Sem olhos em Gaza

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 24/11/2023)

O título acima é roubado a um livro de Aldous Huxley (“Eyeless in Gaza”), que, por sua vez, o roubou de um poema de Milton. Li-o há tanto tempo que só me lembro de que a história anda à volta de um aristocrata inglês que, depois de vaguear pela vida, entre a inutilidade e o diletantismo, se converte ao pacifismo — uma simples palavra hoje banida entre a gente civilizada que se ocupa de Gaza ou da Ucrânia. Huxley escreveu-o em 1936, antes de os nazis terem dizimado seis milhões de judeus no Holocausto e antes de os judeus terem submetido os palestinianos à Nakba, expulsando 800 mil da terra onde vi­viam há 15 séculos para aí criarem Israel.

De então para cá, desde 1948, viveram-se ali três quartos de século de guerras, de guerrilhas, de permanente instabilidade e de ódios mútuos insanáveis. As vítimas disso têm sido, em primeiro lugar e em dimensão muito diferente, palestinianos e judeus de Israel, mas todos, de certa maneira — na Europa, no Ocidente, no mundo árabe, em África —, têm sofrido os danos colaterais deste eterno conflito, que envolve apenas 10 milhões de pessoas, mas irredutíveis e cegas — sem olhos. É tempo de dizer basta. É tempo de o Ocidente, sobre quem pesa a tremenda responsabilidade política e moral do Holocausto e da Nakba, impor uma solução de paz e de futuro que seja justa e que seja viá­vel. Ou o faz ou aceita definitivamente a falência de qualquer possibilidade de solução por via pacífica dos conflitos e a própria ideia nascida da Sociedade das Nações para tal. “Nunca mais” também nos diz respeito.

Comecemos então por tentar ver claro e falar claro neste ambiente de conceitos estilhaçados. O anti-semitismo, que persiste e persistirá como uma doença igual ao racismo e outras, não é, ao contrário do que alguns querem fazer crer, o mesmo que anti-sionismo, sobretudo na sua versão histórica, dos fundadores de Israel. E o anti-sionismo também não é o mesmo que a oposição à política de sistemática ocupação de terras e casas palestinianas por colonos israe­litas, incentivados por um Governo de fanáticos religiosos e protegidos por um exército mais ocupado em defender a ilegalidade das ocupações do que em defender o país — como se viu em 7 de Outubro. Se o porta-voz do Hamas diz que o objectivo é correr com todos os judeus da Palestina, também um ministro de Netanyahu concebeu um plano com a “solução final” de expulsar os palestinianos de Gaza para o deserto do Sinai, e o Egipto que se ocupe deles. E outro, ainda mais radical, apresentou como solução perfeita despejar uma bomba nuclear táctica em Gaza — sendo suspenso por Netanyahu, numa original punição disciplinar transitória.

Denunciar a política criminosa do actual Governo de Israel e da maior parte dos seus antecessores para com os palestinianos não é justificar o terrorismo do Hamas ou outros, é simplesmente um acto de honestidade intelectual. Enquanto isto não for aceite por todos, não é possível avançar em direcção alguma.

Achar que Israel pode desrespeitar dezenas de resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas e continuar a ser tratado como um dos “nossos” equivale a renunciar à denúncia e ostracização dos países que deliberadamente vivem à margem da lei.

