vai sendo expulsa da cintura de Lisboa. Uma cintura que deixou de ser chamada “industrial”, porque já não o é. E um partido comunista rural ou de cidades médias, afastado das zonas tradicionalmente industriais, não é um Partido Comunista. Perdendo grandes câmaras, os comunistas perdem a estrutura que lhes sobra quando os sindicatos estão a definhar. E isso retira-lhes implantação, quadros e funcionários.

A análise da política mais imediata olha para esta decadência autárquica como um qualquer castigo pelo apoio dado ao governo do PS. Se o PCP fizesse cair o Governo duvido que o resultado fosse melhor. Acho que até seria pior. O PCP está a perder votos para o PS. E está a perder votos porque, num país que se desindustrializou, um partido com as suas características estaria condenado a perder força.

E num Alentejo onde cada vez há menos operários agrícolas e cada vez mais trabalhadores de serviços, também. Por isso a conversa do “Alentejo comunista” para sublinhar cada derrota ou transferência de voto é tão absurda. O Alentejo é um bastião socialista há algum tempo. No caso da península de Setúbal e alguns concelhos da margem norte do Tejo, assistimos a uma alteração demográfica e social profunda – com a ida da classe média baixa de Lisboa para esses concelhos –, que vai fazendo o seu estrago político lento, continuado e provavelmente inexorável.

Tudo isto acontece ao mesmo tempo que João Ferreira, o mais preparado dos quadros do PCP, teve um bom resultado em Lisboa, reforçando a votação da CDU em 1400 votos, em contraciclo com a esquerda em Lisboa e com os comunistas no país. Uma das poucas vitórias com relevo que os comunistas tiveram no último domingo. E uma vitória fundamental. Não por causa da autarquia, onde a direita governará agora e o PCP manteve os mesmos dois vereadores. Mas por causa do candidato, que à terceira eleição seguida – europeias, presidenciais e autárquicas – teve finalmente o resultado que o coloca em condições de o partido avançar com o seu nome para a liderança.

João Ferreira tem, no entanto, as características que sublinham o que está a acontecer ao PCP. Biólogo, intelectual, sem história no movimento sindical (foi fundador da ABIC, associação de bolseiros), sem relevância no aparelho do partido e mais ideológico (o que não quer dizer mais ortodoxo) do que os seus antecessores, tem o perfil consentâneo com uma mudança na natureza do PCP: um partido mais doutrinário, com menor implantação social e sindical. O que nunca o impedirá de ser taticamente pragmático. Até o poderá a obrigar a sê-lo, por depender mais das instituições de representação.

Se há coisa que estas eleições deixam claro é que João Ferreira tem mesmo de passar a ser o líder do PCP. E que, queira ou não, terá a função de fazer corresponder o partido à realidade que ele cada vez mais terá de representar: um país sem proletários, empobrecido, de precários e de serviços. Aquilo que o BE quis e nunca conseguiu.


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Lenine e nós

(Boaventura Sousa Santos, in Público, 07/12/2020)

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Durante o período de discussão e votação do orçamento voltei a ler uma das obras de Lenine, A Doença infantil do “esquerdismo” no comunismo, escrita há precisamente cem anos. É uma obra datada que reflecte tempos bem diferentes dos nossos e luta por uma sociedade mais justa em que não nos revemos hoje. Mas, apesar disto, tem uma actualidade flagrante quando observamos o comportamento dos partidos de esquerda no período mais recente. Lenine escreveu este texto em vésperas do II Congresso da Internacional Comunista com o objectivo de chamar a atenção para o que designava como desvios esquerdistas por parte dos partidos revolucionários ocidentais. Esses desvios consistiam na recusa destes partidos em participar nas lutas sindicais e nos parlamentos, por considerarem tratar-se de formas caducas e atrasadas de actuação política, e na recusa de compromissos com partidos socialistas ou burgueses por verem nisso uma traição aos objectivos revolucionários da classe operária.

Como é fácil de ver, nada disto está na agenda política dos nossos dias. Apesar disso, o texto de Lenine pode ser-nos muito útil para entender as negociações e os compromissos que tiveram ou não tiveram lugar durante as recentes discussões do orçamento 2021 e para avaliar as consequências que podem daí advir. Impressiona neste texto o profundo conhecimento das dinâmicas sociais, a grande lucidez sobre prioridades e processos, o enorme pragmatismo com que se deve fazer avançar as lutas (considerando que terão avanços e recuos) e como se deve avaliar os erros a que todas as organizações políticas estão sujeitas.

Uma leitura atenta deste texto mostra, talvez sem surpresa, que o PCP segue com muito atenção as advertências e análises de Lenine, enquanto o BE as ignora ou recusa levianamente. Se dermos a Lenine o crédito de estar certo, os dois partidos vão ter trajectórias muito distintas nos tempos mais próximos. Para a maioria dos cidadãos, que não pertencem nem a um nem a outro partido, o que importa saber é quais serão as consequências disso para o país no seu conjunto.

