Mãe, também quero ser você

(José Gameiro, in Expresso, 25/06/2021)

José Gameiro
José Gameiro

Não tenho quase nenhuma experiência em psiquiatria infantil. Limitei-me a fazer um estágio há muitos anos, no tempo em que tudo o que acontecia às crianças era culpa das mães. Os pais eram umas não-pessoas, que se passeavam lá por casa, sem terem nada a ver com os problemas psicológicos dos filhos. Bons tempos para os homens, que quase nunca eram “incomodados” pelos técnicos de saúde mental. Desde então muita coisa foi mudando, e a família nuclear já é vista como um todo, ainda que as mães continuem a ser, para alguns técnicos, as más da fita e, frequentemente culpabilizadas. Mas também aqui estaremos a caminho da igualdade.

Esta história surgiu no meio de uma terapia de casal, cujo pedido não tinha nada a ver com o que vos vou contar. E também não tem nada a ver com psicologia infantil, mas sim com sociologia de adultos. Um casal com alguns problemas de expressão de afetos. As queixas habituais de género. Que ele era pouco meigo, não conversava, não contava o seu dia à dia, que ela estava sempre a chateá-lo porque passava muito tempo com os amigos e não tinha paciência para as amigas dela. Nada de muito especial nem muito grave. Apenas a habitual falta de perceção masculina que os tempos mudaram e o casamento já não é para toda a vida, se não for ‘adubado’ com frequência.

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Divertidos, com muito sentido de humor, contavam histórias deliciosas dos seus encontros e desencontros, daqueles casais de quem apetece ser-se amigo e por isso tenho de ter mais cuidado com a minha neutralidade e distância. Tinham dois filhos, uma rapariga com oito anos e um rapaz com cinco. A vida profissional estava a correr-lhes bem, tinham-se mudado há pouco tempo para uma vivenda, fora de Lisboa, numa zona tida como rica. Naturalmente, os miúdos adoraram e começaram a conhecer os vizinhos. A miúda mais introvertida demorou mais tempo a criar proximidade com as famílias próximas, mas o miúdo, completamente extrovertido, ao fim de pouco tempo já era muito popular na zona.

O jardim permitia grandes futeboladas, rapidamente os amigos começaram a aparecer e a fazerem vários Benfica-Sporting em mini-infantis… Não demorou muito tempo até a bola ir para a casa ao lado, num remate mais alto, que passava por cima da sebe. Simples, trepavam ao muro e iam buscar o esférico. Assim começaram a conhecer os miúdos do lado, com idades semelhantes. Daqui até aos convites mútuos para lanchar e jogarem PlayStation foi um ápice.

Os pais iam acompanhando estas aventuras satisfeitos porque finalmente não viviam metidos num andar e as crianças tinham muito espaço e não passavam a vida a ver televisão. Foi num jantar que a mãe perguntou como se chamavam os amigos do lado. O miúdo, primeiro calou-se e depois, a medo, disse:

— Têm todos o mesmo nome.

Não pode ser, disse a mãe. Os filhos têm sempre nomes diferentes.

— É verdade, a mãe deles chama-os todos por você. Você isto, você aquilo, você venha cá, agora você pare de brincar e vá tomar banho, não seja porco…

Os pais olharam um para o outro, sem saberem o que dizer. Não era fácil explicar a uma criança de cinco anos as idiossincrasias de algumas famílias. Mas o mais difícil estava para vir e deixou-os sem resposta.

— Posso mudar de nome? Também quero ser você, como os meus amigos.


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Mãe, também quero ser você

(José Gameiro, in Expresso, 25/06/2021)

José Gameiro
José Gameiro

Não tenho quase nenhuma experiência em psiquiatria infantil. Limitei-me a fazer um estágio há muitos anos, no tempo em que tudo o que acontecia às crianças era culpa das mães. Os pais eram umas não-pessoas, que se passeavam lá por casa, sem terem nada a ver com os problemas psicológicos dos filhos. Bons tempos para os homens, que quase nunca eram “incomodados” pelos técnicos de saúde mental. Desde então muita coisa foi mudando, e a família nuclear já é vista como um todo, ainda que as mães continuem a ser, para alguns técnicos, as más da fita e, frequentemente culpabilizadas. Mas também aqui estaremos a caminho da igualdade.