A seguir ao 7 de Outubro todos os dirigentes ocidentais correram a Telavive para manifestarem a sua solidariedade sem limites a Israel e ao seu Governo — na verdade, para lhe darem carta-branca para o “direito de legítima defesa” sem limites que todos sabiam que se iria seguir. Em nome da Europa e usurpando poderes de representação externa que não lhe cabem, Ursula von der Leyen incitou abertamente Israel à vingança e Macron chegou a oferecer forças militares para o ataque a Gaza. Paradoxalmente, foram os americanos os mais comedidos: Biden avisou os israe­litas para não cometerem os mesmos erros que eles haviam cometido após o 11 de Setembro e desde cedo o secretário de Estado Antony Blinken multiplicou os esforços para que Is­rael não resvalasse para um excesso de legítima defesa que viraria as opiniões públicas contra si. Tudo em vão: o que hoje temos no terreno, e à vista de quem não feche os olhos, é um Estado terrorista a combater uma organização terrorista à custa de uma população civil e da destruição à bomba de prédios, hospitais, escolas, mesquitas e campos de refugiados. Chega a ser pornográfico ver a imprensa ocidental, com a CNN americana à cabeça, ainda e sempre ocupada em mostrar reportagens junto dos colonos israelitas da Cisjordânia, atacados pelo Hamas em 7 de Outubro. Não que esse acto extremo de barbárie possa ou deva ser esquecido, mas porque dele já tudo foi dito, visto e contado, uma e muitas vezes. Mas nada é contado sobre os 200 palestinianos, civis e agricultores, que desde 7 de Outubro foram mortos nessa mesma Cisjordânia às mãos de colonos ou das forças de defesa de Israel. E enquanto os jornalistas-vedetas da televisão americana fazem entrevistas pungentes com familiares dos mortos ou reféns israelitas, ali ao lado, em Gaza, os seus pares palestinia­nos morrem ou vêem as suas famílias mortas pelos bombardeamentos cegos da aviação israelita enquanto trabalham para mostrar ao mundo o outro lado da verdade. Morrem eles, morrem, até agora, mais de 100 trabalhadores da ONU, atacados em campos de refugiados ou escolas devidamente identificados como instalações da ONU, mas que para Is­rael são quartéis-generais do Hamas. Como os prédios, os bairros inteiros reduzidos a cinzas, como há muito não se via em guerra alguma, os hospitais transformados em campos de batalha de soldados contra médicos e crianças em incubadoras, como jamais se viu em guerra alguma. Cinco semanas de prazer sanguinário à solta, toda a mais sofisticada e cara parafernália de morte ao serviço da vingança de Israel, com um saldo de 14 mil mortos civis, cinco mil crianças assassinadas e uma fúria de morte tão insaciável que, mesmo para receber 50 dos seus reféns em troca de quatro ou cinco dias de pausa no massacre, quase metade do Governo israelita votou contra.

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Como pode a Europa assistir a tudo isto sem uma condenação conjunta e violenta de Israel em nome dos princípios que advoga e apregoa algures e noutras circunstâncias? Quando, por exemplo, perante a morte de quatro palestinianos/portugueses, apanhados por um bombardeamento israelita na “zona de segurança” do Sul de Gaza, para onde o Governo de Israel mandou os palestinianos fugirem, o nosso MNE diz que telefonou ao seu homólogo israe­lita e manifestou-lhe o seu “desgosto”, de que quantos mais desgostos destes precisarão os dirigentes europeus até que a vergonha, pelo menos, os reduza ao silêncio cúmplice? Aquilo que, no final, deixarão para a história.

2 Segundo o editorial do Expresso, eu, no meu “tom assertivo e tantas vezes polémico”, teria defendido “o fim da independência funcional do Ministério Público (MP)”. Assertivo e polémico, vá que não vá, durmo bem com isso. Mas, quanto ao resto, é preciso rigor nas palavras: como resulta claríssimo do meu último texto, eu não defendi “o fim da independência funcional do MP”, mas sim o fim da sua autonomia funcional. O que faz toda a diferença e, não por acaso, tive ocasião de ler e ouvir esta semana vários entendidos criarem deliberadamente a confusão entre os dois conceitos, com o fim óbvio de concluírem que quem critica a total autonomia funcional do MP — a faculdade de qualquer procurador agir livremente sem dar satisfações internas a ninguém — está, no fundo, a defender a intromissão do poder político na investigação criminal. A conclusão é absurda e intelectualmente desonesta, mas é para isso mesmo que se cria a confusão. Para ajudar a ver claro dou um exemplo extraído da Operação Influencer. Como é sabido, os procuradores levaram ao juiz de instrução uma súmula (“indiciação”) das suspeitas contra os arguidos, na qual fundamentavam até pedidos de prisão preventiva — todos recusados pelo juiz. E entre os factos que melhor alicerçavam os indícios de crimes estavam três, todos relevantes, mas falsos e resultantes de erros imperdoáveis: num, um dos arguidos dizia que ia falar com António Costa e Silva, mas o MP chamava-lhe António Costa, primeiro-ministro; no outro, era marcada uma reunião entre o chefe de gabinete do PM e um dos arguidos, não para o Palácio de S. Bento, local de trabalho do primeiro, mas para a sede do PS, e no outro uma portaria supostamente feita à medida por uma empresa privada e para satisfazer os seus interesses e adoptada pelo Governo afinal estava errada e não tinha nada a ver com o assunto. Não estivesse a defesa dos arguidos atenta e dado com os erros, e era assim que o processo teria sido apresentado ao juiz. Um processo tão importante que acabou por determinar a queda do Governo e a convocação de eleições antecipadas. Ora, tivesse isto acontecido numa empresa privada, num dossiê trabalhado durante quatro anos, e os autores dos erros poderiam começar a procurar trabalho noutro lado. Mas aqui não: em obediência ao sacrossanto princípio da sua autonomia funcional, eles limitam-se a recorrer da decisão e a verem reforçados os meios de investigação ao seu alcance, prosseguindo as suas carreiras como se nada fosse. O seu directo superior hierárquico não muge nem tuge e a PGR, dita responsável máxima do serviço, acha que não deve nem teme: não deve explicações nem teme consequências. Mas eu é que sou “assertivo”…

