Menos dramatização e mais soluções

(José Soeiro, in Expresso Diário, 27/11/2020)

José Soeiro

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Foi António Costa quem afirmou no parlamento, em maio, que não entraria mais dinheiro no Novo Banco sem uma auditoria que permitisse conhecermos as contas e os prováveis abusos da Lone Star, o fundo abutre que detém a maioria do banco. Essa declaração foi, contudo, atropelada pelo ex-ministro Mário Centeno que, tendo a transferência orçamentada, passou o cheque sem esperar pela auditoria e sem dar cavaco ao Primeiro-Ministro. Na altura, o Presidente da República criticou o gesto.

É, pois, uma questão de bom senso e responsabilidade impedir que mais 478 milhões caiam no Novo Banco sem se apurar os eventuais abusos da Lone Star. O Novo Banco ainda não fechou contas, ainda não apurou prejuízos, nem sequer fez o pedido de capital e até é previsível que venha a pedir mais que os 478 milhões. Quem defendeu que não podia haver novas transferências sem auditoria, pretendia agora dispensar a análise do Tribunal de Contas antes de garantir uma nova injeção? Em nome de quê?

O Governo sempre soube que quer o Bloco quer o PCP estavam contra o contrato de venda à Lone Star, mas sempre recusou negociar com a Esquerda sobre o sistema financeiro. Mas o ponto já é outro: a Lone Star não tem obrigações para cumprir? Pode desfalcar o banco, vender património a preço de saldo (provavelmente a entidades ligadas a si própria) e tapar os seus buracos com as injeções do Fundo de Resolução? Em que planeta é que isto é defender o interesse público e a posição do Estado?

A dramatização ensaiada por dirigentes do Partido Socialista e do Governo – uma decisão “pela calada da noite”, disse um deputado de uma reunião do Parlamento em que ele próprio participou, “uma bomba atómica”, – é artificial, mas não deixa de colocar os socialistas no papel de porta-vozes dos interesses do fundo abutre. Até responsáveis da banca privada manifestam a sua “simpatia pela decisão do Parlamento de pedir maior exigência e transparência nas decisões do Novo Banco com impacto no Fundo de Resolução”, sublinhando que ela “pode ser vista como uma oportunidade para as autoridades subirem a fasquia em termos de exigências futuras ao Novo Banco.”

O que está em causa com a decisão tomada ontem não é o contrato com a Lone Star (por demais ruinoso!), nem sequer o mau acordo com a Comissão Europeia. A garantia do Estado está dada e mantém-se. Só que é no momento de fechar as contas que se decide a injeção e, até lá, o Novo Banco tem que provar que não está a abusar do contrato. Se o Estado comprometesse desde já recursos públicos, sem conhecer a auditoria e sem ter a certeza de que não há abuso, então as auditorias e os inquéritos seriam mera cortina de fumo inconsequente, manobra de diversão destinada a entreter o pagode enquanto os cheques continuariam a ser passados sem contrapartidas.

Quando, em 2019, o PS recusou fazer um acordo com a Esquerda, tomou a decisão de navegar à vista, como se tivesse uma maioria absoluta. A estratégia anunciada era negociar ora com a Direita (como ocorreu com a descentralização, os grandes investimentos, o fim dos debates quinzenais ou a dificultação do direito de petição e de iniciativa legislativa popular), ora com a Esquerda (discutindo essencialmente medidas sociais transitórias), sem qualquer acordo consistente que evitasse a roleta russa orçamental.

Ora, sem maioria absoluta à vista e perante a reorientação do PSD (em viragem para a aliança com a extrema-direita), o PS, se quiser construir uma solução sólida de maioria, necessita de negociar a sério com a Esquerda. Para tanto, não pode limitar-se a algumas “aspirinas sociais” temporárias debatidas em clima de chantagem, mas tem de construir uma resposta a sério à crise instalada e acordar um projeto para o país, capaz de reequilibrar as relações de trabalho, transformar a proteção social, reconstruir os serviços públicos, apostar num investimento que reoriente a nossa economia e substitua o seu padrão de precariedade. Esse é o debate que conta e que vale a pena fazer.