Compromissos e compromissos. Usando a metáfora do assalto, Lenine distingue “o homem que deu aos bandidos o dinheiro e as armas para diminuir o mal causado pelos bandidos e facilitar a captura e o fuzilamento dos bandidos, do homem que dá aos bandidos o dinheiro e as armas para participar na partilha do saque”. Ou seja, Lenine distingue entre compromissos que evitam um mal menor (que ele recomenda sempre que necessário) e compromissos que implicam rendição (que ele condena em todas as situações). Tudo leva a crer que a decisão do PCP de viabilizar o orçamento foi orientada pela ideia do compromisso do primeiro tipo, e a posição contrária do BE, pela do segundo tipo. Na análise que se segue procuro mostrar que o PCP tomou a melhor decisão, quer para o partido, quer para o país.

O desejo e a realidade. Diz Lenine, “os ‘esquerdas’ da Alemanha tomaram o seu desejo, a sua atitude político-ideológica, por realidade”; e acrescenta, pedagogicamente, “tendes a obrigação de acompanhar com sensatez o estado real da consciência… precisamente de toda a massa trabalhadora (e não só dos seus elementos mais avançados)”. As sondagens de opinião sempre disseram que os eleitores do BE (como certamente também os do PCP) queriam que o BE fosse parte da solução e não parte da crise. A liderança decidiu em sentido contrário, e isolou-se. Por outro lado, com pouco conhecimento sociológico, chegou a pensar que era útil uma oposição de esquerda. Esqueceu-se que foi assim que pensaram as esquerdas do Brasil nos protestos de 2013. Nos dias subsequentes, os big data das redes sociais mostravam que a direita e a extrema-direita se tinham apropriado da mensagem. A confusão do desejo com a realidade leva a não valorar o contexto de ascensão do conservadorismo e do reaccionarismo em que nos encontramos.

Alianças e oposição. Diz Lenine “há que aproveitar qualquer possibilidade, mesmo a mais pequena, de conseguir um aliado de massas, ainda que temporário vacilante, instável, pouco seguro e condicional… com os mencheviques estivemos formalmente vários anos sem nunca interromper a luta ideológica”. Ao contrário do que dizem os comentaristas, a “geringonça” foi modelar neste aspecto de promover alianças pragmáticas e eficazes, precisamente por serem limitadas. O PCP, mais uma vez, leu melhor a situação do que o BE e, por isso, ao contrário deste, pode ser simultaneamente oposição e imprescindível.

Cometer erros, perseverar no erro. Diz Lenine: “de um pequeno erro se pode sempre fazer um erro monstruosamente grande, se se insiste no erro, se se o fundamenta aprofundadamente, se se o ‘leva até ao fim’.” E, mais adiante, sublinha que “reconhecer abertamente o erro, pôr a descoberto as suas causas, analisar a situação que o engendrou e discutir atentamente os meios de o corrigir, isto é o indício de um partido sério, o cumprimento das suas obrigações”.

O que está em jogo é o aprofundamento da crise política que as forças políticas de direita tanto querem porque sabem que vão ganhar com ela. E querem a crise tanto mais avidamente quanto sabem que o que verdadeiramente conta não é o orçamento 2021, mas os dinheiros europeus no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (2021-2026). Se conseguirem os seus objectivos, serão elas, mais uma vez, e tal como no tempo Cavaco Silva, a gerir os dinheiros da abundância, do desperdício e da corrupção. Em suma, a gestão do atraso a que pela segunda vez o país será condenado.

À luz do que está em jogo, o PCP não cometeu agora um erro, mas pode vir a cometer no futuro. Pode, por exemplo, trocar um mal menor (talvez as eleições autárquicas) por um mal maior (eleições gerais antecipadas). Se tal acontecer, terá lido mal as possíveis consequências do crescimento da ideologia anti-comunista. Essa ideologia não se circunscreve aos partidos de direita e está bem presente em toda a opinião publicada nos media. É por isso que, embora o peso eleitoral do PCP oscile como o de qualquer outro partido, os comentaristas não se cansam de falar do “declínio inexorável” do partido, e falam do seu envelhecimento fatal apesar de a militância ter vindo a rejuvenescer-se.

Por sua vez, o erro do BE, se não foi pequeno, pode ainda tornar-se “monstruosamente grande” (a vitória da direita em eleições antecipadas) se nele perseverar. Se tal acontecer, pagará um preço alto, sobretudo tendo em conta que o seu eleitorado é oscilante. Muitos se perguntarão: se o partido não foi útil para ajudar a enfrentar uma gravíssima crise sanitária e, ainda por cima, contribuiu para cairmos nas mãos de uma direita revanchista, para quê votar nele? Marisa Matias pode, assim, transformar-se num cordeiro do sacrifício. Imerecidamente, dado o seu notável talento político e a sua larga experiência de compromissos no Parlamento Europeu.