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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Realmente é incomparável

(Carlos Marques, in comentários na Estátua de Sal, 23/11/2023)

(Este texto resulta de uma resposta a um comentário de JgMenos, aqui publicado, e que transcrevo: “Muito se esforça a cambada do ódio em dar lugar a terroristas na multipolaridade que ambicionam. O tema actual é equiparar os assassinatos de civis a 7 de Outubro em Israel às mortes de civis em Gaza.”

Por conter tanta verdade junta, decidi dar-lhe maior divulgação.

Estátua de Sal, 23/11/2023)


Realmente é incomparável. O Hamas entrou na Palestina ocupada (ou seja, “invadiu” o seu próprio território), e matou invasores. No total, à volta de 1200, morreram nessa contraofensiva. Quase 400 eram militares ou polícias do regime invasor. E dos 800 “civis” (colonos reservistas do IDF, invasores ilegais) mortos, vários foram mortos pelas próprias IDF, como já foi noticiado.

Do outro lado, em Gaza, um campo de concentração, o invasor Israelita invadiu ainda mais, destruiu bairros inteiros, infraestruturas, cortou água e luz, bloqueia comida e combustível, cerca hospitais, rebenta escolas. Assassinou já mais de 13300 civis, dos quais mais de 5500 crianças (41% das vítimas).

É, de facto, incomparável. De um lado um povo, sem direito a forças armadas, que usa os meios que tem para se revoltar contra os que os invadem há quase 80 anos, e fazem alguns prisioneiros com o objetivo de os trocar pelas crianças palestinianas raptadas e trancadas em prisões naZionistas.

Do outro lado, mais uma invasão ilegal, um genocídio, e uma limpeza étnica durante as pausas. E os navios do império genocida ocidental no Mediterrâneo, para garantir que o genocídio é feito sem ninguém se atrever a pará-lo.

Mas, para racistas e imperialistas genocidas, a vida de um invasor agressor naZionista, vale tanto como a de 10 ou 100 civis palestinianos, vítimas há décadas neste conflito que NÃO começou em 7 de Outubro, mas começou em 1947, quando um grupo de imperialistas genocidas ocidentais desenhou uma linha num mapa e afirmou: “Isto agora é meu e dos meus amigos sionistas”. Ou, como Biden uma vez disse, parafraseando: “Se Israel não existisse, nós íamos lá inventá-la. É a melhor garantia da defesa dos nossos interesses na região”.