A hora das verdades

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 19/09/2020)

1 Agora, que a segunda vaga ou coisa semelhante já começou a abater-se sobre nós, vem aí o grande teste à capacidade de resistência de todos e, em particular, dos serviços de Saúde. Independentemente de não parecer haver ainda uma estratégia clara e preparada para fazer frente a este de há muito esperado novo assalto do coronavírus — e cujo planeamento cabe ao Ministério e à DGS —, começa também a perceber-se que há hospitais, centros de saúde e lares que se estão a preparar por si e outros que estão sentados à espera de receber instruções. É claro que os primeiros se vão aguentar melhor, pois, como canta o Chico Buarque, está provado que quem espera nunca alcança.

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2 E quem, como eu, contestou a realização da Festa do “Avante!”, embora em versão menor, nas circunstâncias actuais, não pode deixar de se espantar revoltadamente com o desplante com que, pela calada da imprensa e de todos, 50 mil peregrinos rumaram a Fátima em 13 de Setembro. E, se isto foi assim numa data que não tem tradição de multidões em Fátima, é de esperar semelhante ou pior a 13 de Outubro, data com abundante tradição de multidões. Eu sei que entre todos os poderes se cozinhou uma lei de excepção à medida dos interesses do PCP e da Igreja Católica, de forma a deixar de fora as respectivas celebrações litúrgicas. Mas há que ter algum respeito por todos nós, todos os outros que acreditam mais na ciência do que na fé e a quem todos os dias é repetido que depende do comportamento colectivo a salvaguarda de todos. Ouvir a directora-geral da Saúde dizer simplesmente “não creio” e “não é expectável” que, nestas circunstâncias, se voltem a reunir 50 mil pessoas em Fátima só pode ser um acto de fé peregrina. Anda a polícia a dispersar ajuntamentos de 15 jovens e depois vemos uma multidão de dezenas de milhares a acotovelarem-se, abençoados por uma lei de excepção e protegidos pelo temor reverencial dos políticos!

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

3 De visita ao Parlamento, o presidente do Novo Banco logo seguido pelo seu financiador encartado — o presidente do Fundo de Resolução — desembaraçaram-se, sem problemas de maior, das perguntas que uns impreparados deputados lhes quiseram fazer. É sabido, ou devia ser sabido de há muito, que os banqueiros falam uma língua diferente, que requer intérpretes qualificados e isentos e algum conhecimento daquele mundo opaco em que é tão fácil fazer passar o inexplicável pela coisa mais natural do mundo — do mundo deles. Assim, enquanto António Ramalho se limitou a justificar os inabaláveis prejuízos anuais do banco — cuja conta final há-de reverter sobre os contribuintes — com a descoberta de que os activos do “banco bom”, afinal, não valiam nada e por isso é que têm vindo a ser vendidos a preços de estarrecer, já Luís Máximo dos Santos, o supervisor das operações, declarou não ser o Sherlock Holmes para saber a quem são vendidos os activos do NB, nomeadamente, se a partes relacionadas com os seus próprios accionistas — questão esta que, como é fácil de perceber, está longe de ser despicienda. E, ao contrário do que o próprio NB faz com os seus activos, livrando-se deles a qualquer preço, numa estratégia definida como de cut loss ou “limpeza”, já ele recomenda vivamente que o Estado não se atreva a fazer o mesmo com o NB, antes pelo contrário — que continue a pagar tudo até ao fim.

Após dois dias de “esclarecimentos”, eu, que não percebo nada de banca, juntei apenas mais uma perplexidade à minha ignorância: então o NB perde dinheiro porque o património que herdou do defunto BES — casas, terrenos, fábricas — valia, afinal, muito pouco? Mas é essa a actividade principal de um banco — vender património dos clientes falidos? E, quando ele acabar, viverá de quê?

4 É perfeitamente adequada e justa a proposta de Rui Rio de mudar o Tribunal Constitucional (TC) e o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) para Coimbra. Seria um passo concreto no sentido da tão falada descentralização, apoiada da boca para fora por todos. Porém, a fraqueza da proposta está na sua justificação: porque, diz ele, grande parte ou a maior parte dos juízes do TC e do STJ são de Coimbra, a “cidade dos doutores”. Logo, haveria menos um obstáculo a considerar, que seria o incómodo pessoal para os venerandos conselheiros. E, assim o justificando, Rui Rio, sem querer, põe o dedo na ferida: é aqui que reside justamente a grande resistência à descentralização administrativa do país. O que mexe o Estado português raramente são os seus interesses próprios, o interesse público que ele devia servir, mas sim os interesses particulares dos que o servem. No caso concreto, os funcionários do Estado não estão onde interessa ao Estado que eles estejam, mas onde lhes interessa a eles estar. Por isso é que, entre os muitos exemplos que se poderia arrolar, os médicos, com lugar garantido no Estado, não querem ir para o Algarve, ainda que com condições melhores do que na Grande Lisboa ou no Grande Porto e ainda que o Algarve não seja propriamente um lugar desagradável para se viver e trabalhar.

