A antropóloga

(José Gameiro, in Expresso, 17/09/2021)

José Gameiro

Venho cá porque a minha mulher saiu de casa sem uma explicação e por mais que eu insista, diz-me que eu sei muito bem o que fiz. E não sei. Pode-me ajudar?”

Pensei, mais um que utiliza a velha regra, negar, negar sempre.

“Posso-lhe contar a história desde o início? Sempre trabalhei muito, comecei cedo, montei o meu negócio. Ao princípio pequenos bares com amigos, depois lancei-me na restauração. Veio a pandemia, fecharam-me tudo, umas pequenas ajudas para mandar os empregados para casa e nada mais. Sabe, não sou funcionário público, não recebo o ordenado certinho ao fim do mês, trabalho doze horas por dia e fiquei cheio de dívidas. Tive de puxar pela cabeça e ter imaginação para novos negócios. Por acaso vi umas fotos de uma tribo do Quénia e da Tanzânia, os massais. Porque não tentar lançar alguma roupa inspirada pelas suas magníficas cores? Vim a saber que outros já o tinham feito, mas sem respeitar os direitos que eles devem ter, quando se usa a sua marca. Através de um conhecido que vive lá, consegui o contacto de um homem que fazia comércio com eles. Falei com a minha mulher e arrancámos para o Quénia. Para a viagem não ser uma seca para ela, comprei um safari antes das conversas comerciais. Não me lembro de ter feito uma viagem tão empolgante. Mal sabia eu que se calhar ia ser a última. Andámos quatro dias na savana. Vimos tudo. Leões a comer e a dormir. Chitas a caçar e a matar para comerem. Veja bem que até assistimos a um parto de um veado, é impressionante dez minutos depois está a mamar, de pé.”

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“No último dia, o chefe da tribo massai com quem ia negociar veio ter connosco ao lodge. Durante o jantar que lhe oferecemos, explicou-nos que teria de ir à sua aldeia para conhecer a sua família. Confesso-lhe que fiquei assustado, porque vivem em casas muito primitivas e a ida implicava lá dormir uma noite. A minha mulher disse que não havia problema, seria uma experiência. O homem ficou a olhar para mim com um ar atónito e, timidamente, explicou-nos que eu deveria ir sozinho, na sua cultura as mulheres não discutiam negócios e não era bem visto receber para jantar e dormir uma senhora não massai. Essa noite correu muito mal. Ameaçou-me, se fosse, o nosso casamento acabava, nunca mais me via. Por muito que lhe explicasse que nada daquilo fazia sentido, era só uma noite fora, precisávamos de fazer aquele negócio, não cedeu. Confesso que fiquei irritado, tudo me pareceu uma crise de mimo. Disse-me apenas, estás avisado, farás o que entenderes. Ainda lhe tentei telefonar quando lá estava, mas não tinha rede. Quando voltei na manhã seguinte já se tinha ido embora para Nairobi, apanhar um avião. Até hoje, não me deu nenhuma explicação, mas eu não fiz nada de mal.”

Parecia uma criança, que leva um castigo sem perceber porquê. O meu papel era explicar-lhe que o castigo, apesar de ser manifestamente exagerado, tinha um sentido. Perguntei-lhe. “Desculpe-me a pergunta, qual é a profissão da sua mulher?”

Olhou para mim como quem diz, o que é que a bota tem a ver com a perdigota: “É antropóloga de formação, mas nos últimos anos trabalha comigo. Sabe como é, este país não é muito dado às humanidades e ela ficou sem trabalho.” “Desculpe-me outra pergunta. Passou-se alguma coisa de inesperado nessa noite?” Olhou para mim com um ar comprometido: “O senhor doutor parece que é bruxo, mas a minha mulher não teve forma de saber. Estava frio e uma das mulheres do chefe da tribo, por acaso a mais nova, veio aquecer-me. Disse-me que fazia parte da cultura de boas-vindas deles. Como queria fazer o negócio, aceitei.”

Estive para lhe dizer que para mim não tinha de inventar desculpas, mas não disse. “Você cometeu dois erros. O primeiro foi esquecer-se que a sua mulher é antropóloga e que na sua formação estudou os massais, como tribo que ainda conserva comportamentos que para nós são inaceitáveis. O segundo foi negar a evidência. Nem sempre o negar é uma boa estratégia. Estude um pouco e defenda a teoria de que não cometeu uma infidelidade, apenas foi bem educado. Boa sorte.


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Um pensamento sobre “A antropóloga

  1. Tá cheio de dívidas porque não é funcionário público.

    Maa tem dinheiro para lançar um novo negócio, ir ao Quénia e como brinde inscrever-se num safari onde passou alguns dos momentos mais descontraídos da vida dele.

    Coitadinho.

    Por aqui se vê que empresário com dívidas é outra coisa.

    Trabalhador com dívidas está à rasca por não saber se no dia seguinte vai ser sem abrigo e comer lixo.

    Empresário com dividas inscreve-se no safari todo divertido.

    Até parece que sabe que se correr mal alguém lhe há-de pagar as dívidas.

    Quiçá os trabalhadores…

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