Já o Putin, esse “criminoso”, em vez de inventar linhas no mapa, olha para os mapas históricos. Em vez de fazer golpes sangrentos, faz referendos. Em vez de bombardear o campo de concentração, bombardeia nazis. Em vez de assassinar mais de 5500 crianças num mês, faz uma guerra cirúrgica em que em 2 anos morreram 500 (e muitas em ataques dos nazis contra o Donbass). Em vez de limpeza étnica, reconstrói Mariupol e convida a voltar todos os ucranianos que lá quiserem continuar a viver. Em vez de cometer um genocídio, evita um que os UkraNazis queriam cometer. Em vez de ódio e extremismo religioso, lidera uma federação onde cabem todas as etnias e crenças. Em vez de cortar água e cercar hospitais, reabre o canal da Crimeia, e envia ajuda humanitária para Gaza. Em vez de financiar a Al-Qaeda para destruir a Síria, ajuda a Síria a derrotar a Al-Qaeda. E em vez de apoiar incondicionalmente os naZionistas, vota na ONU a favor do cessar-fogo imediato. Obviamente, com um currículo como este, só podia ser chamado de “criminoso” pelos “democratas” e “juízes” ocidentais. O Netanyahu, esse sim, é um exemplo a seguir…

Nota 1: Continua o agravar acelerado da DITADURA ocidental. A atriz Susan Sarandon, dos poucos seres humanos que se aproveitam naquela zona do globo e naquela indústria, acabou de ser cancelada, censurada, limitada na sua liberdade, e atacada na sua independência financeira. Se fosse uma atriz nova, correria o risco de passar fome daqui para a frente. Felizmente já amealhou o que tinha de amealhar. Já não é preciso PIDE nem Gestapo. O Capitalismo faz o trabalhinho… «Susan Sarandon fora de agência de Hollywood após apoiar Palestina», (Ver aqui).

Ela não apoiou o Hamas. Apoiou um povo vítima de genocídio. A ditadura ocidental diz que é crime. O capitalista despede. Está cancelada. Só por acaso, Hollywood deve ser das indústrias com mais penetração/iniciativa Judaica/Sionista. É só uma coincidência, pois claro…

«Fui aconselhado a não falar no genocídio. Posso vir a ser prejudicado» (Ver aqui). Esta foi em Portugal, província do império genocida ocidental. Ai do ator Jorge Corrula que abra a boca para falar de factos… Fica logo sem ganha-pão. É assim a nova PIDE/Gestapo da ditadura ocidental. Não é o agente X que tortura ou mata num edifício do Estado. É a “iniciativa privada” que faz o servicinho, de forma silenciosa, sem deixar negras. Se um ator disser o que o regime não gosta, e deixar de aparecer na TV/Cinema, ninguém dá por ela. Estão sempre a aparecer novos atores, prontos a dizer as coisas “certas”, e alguns até dão estatuetas dos Óscares a ditadores colaboradores de nazis queridos pelo regime ocidental, em nome da vi$ibilidad€ que isso lhes garante.

Por falar nisto, lembrei-me do partido político da CIA em Portugal… quer dizer, da Iniciativa Liberal. Eles querem mais meritocracia. Deve ser do tipo: se vais a uma manifestação pedir mais salário, com cartazes em português, és extremista e tens de ser combatido. Mas vais a uma manifestação com bandeiras vermelhas e pretas da UPA/OUN ao lado do militante do Svoboda, pedir mais aviões F16 com cartazes em inglês, e és logo um grande democrata liberal e mereces ser promovido até ao topo…
E é esta gente que vai governar Portugal nos próximos 4 anos. Aliás, ganhem laranjas ou rosas, são na mesma estes que vão governar. $eja feita a vontade de Biden, Leyen, Stoltenberg, e Lagarde, am€n.

Nota 2: Alguém diga ao Putin que se ele afirmar que todos os ucranianos são terroristas do Hamas, pode terraplanar aquilo tudo à bomba, e ainda recebe ajuda do Ocidente. Combater cirurgicamente nazis (que começaram guerra) é “crime” e é “injustificado”, mas assassinar mais de 13000 civis e mais de 5500 crianças num só mês (e ainda agora estamos no início…) é ser “a única democracia do Médio Oriente”, é “totalmente justificado”, é “defender direitos humanos”, é espalhar a “liberdade”.

Nota 3: Perante a crescente agressão dos albaneses do Kosovo contra os Sérvios da parte Norte do Kosovo, a NATO reforça as forças da invasão, o apoio aos separatistas, e facilita a futura anexação de mais um território (em violação do direito internacional) ao império genocida, com promessas de adesão à UE/NATO. Não é independência, é anexação. Só não percebe isso quem não tem olhos nem vergonha na cara. Mas é tudo business, as usual.