Nunca mais me esqueci de uma frase inspirada de Jorge Sampaio quando era presidente da Câmara de Lisboa e tropeçou numa discussão sobre o “centralismo do Terreiro do Paço”, enfrentando os argumentos habituais: que tudo tinha de passar por Lisboa e pelo Terreiro do Paço, sede omnipresente de todo o poder, de que Lisboa não abria mão nem por nada… E Jorge Sampaio, então a contas com o desespero de não conseguir convencer nenhum ministério a desamparar a praça mais bonita de Lisboa, abriu os braços e respondeu: “Mas querem levar daqui o Terreiro do Paço? Por favor, levem-no!”

Não é só o TC e o STJ que poderiam, sem prejuízo algum do interesse público, ser deslocados de Lisboa ou outros organismos do Estado serem igualmente deslocados do Porto. Já não estamos no tempo da mala-posta ou sequer da “carreira” — embora, de facto, em termos ferroviários, ainda estejamos no dealbar do século XX, graças à grande visão estratégica de sucessivos governos e governantes. Mas temos as tais auto-estradas, a internet, as videoconferências e agora a moda do teletrabalho. Não falando de ministérios, são inúmeros os organismos do Estado que poderiam e deveriam ser deslocados para cidades de média dimensão, cidades universitárias, cidades com pólos industriais e infraestruturas capazes: secretarias de Estado, direcções-gerais, institutos, juntas, laboratórios, oficinas e por aí fora. E porque é que não são? Porque quem lá está não se quer mudar — lembrem-se da humilhantemente falhada tentativa de mudar o Infarmed de Lisboa para… o Porto. Eu sei que os funcionários têm direitos que não podem ser ignorados e que há vidas estabelecidas num local que não podem ser mudadas sem transtorno. Mas esse não é um obstáculo intransponível, há maneiras de o contornar, desde que haja vontade política de o fazer. Desde que haja verdadeira vontade de descentralizar o país — o que eu duvido.

A Administração Pública portuguesa está montada de forma em que a ascensão profissional arrasta os funcionários para onde está o poder — para Lisboa, sobretudo, e, em parte remanescente, para o Porto, com os casos à parte das administrações regionais. Para subir na pirâmide é preciso ir-se aproximando de Lisboa e do Porto — e, uma vez lá chegado, ninguém quer voltar à terrinha, nem que seja como chefe. E, para tornar o sistema inexpugnável, o mesmo esquema é reproduzido dentro da estrutura dos partidos do poder, que gerações de nomeações partidárias tornaram a espinha dorsal dos quadros superiores da Função Pública. Uns e outros confundem-se e não querem arredar o pé de onde estão. É por isso — e apenas por isso, não se iludam — que PS, PSD e PCP (que ocupa o que resta do poder do Estado) congeminaram a tal regionalização, um embuste vendido ao país como a única “descentralização” possível.

Não é verdade, é uma grossa mentira. Descentralizar é, de facto, aquilo que Rio propõe agora, embora em versão minimalista: deslocar centros de poder. E não só: como disse Mao, não basta dar uma cana de pesca a quem tem fome, é preciso também ensiná-lo a pescar. Dar força a uma região, dar-lhe futuro, é transferir para lá centros de poder e centros de criação de riqueza: empresas, universidades, centros de investigação e capital humano qualificado. Mas não é isso que os regionalistas querem fazer. O que eles querem fazer é dar ocupação aos seus quadros partidários que não encontram lugar no Terreiro do Paço ou na Avenida dos Aliados — por isso é que o mesmo Rio e Costa já trataram de escolher entre ambos os presidentes das Comissões de Coordenação Regio­nal (embrião das sonhadas regiões) que supostamente serão depois “eleitos” pelos autarcas. Eles querem dar-lhes uma legitimidade política própria e autónoma que servirá para criar problemas onde eles não existem e, a seguir, despejar-lhes sacos de dinheiro, com o qual não saberão o que fazer. Já vimos este filme no passado: acaba mal.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


O que importa

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 12/09/2020)

Miguel Sousa Tavares

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1 Confesso que ao princípio me senti atraído pela discussão pública levantada pelo pai de Famalicão e a sua “objecção de consciência” em não permitir que os filhos frequentassem a disciplina de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento. Não obstante achar chocante que um pai, actuando em nome da sua invocada consciência, fizesse pagar o preço aos filhos, optando por os fazer chumbar de ano, pareceu-me estar ali uma verdadeira questão de separação de águas ideológicas — das que vale a pena ter, e são tão raras neste tempo do extremismo e da alarvidade instantânea servida nas redes sociais. E, no meu entusiasmo, até me cheirou que pudéssemos estar perante uma manifestação de insuportável doutrinação ideológica do Estado sobre os alunos. Que ingenuidade a minha!

