“NÃO há machado que corte /a raiz ao pensamento. / Não há morte para o vento, / não há morte.” Isto é o que Carlos de Oliveira pensava e Fernando Lopes Graça musicou. Manuel Freire e muitos milhares de portugueses ainda não desistiram de o cantar.
Todos tinham razão e eu – às vezes, reticente – dei esta manhã o braço a torcer quando saí de casa para ir comprar o jornal.
O vento, de facto, consegue derrubar uma árvore, como fez esta noite a 200 metros da minha porta, mas, por mais que o tenha tentado, foi-lhe impossível cortar a raiz a um aloendro – se é que é mesmo um aloendro – que não conseguiu resistir à fúria salazarista do mítico Bóreas.
Também é verdade que não há pensamento sem raízes e que só por isso é que não morre, como se viu numa certa madrugada de 1974. Só que as raízes podem morrer, se não as nutrirmos com os fertilizantes de que o pensamento dispõe.
Acontece que bastaram algumas horas para que o Equinócio de Inverno desse esta noite um primeiro sinal do que traz no alforge, ao deitar por terra um ser vegetal que também é mais de quebrar que de torcer e, assim, não logrou manter-se inseparável da sua raiz, como alguns humanos que eu conheci.
A verdade que em 1943, um mês depois do meu nascimento, era institucionalizada a República Social Italiana, os seja, o fascismo, tal como Salazar o apreciava, a pontos de ter uma fotografia autografada de Mussolini na sua mesa de trabalho. Uma imagem arrogante a preto e branco que todos os dias contemplava e reverenciava.
Mas nem tudo é feio neste dia, porque hoje o genial saxofonista e compositor Jonh Coltrane, se não tivesse morrido em 1967, faria 94 anos e um seu grande amigo – que nos deixou em 2004 e era também músico de excelência, o cantor e pianista Ray Charles, apesar de invisual – também não deixaria de celebrar, comigo e com o resto do mundo, o seu 91.º aniversário. E talvez até cantasse qualquer coisa que confirmasse a fortíssima ideia de que “não há machado que corte a raiz ao pensamento.”
Venho cá porque a minha mulher saiu de casa sem uma explicação e por mais que eu insista, diz-me que eu sei muito bem o que fiz. E não sei. Pode-me ajudar?”
Pensei, mais um que utiliza a velha regra, negar, negar sempre.
“Posso-lhe contar a história desde o início? Sempre trabalhei muito, comecei cedo, montei o meu negócio. Ao princípio pequenos bares com amigos, depois lancei-me na restauração. Veio a pandemia, fecharam-me tudo, umas pequenas ajudas para mandar os empregados para casa e nada mais. Sabe, não sou funcionário público, não recebo o ordenado certinho ao fim do mês, trabalho doze horas por dia e fiquei cheio de dívidas. Tive de puxar pela cabeça e ter imaginação para novos negócios. Por acaso vi umas fotos de uma tribo do Quénia e da Tanzânia, os massais. Porque não tentar lançar alguma roupa inspirada pelas suas magníficas cores? Vim a saber que outros já o tinham feito, mas sem respeitar os direitos que eles devem ter, quando se usa a sua marca. Através de um conhecido que vive lá, consegui o contacto de um homem que fazia comércio com eles. Falei com a minha mulher e arrancámos para o Quénia. Para a viagem não ser uma seca para ela, comprei um safari antes das conversas comerciais. Não me lembro de ter feito uma viagem tão empolgante. Mal sabia eu que se calhar ia ser a última. Andámos quatro dias na savana. Vimos tudo. Leões a comer e a dormir. Chitas a caçar e a matar para comerem. Veja bem que até assistimos a um parto de um veado, é impressionante dez minutos depois está a mamar, de pé.”
“No último dia, o chefe da tribo massai com quem ia negociar veio ter connosco ao lodge. Durante o jantar que lhe oferecemos, explicou-nos que teria de ir à sua aldeia para conhecer a sua família. Confesso-lhe que fiquei assustado, porque vivem em casas muito primitivas e a ida implicava lá dormir uma noite. A minha mulher disse que não havia problema, seria uma experiência. O homem ficou a olhar para mim com um ar atónito e, timidamente, explicou-nos que eu deveria ir sozinho, na sua cultura as mulheres não discutiam negócios e não era bem visto receber para jantar e dormir uma senhora não massai. Essa noite correu muito mal. Ameaçou-me, se fosse, o nosso casamento acabava, nunca mais me via. Por muito que lhe explicasse que nada daquilo fazia sentido, era só uma noite fora, precisávamos de fazer aquele negócio, não cedeu. Confesso que fiquei irritado, tudo me pareceu uma crise de mimo. Disse-me apenas, estás avisado, farás o que entenderes. Ainda lhe tentei telefonar quando lá estava, mas não tinha rede. Quando voltei na manhã seguinte já se tinha ido embora para Nairobi, apanhar um avião. Até hoje, não me deu nenhuma explicação, mas eu não fiz nada de mal.”