Esta história surgiu no meio de uma terapia de casal, cujo pedido não tinha nada a ver com o que vos vou contar. E também não tem nada a ver com psicologia infantil, mas sim com sociologia de adultos. Um casal com alguns problemas de expressão de afetos. As queixas habituais de género. Que ele era pouco meigo, não conversava, não contava o seu dia à dia, que ela estava sempre a chateá-lo porque passava muito tempo com os amigos e não tinha paciência para as amigas dela. Nada de muito especial nem muito grave. Apenas a habitual falta de perceção masculina que os tempos mudaram e o casamento já não é para toda a vida, se não for ‘adubado’ com frequência.

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Divertidos, com muito sentido de humor, contavam histórias deliciosas dos seus encontros e desencontros, daqueles casais de quem apetece ser-se amigo e por isso tenho de ter mais cuidado com a minha neutralidade e distância. Tinham dois filhos, uma rapariga com oito anos e um rapaz com cinco. A vida profissional estava a correr-lhes bem, tinham-se mudado há pouco tempo para uma vivenda, fora de Lisboa, numa zona tida como rica. Naturalmente, os miúdos adoraram e começaram a conhecer os vizinhos. A miúda mais introvertida demorou mais tempo a criar proximidade com as famílias próximas, mas o miúdo, completamente extrovertido, ao fim de pouco tempo já era muito popular na zona.

O jardim permitia grandes futeboladas, rapidamente os amigos começaram a aparecer e a fazerem vários Benfica-Sporting em mini-infantis… Não demorou muito tempo até a bola ir para a casa ao lado, num remate mais alto, que passava por cima da sebe. Simples, trepavam ao muro e iam buscar o esférico. Assim começaram a conhecer os miúdos do lado, com idades semelhantes. Daqui até aos convites mútuos para lanchar e jogarem PlayStation foi um ápice.

Os pais iam acompanhando estas aventuras satisfeitos porque finalmente não viviam metidos num andar e as crianças tinham muito espaço e não passavam a vida a ver televisão. Foi num jantar que a mãe perguntou como se chamavam os amigos do lado. O miúdo, primeiro calou-se e depois, a medo, disse:

— Têm todos o mesmo nome.

Não pode ser, disse a mãe. Os filhos têm sempre nomes diferentes.

— É verdade, a mãe deles chama-os todos por você. Você isto, você aquilo, você venha cá, agora você pare de brincar e vá tomar banho, não seja porco…

Os pais olharam um para o outro, sem saberem o que dizer. Não era fácil explicar a uma criança de cinco anos as idiossincrasias de algumas famílias. Mas o mais difícil estava para vir e deixou-os sem resposta.

— Posso mudar de nome? Também quero ser você, como os meus amigos.


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O crescimento da má educação

(Pacheco Pereira, in Público, 26/06/2021)

Pacheco Pereira

O incremento da rudeza, brutalidade, má educação tem sem dúvida que ver com a pandemia, que põe as pessoas fora de si. Vão para a rua e olhem com atenção. Não é um espectáculo bonito.