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Comecei a perceber do que verdadeiramente se tratava quando li a lista dos 85 cavaleiros da liberdade individual contra o abuso estatal das criancinhas: estava ali uma exemplar representação da direita católica reac­cionária no seu melhor ou no seu pior, com a inexplicável intromissão do Sérgio Sousa Pinto. Mas, embora o hábito vista tantas vezes o monge, isso, honestamente, não chegava. Havia que ver de que se queixavam eles, em concreto. Fui então consultar as 16 matérias que integram a agora famosa disciplina de Educação para a Cidadania. E, pois bem: não só todas elas são absolutamente consensuais entre gente civilizada, como todas são altamente recomendáveis dentro do sistema de ensino, no mundo que temos hoje, na juventude entregue a si mesma que temos hoje e na confusão induzida de valores que temos hoje. Mais: é preciso ser-se desonesto intelectualmente, ser-se assumidamente hipócrita ou não ter uma genuína cultura de valores democráticos (como alguns dos 85) para conseguir sustentar que os alunos são prejudicados na sua educação ou violentados na sua liberdade por abordarem aquelas matérias.

Porque não são capazes de o dizer, os 85 agarram-se a uma única das 16 matérias em questão: a educação sexual. Ó santa paciência, estamos em pleno século XXI e aquelas cabeças agem como se estivéssemos num Estado islâmico ou no saudoso Portugal de há cem anos! Eles acham que os seus filhos não sabem que existem gays e lésbicas, que não têm de saber que existem métodos contraceptivos, que há diferenças entre homens e mulheres, mas também há direito à igualdade, que há relações amorosas diversas e famílias disfuncionais que são tão dignas de respeito como as convencionais, e todo um mar de coisas misteriosas naquelas idades que os jovens querem saber e estes zelosos pais jamais lhes explicam porque acham que é tudo “pecado”.

E até o cardeal-patriarca, que representa a Igreja Católica portuguesa, misteriosamente poupada ao escândalo universal da pedofilia na Igreja Católica, se arrola com os demais 84, como se a Igreja, aqui ou em qualquer outro lugar do mundo, tivesse hoje qualquer autoridade moral no assunto. O que querem estes zelotas da moral — que as crianças ou os jovens aprendam educação sexual, direitos humanos, educação ambiental na escola, em debate uns com os outros e com os professores ou na solidão dos seus quartos, entregues às redes sociais e aos predadores sexuais, políticos, sociais?

Sim, porque aqui a escola faz o que os pais não fazem em casa, por muito que, indignados, venham jurar o contrário. E os poucos que o fazem, os poucos que se ocupam a sério da educação cívica e cidadã dos filhos, se verdadeiramente o fazem a sério, não têm de ter medo algum daquilo que eles aprendem na escola: podem sempre seguir o que lhes ensinam lá e podem contrariar isso pelo seu exemplo e pelas suas lições. Se a alternativa for, como alguns defendem, que esta disciplina passe a ser opcional, todos sabemos que o resultado prático é que o grosso dos alunos deixará de a frequentar. E, então, a educação cidadã, que é a base de uma sociedade saudável, ficará exclusivamente na mão dos pais. Mas se a alternativa é essa, eu, que tantas vezes critico a escola pública, digo sem hesitar: tenho muito mais medo de uma educação cidadã exclusivamente entregue aos pais do que de uma educação entregue aos pais e à escola.