Parecia uma criança, que leva um castigo sem perceber porquê. O meu papel era explicar-lhe que o castigo, apesar de ser manifestamente exagerado, tinha um sentido. Perguntei-lhe. “Desculpe-me a pergunta, qual é a profissão da sua mulher?”
Olhou para mim como quem diz, o que é que a bota tem a ver com a perdigota: “É antropóloga de formação, mas nos últimos anos trabalha comigo. Sabe como é, este país não é muito dado às humanidades e ela ficou sem trabalho.” “Desculpe-me outra pergunta. Passou-se alguma coisa de inesperado nessa noite?” Olhou para mim com um ar comprometido: “O senhor doutor parece que é bruxo, mas a minha mulher não teve forma de saber. Estava frio e uma das mulheres do chefe da tribo, por acaso a mais nova, veio aquecer-me. Disse-me que fazia parte da cultura de boas-vindas deles. Como queria fazer o negócio, aceitei.”
Estive para lhe dizer que para mim não tinha de inventar desculpas, mas não disse. “Você cometeu dois erros. O primeiro foi esquecer-se que a sua mulher é antropóloga e que na sua formação estudou os massais, como tribo que ainda conserva comportamentos que para nós são inaceitáveis. O segundo foi negar a evidência. Nem sempre o negar é uma boa estratégia. Estude um pouco e defenda a teoria de que não cometeu uma infidelidade, apenas foi bem educado. Boa sorte.
“O que todos queremos é algo que é impossível de atingir, a felicidade ou o que entendemos por felicidade, por tranquilidade, satisfação ou por paz de espírito. A tragédia humana é isso. Principalmente se não somos ‘os pobres de espírito’.
O pensar, a inteligência, não nos facilita a vida. Vivemos presos pelos passos que demos no início da nossa vida de seres autónomos, pensando que seriam os passos do caminho que queríamos em certa altura da vida. Esse caminho mostrou-nos que havia vários percursos, mas que infelizmente estávamos agarrados ao ponto de partida. O não estarmos sós na viagem, a falta de liberdade, os desentendimentos, as desilusões fizeram perder o encanto. Os desvios deixam marcas. A paragem é inevitável.
E depois? O que fazer? A sociedade dita regras, a educação e a religião reprimiram uma sensibilidade que se revelou doentia. O cansaço é agora demasiado. O que suportava a inteireza física e psíquica levou um rombo enorme. Não há ligação, interesses comuns, e o trabalho e o tempo não permitem as fugas que aliviam o contacto excessivo. A família levantou asas e seguiu os seus caminhos e deixou-nos sós na viagem. O grito é interno, sofrido, amargurado. O consolo é mínimo porque o hábito é terrível, e terrível é a aceitação de que o sofrimento redime e que nele encontramos a salvação eterna.
Mas que salvação? Sabemos que só a morte nos liberta. Que contrassenso é a vida! Vivemos para morrer. O choro na nascença é porque sabemos que a vida não vai ser fácil. Deixámos a proteção uterina onde em solidão a vida era agradável. Nascidos de um ato de prazer somos lançados para um percurso que não escolhemos. A gruta, a caverna é o lugar seguro. A procura da luz é um caminho falso. O Jardim das delícias enganoso e o paraíso não existe e a crónica não revela a solução.”
Quando li este texto, que me foi enviado, a minha reação imediata foi, felizmente que as novas gerações já têm a possibilidade de romperem uma relação e tentarem partir para outra. Este desencanto e este sofrimento prolongados são menos aceites pelos casais. A idade média dos divórcios é de 45 anos e dos casamentos de cerca de 30. Apesar de muitas uniões não serem formalizadas, podemos ter uma ideia do tempo médio que os casais que se divorciam, “aguentam”, até se separarem. Cerca de 15 anos. Mas seria possível, em alguns casos, evitar este desenlace?
Os casais que perduram no tempo têm uma capacidade de “negociação” das suas individualidades, que vai ajustando o que é mais difícil que o amor, a possibilidade de o viver com satisfação mútua. Quanto mais cedo esta começar melhor será o futuro da relação. Mas isto resolve tudo? Claro que não. Mas os maiores riscos para a conjugalidade vêm de dentro. Quando alguém se separa, a primeira pergunta que se faz é, há uma terceira pessoa? Talvez porque assim a história será mais picante. Mas convém saber que as terceiras pessoas podem entrar em relações muito satisfatórias. Há muitas ideias falsas sobre os casais felizes, uma das mais propagadas é que são imunes às tentações…
Talvez, em termos de relação amorosa/conjugal, a grande diferença das novas gerações seja o não suportarem a infelicidade relacional, romperem e tentarem de novo. Pensar que isto é mau ou bom não faz sentido, é o que é. Mas ninguém se separa com anestesia geral, há sempre dor.