O incêndio da revolta

(António Guerreiro, in Público, 07/07/2023)

António Guerreiro

A revolta que irrompe actualmente por todo o lado não é um acontecimento conjuntural, é estrutural, ainda que possa parecer efémera e a sua propagação seja intermitente.


Um estabelecimento danificado em Montreuil, perto de Paris, durante os protestos pela morte do jovem Nahel às mãos da polícia EPA/JULIEN MATTIANa semana passada, Paris esteve novamente a arder. O fogo e a pilhagem são, desde sempre, o instrumento e a consequência das revoltas urbanas – ou “motins”, se utilizarmos a classificação dos aparelhos do Estado que obviamente não utilizam a palavra “revolta” para não atribuir ao acontecimento uma qualificação política e para não reconhecerem que estão a lutar contra quem lhes “volta a cara”, que é o que a palavra “revolta” significa quando percebida na sua etimologia.O grito de guerra dos negros do bairro de Watts, em Los Angeles, durante quatro dias de Agosto de 1965 era Burn, baby, burn, que depois serviu de título a muitas canções. Nos primeiros momentos dessa revolta – ou, para quem preferir, motins – as pilhagens seguidas de incêndios deram-se em armazéns de bebidas alcoólicas e de armas. Também agora, em Paris, houve quem apontasse motivações puramente criminosas de roubo de produtos das marcas de prestígio às esquadras juvenis que ocuparam algumas cidades francesas de maneira violenta e com o objectivo de provocar a máxima destruição.Na sequência da revolta de Los Angeles, Guy Debord escreveu um texto, publicado no número 10 da Internacional Situacionista, em 1966, que era uma defesa da revolta, interpretando-a como revolta contra a mercadoria, como o título deixava depreender: O Declínio e a Queda da Economia do Espectáculo-Mercadoria (Le déclin et la chute de l’économie spectaculaire-marchande). Disse então Debord: “A revolta de Los Angeles é uma revolta contra a mercadoria, contra o mundo da mercadoria e do trabalhador-consumidor submetido às medidas da mercadoria.” E, designando os actos dos revoltosos como “o potlatch da destruição”, viu neles “uma superioridade humana sobre as mercadorias”.Nas circunstâncias actuais, ninguém ousaria evocar o valor de fetiche próprio da mercadoria e dizer que os jovens se apropriam dos produtos para os usar e os profanar, recusando o seu valor de troca. Marx não é para aqui chamado, nesta passagem da “consommation à la consumation” (do consumo à consumação), como escreveu Debord. Pensar que a dinâmica da revolta devia ser, hoje, incompatível com a pilhagem e o consumo é tão deslocado como aquele apelo aos pais para não deixarem os meninos sair à noite de modo a evitar que eles façam distúrbios, isto é, queimem carros, autocarros e vandalizem lojas e edifícios públicos.A lógica e o tempo da revolta não é a lógica e o tempo da revolução. A revolta, que permite redescobrir o ponto de contacto entre o tempo mítico e o tempo histórico, é o “laboratório do resgaste”, a “passagem anárquica”. Quem assim a define é a filósofa italiana Donatella Di Cesare, num livro intitulado O Tempo da Revolta, que tem tradução em português nas Edições 70 (2021). Vale muito a pena ler esse livro para percebemos o que se passa nesta longa sucessão de acontecimentos revoltosos que vão de Occupy Wall Street às cidades francesas na semana passada, onde ainda ecoam uns gritos vindos de longe: Burn, baby, burn.A revolta anárquica, diz-nos Donatella Di Cesare, viola as fronteiras, desnacionaliza os supostos cidadão, confere-lhes estranheza, convida-os a considerarem-se residentes estrangeiros, ainda que tenham a nacionalidade do país de residência. Daí a sua afirmação de que há uma relação profunda entre revolta e migração, na medida em que são os migrantes que vêm das margens da arquitectura política (e “migrante”, como se pode ver, é uma condição que se herda). O título do livro, O Tempo da Revolta, remete para a tese central da autora: a revolta que irrompe actualmente por todo o lado não é um acontecimento conjuntural, é estrutural, ainda que possa parecer efémera e a sua propagação seja intermitente.

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Sabemos bem que a revolta como categoria política foi sempre desqualificada, mesmo à esquerda. A tradição da esquerda é a dos sujeitos políticos, não a do anonimato que pertence à própria forma da revolta. Este anonimato não deve ser interpretado apenas como exigência estratégica, faz parte do éthos da revolta.