2 Aos poucos, vai-se sabendo mais alguma coisa sobre o tão esperado e tão adiado relatório da Deloitte sobre o Novo Banco. Mas o que se sabe já se sabia: que houve negócios ruinosos de venda de património e que desde a sua venda à Lone Star os prejuízos do banco, com a tal “gestão segundo as melhores práticas”, bateu recordes de prejuízos — até aqui garantidos pelos contribuintes. O que falta saber é o essencial: quem foram os beneficiários da venda ruinosa do património do banco? Porque a suspeita que cresce é que, mais do que um assalto debaixo do nosso nariz, estejamos perante uma inenarrável humilhação. Alguém vem a nossa casa a pretexto de a remodelar, declara que os nossos móveis são todos uma porcaria e vende-os ao desbarato, sem nos dizer a quem, e no fim deixa-nos a casa vazia e apresenta-nos a conta da limpeza, que é muito superior ao valor dos móveis que tínhamos e deixámos de ter. E nós abanamos a cabeça, compreensivamente: “Não havia nada mais a fazer: o problema estava nos móveis.”

3 Em toda a minha vida, acho que só conheci de perto um Vicente, o Vicente Jorge Silva. O nome era raro e ele também o era. Morreu nesta madrugada de 8 de Setembro e, como tantas vezes acontece, morreu sem que eu tenha tido oportunidade de ter com ele a longa e tão desejada conversa que sempre quis ter. Porque eu tinha uma imensa reverência por ele, fruto de uma enorme admiração e de uma inconfessada ternura, somadas à gratidão que lhe devo: pela sua mão, eu fui dois anos colaborador da Revista do Expresso, que ele então dirigia, quando saí voluntariamente de uma RTP asfixian­te, e aqui, então, encontrei um abrigo para continuar a fazer jornalismo, e, mais tarde, foi ele que me foi buscar a uma obscura página da “Capital” e me fez colunista do “Público” durante dez maravilhosos anos.

Essas duas pontes de comando — a direcção da Revista do Expresso e a fundação e direcção do “Público” — foram dois momentos absolutamente marcantes na história do jornalismo português em democracia e na história da própria democracia. É muito fácil dizer mal do jornalismo que se faz em Portugal e, sem retirar validade a muitas das críticas, muita gente o diz sem fazer ideia das condições em que se trabalha. Mas onde e quando o Vicente esteve à frente do que se fazia, eu digo convictamente que o jornalismo que ele oferecia aos leitores era muito melhor do que o país que tínhamos — e em todos os aspectos. A ideia e o destemor de criar um jornal diário como o “Público”, de convencer alguém como Belmiro de Azevedo, um ex-industrial convertido ao retalho, a financiar um jornal que dificilmente deixaria de dar prejuízo, de fazer do zero um jornal simultaneamente moderno nas ideias e na imagem, mas clássico nas regras deontológicas e na independência informativa — onde o Vicente era inflexível —, foi, mais do que uma revolução, uma verdadeira revelação para os leitores e uma imensa luz de esperança para todos os jornalistas. O “Público”, do Vicente Jorge Silva, estabeleceu um padrão — que, com a sua saída, jamais foi igualado.

Uma vez, uma única vez em todos esses anos em que escrevi para o “Público” sob a sua direcção, ele passou-se comigo. Foi quando escrevi um texto a elogiar “O Independente”, então sob a direcção de Paulo Portas. A minha tese era que “O Independente” tinha vindo atirar pedras ao charco estagnado do politicamente correcto e o facto de o fazer assumidamente à direita era bom para o jornalismo, que parecia uma coutada da esquerda, e bom para o debate político democrático. Mas o Vicente não conseguia condescender com a quebra das regras deontológicas de que, de facto, “O Independente” fazia o pão nosso de cada edição. E, então, sem sequer me avisar, o Vicente não publicou o meu texto. Seguiu-se uma delicada e sigilosa negociação interna, mediada por um jornalista amigo de ambos. Eu não voltaria a escrever enquanto aquele texto não fosse publicado, ele não o publicaria enquanto não me descompusesse. E assim se fez: almoçámos com a indisfarçável amizade e ternura que eu sempre senti ser mútua e ser, além de todas as razões profissionais, o laço não nomeado do que, à distância, nos unia naturalmente. Então, como das infelizmente poucas vezes em que tivemos ocasião para estar juntos, o Vicente tratou-me condescendentemente, de cima para baixo, como um “mais velho”, mas com aquele seu eterno ar de gozão, de folgazão com a vida, que desmentia a sua condição de mais velho do que quer que fosse. E eu aceitei, feliz, a minha parte de rendição. Porque lhe devia bastante e porque o admirava muito: o Vicente Jorge Silva foi um príncipe do jornalismo. Que raio de vida esta em que nunca encontramos tempo, pretexto ou destemor para dizer às pessoas que verdadeiramente são importantes para nós o quanto elas são importantes e não podem morrer assim, sem mais.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia