Valha-me Deus, a Justiça é discutida

(Francisco Louçã, in Público, 12/12/2017)

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Os casos sucedem-se: primeiro foi o juiz Neto de Moura e os seus pergaminhos que condenam à morte a mulher adúltera, agora vem um juiz de Viseu absolver um acusado porque a mulher agredida seria “moderna” e “autónoma” e portanto que se safasse. Há nisto várias coincidências, todas preocupantes. Mesmo que se admita que a comunicação social está mais atenta à repetição do folclore machista do que ao direito administrativo, estes acórdãos em si mesmos já são suficientes para demonstrar casos sucessivos de argumentos baseados no simplismo reacionário e de falta de senso ao exibi-lo. Mas há outra coincidência, essa porventura mais profunda, que é a resposta do próprio sistema judicial ao facto de ser criticado.

Começo pela primeira, para se poder medir o significado da segunda. Conta o PÚBLICO que, no tribunal uma testemunha do acusado afirmou que “Ângelo admitiu que dava pontapés em Susana, mas ‘de raspão’, e que a esmurrava, mas não era ‘a sério’, e que ela também lhe dava beliscões. E a outra contou que Ângelo admitiu que lhe batia, mas que ‘não era do nada’”. As testemunhas da ofendida não mudaram a decisão do juiz, absolvição, a mulher que tivesse saído de casa. Não se invocou uma doutrina religiosa castigadora, em todo o caso. Ora, se a mulher tivesse saído de casa e o julgamento chegasse ao outro juiz que cita a Bíblia, talvez fosse por isso condenada, ela. Não é boa notícia, que a decisão do tribunal possa desviar-se da lei para navegar ao sabor das alergias de cada juiz.

A mediatização destes dois processos prova então o quê? Que há uma agenda na comunicação social contra os juízes, aliás erguidos em pedestal noutros casos, ou simplesmente que estas sentenças suscitam choque e pavor? Ora, que se discutam as decisões dos tribunais é simplesmente o novo normal de uma sociedade em que toda a vida pública é mediatizada e mesmo espectacularizada, tantas vezes com empenho e agrado dos seus protagonistas (já viu juízes a darem entrevistas suculentas ou até desembargadores com programas de televisão, não viu?). A justiça será mediática mesmo que não o queira, embora aconteça até que o quer, desde que fale e decida mas não tenha que ouvir.

Assim, esta mediatização suscita outra coincidência ou convergência: a dos magistrados que vêm a público queixar-se das pressões que sofrem por via da exposição mediática. Deixo de lado os casos em que os agentes judiciais, magistrados ou outros, violam o segredo de justiça para manipular a comunicação social com notícias bombásticas, verdadeiras ou falsas, ou para conseguirem condenações antecipadas na opinião pública. Isso tornou-se um sistema tão enraizado que tem sido sugerido que a única solução seria acabar de todo com o segredo (e como se investigaria então o crime complexo?). Mas cinjo-me aqui à mediatização legítima, ao conhecimento do que o tribunal decidiu mesmo.

Ora, cai o Carmo e a Trindade quando isso acontece, porque é uma pressão. “Se agora vai existir uma sindicância sobre todas as decisões dos juízes, qualquer dia não julgam. Têm medo de toda a gente“, avisa Manuela Paupério, dirigente sindical dos juízes.

Acerca de um misterioso texto assinado por seis misteriosas figuras de topo da justiça – não se conhece nem o texto completo nem a lista dos seis – um dos misteriosos autores esclarece o Expresso que “ao proferir uma decisão o juiz não tem de ser politicamente correto ou conformar-se com as ‘modas’ das maiorias” mas, ainda assim, sugere que o juiz “tem de usar particulares cautelas nas suas formas de expressão não exorbitando os princípios constitucionais e legais a que está vinculado”. Que o juiz “não exorbite” a lei parece razoável, só se estranhando que tenha de ser repetido. Mas o que é a tal “moda” e o tal “politicamente correcto” com que o juiz não se deve “conformar”? E se não se conforma como se disforma?

Há demasiada gente a pronunciar-se”, explica outro misterioso signatário. Demasiada gente? Pois, toda a gente pode discutir dado que a sentença é pública, o que aliás é um princípio fundamental da justiça. A justiça, por isso, produz informação: quer que se saiba. Mas não pode haver uma “sindicância sobre todas as decisões dos juízes”, isso nunca. A justiça pretende assim ser Estado e portanto decidir de modo a mostrar a lei e o exemplo, mas quer que não se veja ou, se se vir, que não se discuta? Quer obediência mas não opinião? Quer lei mas não democracia? Espero que alguém perceba que isto cava uma sepultura.