Daí, o recurso à máscara e aos capuzes. Os jornalistas do Le monde, na abertura de uma reportagem, avisavam o leitor de que era impossível chegar aos revoltosos, identificá-los, retirá-los da invisibilidade e do anonimato. Não conseguiam saber alguma coisa deles senão através de mediações.Só alguém de uma esquerda muito heterodoxa e com algumas afinidades com a anarquia, como foi o mitólogo Furio Jesi, podia definir deste modo a revolta: “Se a revolução prepara o amanhã, a revolta evoca o depois de amanhã.”



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Príncipe Ubu no Parlamento e na televisão

(António Guerreiro, in Público, 05/05/2023)

António Guerreiro

Não está André Ventura sujeito a uma degradação do seu valor quando os media o mostram como um clown?


Sobre André Ventura não me vem nada à cabeça. Esta frase, tirando o nome próprio que aqui comparece a substituir um outro muito mais infame, não me pertence. Mas irei fazer em seguida algumas observações que já não reclamam de maneira tão óbvia alheia pertença, intrometendo-me num assunto – como dizer? – “cadente”, isto é, em queda livre. E o assunto, objecto de discussão pública, recentemente amplificada pelo primeiro-ministro, é o espaço e o tempo que os media concedem a André Ventura e ao seu partido. “Desproporcionado”, disse António Costa e dizem muitos, em relação ao que esse partido representa em termos eleitorais.

Este juízo parte de um pressuposto que passou a ser um teorema: sempre que André Ventura aparece na televisão, na rádio, nos jornais, acumula valor político, reforça o seu poder grotesco porque ele lhe é outorgado, acima de tudo, pelos media. Em nenhum momento se pergunta porque é que esse poder grotesco, sendo explicável pelo fenómeno moderno da sociedade de massa, surgiu muito antes de a política e toda a vida social, governadas pelos media, se terem transformado numa fantasmagoria espectacular que não tinha ainda atingido a sua figura extrema e completamente naturalizada quando Guy Debord, esse grande moralista francês, tão moderno e tão antigo, redigiu esta proposição lapidar que condensa a sua concepção da “sociedade do espectáculo”: “O que aparece é bom, o que é bom aparece”.

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Tanto assim é, tanto as nossas mentes estão colonizadas pelo teorema que põe André Ventura a acumular valor através de parasitação mediática, que nunca se coloca, quanto mais não seja como hipótese teórica, a seguinte questão: não está André Ventura sujeito a uma degradação do valor quando os media o mostram como um clown e exibe uma eloquência patética que só mostra a facies do discurso grotesco?

Da discussão em curso, depreende-se que ninguém põe esta hipótese, ninguém acha que André Ventura pode perder seguidores e votos pelo modo como se representa e é representado. E a palavra “representação” é aqui obrigatória porque designa a tarefa em que ele está sempre empenhado e que lhe dita a entoação, a mímica, a sintaxe. E se ninguém põe essa hipótese, se se entende que André Ventura é o nome de uma mecânica de apropriação que expropria tudo à sua volta, incluindo a crítica e, portanto, a linguagem, é porque se desistiu de ver os media como factores de produção de um espaço público crítico (que está, aliás, na base da própria noção de “espaço público). Mas neste caso o problema maior não é André Ventura, são os media, não por mostrarem Ventura com uma frequência desproporcionada, mas porque, afinal, como demonstra este caso, produzem má publicidade, mesmo quando querem produzir informação. Não este ou aquele jornal, não este ou aquele canal de televisão, mas a totalidade feita de expropriações, de fetiches e de acumulação de espectáculos.

Para escrever este texto, fui ouvir um podcast feito pelo jornalista Vítor Matos, no Expresso. O título da peça é “Entre Deus e o Diabo, Como André se fez Ventura”. Vítor Matos é, sem dúvida, um bom jornalista, mas cai aqui num erro fatal: o título anuncia logo um “herói” cuja história, como a dos heróis predestinados, coincide com o destino (“como André se fez Ventura”). E, a pouco e pouco, esta personagem onde qualquer pessoa no uso do sentido crítico só consegue ver uma fantasmagórica vacuidade, é preenchida pelo jornalista com uma densidade que é legitimada até, no podcast, pela leitura enfática de excertos de um livro que André Ventura diz ter lido e o ter influenciado muito: o Doutor Fausto, de Thomas Mann.

Vítor Matos incorre no erro do biógrafo, tão comum no jornalismo: faz do seu biografado uma personagem “interessante” (o que não quer dizer que adira a ela), certamente porque seria de pouco interesse ter de biografar uma nulidade. Na genealogia do poder grotesco, o Doutor Fausto não entra, por mais que possa ter sido referido por esta ubuesca personagem.

Num texto intitulado Os Três Tipos Puros de Dominação Legítima, Max Weber distinguia três fontes de legitimidade política: a dominação de natureza racional, a dominação tradicional e a dominação carismática. O poder grotesco que Ventura representa não pertence a nenhuma destas categorias. Preenchê-lo com esta última, o carisma, é um erro de paralaxe.