Não sei bem como lhe chamar. “Má educação” é um termo muito ambíguo, “incivilidade” demasiado intelectual. Vou ficar-me pela “má educação”, que sempre diz mais do que incivilidade. Depois é uma matéria que é irrelevante para muita gente e demasiado importante para alguns. Há brutos e há flores de estufa. É uma matéria que não é sentida da mesma maneira quando se é mais novo ou quando se é mais velho. E é de difícil tratamento objectivo, não há um padrão que permita definir o que é “boa educação” ou “má educação”. Depois, há atitudes que para uns são condenáveis, para outros normais ou indiferentes. Há locais onde a “má educação” é a regra, como é o caso das brigas entre condutores. À segunda troca de palavras vêm os insultos mais grosseiros. Outra palavra, “grosseiro”, outra ainda “rude”, que fazem parte deste grupo de caracterizações de alguma coisa sobre a qual a maioria das pessoas tem opinião, mas que ninguém é capaz de teorizar, muito menos medir. Vicente Jorge Silva provou desta complexa confusão quando chamou a uma geração de jovens estudantes “geração rasca”, e provocou um efeito de revelação, eles eram mesmo “rascas”, ou uma caterva de críticas pelo atrevimento do julgamento.

Dito tudo isto, parece-me, pela medida mais empírica e subjectiva que se tem nestas matérias, que a má educação, agora sem aspas, está a crescer. Há cada vez mais pessoas a tentar passar à frente nas bichas de supermercado, nas filas das vacinas, nas filas para entrar em lojas ou restaurantes. Pode-se dizer que isto se passa porque há mais filas. As restrições da pandemia geraram um mundo de filas e consequente perda de tempo e isso irrita as pessoas. Por isso, as passagens à “má fila” ou as estratégias para fazer de conta que se está indevidamente à frente de alguém são cada vez mais comuns. Experimentem protestar. Das duas, uma: ou o protesto é colectivo e a fila que foi ultrapassada protesta toda em uníssono e o prevaricador é posto na ordem, ou quem protesta é olhado de alto abaixo como um excitado pelo seu direito individual à ordem de chegada.

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Reparem como num multibanco, coisa que há cada vez menos, alguém leva um monte de papéis para processar, ocupando a caixa durante muito tempo sem consideração pela fila que está atrás. Ou como quem faz cargas e descargas de forma mais caótica e fora de horas, ocupa uma fila de trânsito, reage com veemência afirmando o direito de quem “está a trabalhar” e todos os outros a preguiçar e, por isso, pode parar onde quer, e como quer e durante o tempo que quiser. Não pede desculpa, nem acelera as entregas, nada, acaba e parte para outra como se nada acontecesse. O mesmo quando um carro impede a saída de outro e o que era o obstáculo acha que não tem de se justificar e tira o veículo prevaricador com maus modos.

Já não me refiro sequer a jovens famílias que acham normal as suas crianças andarem aos encontrões e a jogar a bola com total desrespeito pelos que estão num jardim ou parque a descansar, a ler, ou simplesmente desejam estar sossegados, e no intervalo em que estão a comer, estão a jogar à mesa, os adolescentes e os adultos ao telemóvel, num espectáculo de uma peculiar sociabilidade zero. Percebe-se como isto é absolutamente normal para os pais e mães e experimentem chamar a atenção de que é suposto as suas criancinhas serem controladas para não incomodar terceiros e vão ver a fúria e os impropérios com que afirmam o seu direito a que “ninguém se meta na sua vida”.

O incremento da rudeza, brutalidade, má educação tem sem dúvida que ver com a pandemia, que põe as pessoas fora de si, obrigando-as a suportarem-se demasiado perto dentro das casas confinados. Há demasiadas desgraças, que depois vêm cá para fora. Estas atitudes comunicam com a violação das regras de saúde, com o laxismo, com a indiferença face aos outros. Nestes dias de recuo no confinamento pagamos demasiado caro esta incivilidade, esta má educação, porque ela vai direitinha ter com estes comportamentos que todos podemos observar. Os que furam as filas não mantêm qualquer regra de diferenciação social, os que deixam os pequenos selvagens à solta estão-se marimbando para usar máscara.

O problema é que a má educação é uma forma de agressividade cujos alvos são os mais fracos, os mais bem-educados, os mais velhos, os que têm menos defesas. Vão para a rua e olhem com atenção. Não é um espectáculo bonito.


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