A justiça é pública e vive numa sociedade de informação líquida, mesmo que poluída. O seu problema não pode ser a atenção crítica, só pode ser a sua consistência. É melhor mesmo que os juízes apliquem a lei.

PS- Rui Tavares, a propósito de uma entrevista sobre o meu livro recente, “Sombras”, que aliás não leu, resolveu fuzilar aqui no PÚBLICO: “vendilhão de apocalipses”. Não valendo a pena esperar que ele tenha substância ou sequer elegância, resta-me desejar-lhe as melhoras.

O sublime a que temos direito

(António Guerreiro, in Público, 22/09/2017)

Guerreiro

António Guerreiro

As catástrofes naturais anunciadas com hora marcada, como é o caso dos furacões, provocando o êxodo temporário de populações urbanas, são sempre uma “decepção”. O mundo inteiro prepara-se para o espectáculo da destruição radical, actualizam-se as narrativas e representações do Dilúvio, o tom milenarista e teológico sobe a um elevado nível de amplitude, abrem-se instruções ao processo da teodiceia, como fez Voltaire, no século XVIII, depois do terramoto de Lisboa de 1755, mas tudo acaba mais ou menos em cálculos para as seguradoras, nos países ricos, e em prolongamentos da catástrofe regular e permanente, nos países pobres.

Já as catástrofes não anunciadas, contra as quais não foi possível activar os sistemas de imunização e segurança, são geralmente muito mais incalculáveis. A palavra “decepção”, na primeira frase, foi colocada ente aspas para significar que as coisas geralmente não sucedem conforme são anunciadas (ainda na semana passada fomos avisados de que iríamos ficar sob a influência de uma massa de ar polar, mas afinal a temperatura não desceu, durante o dia, abaixo dos 20 graus). Previstas por quem? Pelos sistemas mediáticos de amplificação, que se preparam sempre para o grande espectáculo do Dilúvio e do sopro colossal (mas nunca para a morte lenta e silenciosa provocada pela seca, que é certamente a catástrofe mais comum do nosso tempo). Há “decepção” no sentido em que fomos instigados a sentir aquele “prazer negativo” que retoma a história moderna do sublime kantiano, um delicioso frisson que já antes Burke, na sua ideia do sublime, definiu como um “delight of horror”.

O sublime é uma categoria estética. Mas são as catástrofes, pelas suas faculdades videogénicas, telegénicas e fotogénicas, que proporcionam actualmente a experiência do sublime ou a figura ambígua de um absoluto. Mal nos colocamos na posição de espectadores, ficamos logo reféns dessa incitação perversa.

E é por saberem que ela funciona e é difícil oferecer-lhe resistência – o mesmo acontece com essa “dura cicatriz” a que chamamos estupidez – que os media anunciam as catástrofes naturais com júbilo e demagogia. Nesse momento, eles jogam aos dados com os cidadãos, tal como Deus com as suas criaturas. São os grandes encenadores e anunciam que vamos assistir a um espectáculo transcendente. É o sublime a que temos direito, aquele sentimento que dantes era experimentado durante a representação da tragédia clássica, onde a emoção sentida pelo espectador se transformava em capacidade de resistência moral. Tal como na tragédia, a catástrofe exprime o conflito entre a vontade e a lei, entre o homem e a natureza. Estas perigosas afinidades com a esfera da arte deram muitas vezes origem a deslizes fatais. Os aviões de passageiros desviados pelos terroristas no 11 de Setembro para provocar a derrocada das Twin Towers (mas aí não se tratava de uma catástrofe natural, foi obra de humanos demiurgos) provocaram no músico alemão Stockhausen uma afirmação que lhe iria sair muito cara: “Foi uma realização da obra de arte total”. Ou seja: uma obra metafísica que se dá sob a forma da reunião e da síntese de todas as artes particulares.

No tempo das vanguardas, os artistas podiam cometer e dizer coisas monstruosas ou, pelo menos, com os limites morais muito mais alargados. Mas nem é seguro que a arte tenha ganhado muito com isso. Quanto aos artistas, esses, perderam os privilégios do sadismo e submeteram-se à condição de masoquistas como nos explica Boris Groys num pequeno livro sobre a condição do artista contemporâneo, chamado Retrato do artista enquanto masoquista.

Flores para Algernon

(José Pacheco Pereira, in Público, 16/07/2016)

Autor

Pacheco Pereira

Dr. Strauss says I shud rite down what I think and evrey thing that happins to me …

He said now sit down Charlie we are not thru yet. Then I dont remember so good but he wantid me to say what was in the ink. ….

(Daniel Keyes, Flowers for Algernon)


Hoje espera-se que eu escreva sobre o atentado de Nice. Ontem sobre as sanções. Anteontem sobre Durão Barroso ou o “Brexit”. Antes foi o dia do espasmo patriótico, o retorno à unidade orgânica da pátria, a realização do mito do unanimismo, o fim das divisões perversas no altar da selecção. Todos de cachecol, Marcelo, Costa, Jerónimo, os bloquistas, o CDS, os artistas menores do PSD, porque o maior mantém a compostura de Primeiro-ministro no exílio. Traz a bandeirinha à lapela e a zanga com o destino que lhe deu a geringonça no bolso.

Nos vinte dias anteriores era futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol. Num dia, no meio do futebol, alguma coisa sobre os atentados na Turquia. Antes dos dias do futebol havia os dias do meio-futebol, ou dos preliminares do futebol, preliminares do futebol, preliminares do futebol, preliminares do futebol, preliminares do futebol, preliminares do futebol, preliminares do futebol, preliminares do futebol, preliminares do futebol, preliminares do futebol, preliminares do futebol, preliminares do futebol. Havia um Deus revelado nestes dias e chamava-se Ronaldo. Acabaram os canais noticiosos, todo o cabo é desporto, todos unidos, todos iguais. Acabaram as notícias, e os locutores que agora se chamam pivot pedem desculpa por ainda terem que falar de coisas menores, o Daesh, Trump, Clinton, o Deutsche Bank, os curdos, a Síria. Já não me lembro. Como é que me posso lembrar se foi tudo há tanto tempo e durou tão pouco tempo?

Antes? Também já não me lembro. A Caixa Geral de Depósitos associada às peripécias da Comissão de Inquérito? Talvez. Talvez os colégios de amarelo. Onde estão? Lá muito atrás um sussurro sobre os refugiados, ou melhor sobre os cadáveres dos refugiados. E estamos a chegar a uma outro campeonato, o de cá. E outra vez futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol. Futebol sob a forma de intrigas, declarações tonitruantes, vinganças, relvado e o seu estado, pernas, joelhos e outras partes da anatomia inferior dos jogadores, treinos, treinos, chegada de autocarros, partida de hotéis, chegada dos exércitos das claques, declarações dos responsáveis da PSP, horas e horas e horas e horas e horas e horas de programas desportivos. Emissões especiais, conferências de imprensa dos treinadores, dos jogadores, dos dirigentes desportivos…

Já não me lembro. Mas havia uma voz. Uma voz acompanha tudo, 200 dias, 500 Declarações do Presidente da República, à média de mais de duas por dia. Dessas lembramo-nos de dez. As mais importantes? Quando se fazem 500 declarações nenhuma é importante. Talvez nos lembremos das mais engraçadas. Ou, melhor ainda, das imagens, que são sempre mais fortes do que as palavras. Agarro-me ao segundo critério para haver memória: há imagens, há notícia, seja uma coisa séria ou irrelevante. Não há imagens, não há notícia. Por isso toda a gente se mostra diante das câmaras. Mas o que fazem, o que dizem? Marcelo a dançar em Moçambique, talvez a mais relevante, mas também já não me lembro bem…

Cada vez mais para trás. Já não me lembro. Mas passaram apenas meia dúzia de meses? Já não me lembro. Houve eleições. Parece um outro mundo. Ganhou Passos Coelho e Portas. Fizeram governo? Já não me lembro, só sei que durou pouco. Caiu. Foi-se a avantesma, veio a geringonça. A Europa do PPE e os socialistas da corte de Merkel arrebitaram as orelhas. O quê? Os comunistas estão no poder em Portugal? E o Syriza local? Temos que tratar disso, voltar à austeridade, voltar ao respeitinho com os Grandes. O Plano B. Não devia já existir, estar em pleno vigor? Já não me lembro. Pensar faz-me mal à cabeça.

Leio jornais, vejo televisão, tenho cada vez menos memória e cada vez mais memória mediática, uma contradição entre os termos. Curta. Muito curta. Atafulhada de bola, casos da vida, acidentes, incidentes, nada. Dura um dia, quinze dias? Mais? Já não me lembro porque não é para lembrar, é para entreter, para distrair, para passar o tempo. Não sei. Sei cada vez menos. Devo estar doente. O meu cérebro está cada vez mais pequeno. Pequenino.

Já não me lembro. Coloquem flores na campa de Algernon