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O crepúsculo dos partidos

(António Guerreiro, in Público, 28/04/2023)

António Guerreiro

Estão confrontados com a sua impotência (e quanto mais impotentes mais entram na bipolarização perigosa do discurso, sabotando o debate) e já nem conseguem responder às antigas funções democráticas.


Este nosso tempo tão distante das vanguardas históricas e das neovanguardas viu, no entanto, surgir um novo “-ismo”: o activismo. Um pouco por todo o lado, movimentos e formas de mobilização social abrem frentes de combate e encenam gestos susceptíveis de mobilizar um número considerável de cidadãos, capazes de agregar novas subjectivações e de instaurar frentes de conflito publicamente identificados.

Esses gestos de combate a que se dá o nome de “activismo”, uma das palavras do novo léxico político do nosso tempo, podem ir da simples intenção de provocar um abalo na indiferença do poder político em relação a um determinado problema até à desobediência civil, pode ganhar a forma de um movimento cívico que defende o direito à habitação ou ser uma organização com vocação mais reactiva, preparada para entrar nos terrenos de luta recentes (por exemplo, o militantismo ecológico e climático e as causas LGBT). O activismo conhece a lógica e o tempo da revolta, mas sabe que passou o tempo da revolução. Por vezes, esses movimentos assemelham-se mais a jam sessions do que a manifestações que guardam a memória das grandes palavras de ordem que se julgavam performativas.

Se há hoje tanto activismo, e se muito dele tem um âmbito transnacional (ainda recentemente, os “activistas” contra a construção de megarreservatórios de água para alimentar a agro-indústria de Sainte-Soline, em França, vieram de muitas zonas da Europa), é porque os partidos políticos já não servem para acolher o entusiasmo e a energia destas iniciativas, destas formas de cidadania, tanto no âmbito das novas causas como no mundo sindical. O definhamento da forma partido é visível em todo o lado, de tal modo que na área da teoria política a crise dos partidos já é vista como o fim de um ciclo histórico.

É verdade que o partido de massa que dominou amplamente o cenário das democracias do pós-Segunda Guerra, isto é, o partido herdeiro do sufrágio universal, estruturado em torno de ideias, isto é, de uma ideologia, e enquanto resultado da irrupção das massas no campo político, já entrou em crise há mais tempo, mas foi sobrevivendo em perda progressiva, acompanhando a crise da democracia representativa, da qual ele é a instituição estruturante, pelo seu papel de representação e de organização do debate democrático. Agora já estamos na fase em que se tornou legítimo e pertinente perguntar se a forma partido tem ainda actualidade e se a sua função representativa não passa de uma pretensão que já só pode reclamar velhos pergaminhos.

Desmentindo aparentemente esta hipótese, temos a instalação progressiva de partidos atípicos (mas, ainda assim, partidos), muitas vezes dominados por chefes que instauram um poder grotesco e se exibem como “palhaços carismáticos” (uma categoria que foi definida pela primeira vez por Max Weber). Esses partidos atípicos não devem ser confundidos com os movimentos e as formas actuais de activismo, mas têm um significado semelhante enquanto sintomas da enorme debilidade dos partidos na sua forma tradicional.

Este estado de coisas não resulta apenas, nem sequer maioritariamente, de uma degradação interna, de uma autodestruição. Essa existe, de facto, mas é em parte consequência de vários factores externos: em primeiro lugar, há hoje uma fragmentação dos posicionamentos políticos que torna difícil “tomar partido” – uma fragmentação própria de uma sociedade marcada pela atomização e pelo individualismo crescentes; em segundo lugar, os partidos, enfraquecidos e sem poder de atracção, já não são produtores de ideias; em terceiro lugar, o fenómeno da globalização (ou a Europa como união política e económica) reduziu drasticamente o perímetro de acção dos partidos quando chegam ao poder governamental. Todos se confrontam com os mesmos constrangimentos e por isso é tão difícil distinguir uns dos outros. Daí a imagem de que são todos feitos do mesmo e a política é sempre a mesma.

Para marcar a diferença, os partidos extremistas só têm uma receita: o regresso às fronteiras e à soberania nacional (ou até à preservação de uma mitológica pureza étnica, como defendia há dias um ministro italiano que convidava os seus compatriotas a procriar mais para não serem substituídos por outras “raças”).

Em suma: os partidos, hoje, estão confrontados com a sua impotência (e quanto mais impotentes mais entram na lógica da bipolarização perigosa do discurso, sabotando todo o debate) e já nem conseguem responder às antigas funções democráticas. Que fazer?



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