Entretanto o Presidente da República Sérvia começa a falar cada vez mais alto em exercer pacificamente o Direito Humano à autodeterminação, separar-se da Bósnia e Herzegovina, e quiçá ajudar depois a fazer uma Sérvia maior. Obviamente chovem ameaças e previsões de nova guerra, por parte dos cartilheiros do regime ocidental. Double standards, what else?

Mas isto levou-me a ler novamente artigos sobre a forma como o Montenegro se tornou “independente” (anexado à UE/NATO). E só posso dizer que recomendo. Desde os apenas 2 mil votos que tudo decidiram (menos que o total de votos nulos ou brancos), às polémicas e irregularidades, às histórias de corrupção e compra de votos e pressões inadmissíveis a trabalhadores do Estado, às bandeirinhas da UE numa das campanhas… e à divisão territorial das intenções de voto, com uma metade claramente contra a independência, valeu tudo. Uma leitura que é uma risota revoltante. Visto com os meus olhos de hoje, ficou claro para mim: foi um Maidan. Feito com cruzes num papel em vez de balas. Mas ainda assim um Maidan. Um golpe para despedaçar um país, em nome dos interesses do império genocida ocidental. Nada mais. Hoje a Sérvia não tem acesso ao mar. E o Montenegro é uma amostra de país. Mais um voto na ONU para fazer de conta que o Ocidente (15% do Mundo) tem muitos votos e “não está isolado”. Orwelliano demais!

Falei de tanta coisa que parece diferente, mas isto está tudo ligado. E a cola que liga as peças, é produzida em Langley, Virgínia – sede da CIA. Se o que produz ficasse dentro do muro, não havia mal. Mas infelizmente anda pelos lados de cá muito snifador viciado nessa cola…


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O Escorpião picará o Sapo dos EUA?

(Alastair Crooke, in Sakerlatam.org, 22/11/2023)

Netanyahu está preparando o terreno para uma armadilha à Administração Biden, ao manobrar para que os EUA não tenham outra escolha senão juntarem-se a Israel.


A alegoria é aquela em que um escorpião depende do sapo para atravessar um rio inundado, pegando uma carona nas costas do sapo. A rã desconfia do escorpião; mas relutantemente concorda. Durante a travessia, o escorpião pica fatalmente o sapo que nadava no rio, sob o escorpião. Ambos morrem.

É um conto da antiguidade que pretende ilustrar a natureza da tragédia. Uma tragédia grega é aquela em que a crise que está no cerne de qualquer “tragédia” não surge por mero acaso. O sentido grego é que a tragédia é onde algo acontece porque tem que acontecer; pela natureza dos participantes; porque os atores envolvidos fazem com que isso aconteça. E eles não têm escolha a não ser fazer isso acontecer, porque essa é a sua natureza.

É uma história que foi contada por um antigo diplomata israelense, bem versado na política dos EUA. A sua narração da fábula da rã fez com que os líderes de Israel se defendessem desesperadamente da responsabilidade pelo desastre de 07 de outubro, com um gabinete a tentar furiosamente transformar a crise (psicologicamente) num desastre culpável – para apresentar ao público israelense, em vez disso, uma imagem de oportunidade épica.

A quimera apresentada é aquela que, ao remontar à ideologia sionista mais antiga, Israel pode transformar a catástrofe em Gaza – como o Ministro das Finanças Smotrich há muito argumentou – numa solução que, de uma vez por todas, “resolva unilateralmente a contradição inerente entre as aspirações judaicas e palestinas” – acabando com a ilusão que qualquer tipo de compromisso, reconciliação ou divisão é possível.

Esta é a potencial picada de escorpião: o gabinete israelense aposta tudo numa estratégia extremamente arriscada – uma nova Nakba – que poderia arrastar Israel para um grande conflito, mas ao fazê-lo também afundaria o que resta do prestígio ocidental.

É claro que, como sublinha o antigo diplomata israelita, esta manobra é essencialmente construída em torno da ambição pessoal de Netanyahu – ele manobra para aliviar as críticas e permanecer no poder enquanto puder. Mais importante ainda, ele espera que isto lhe permita espalhar a culpa, libertando-se de si mesmo de toda e qualquer responsabilidade. [Melhor ainda], “pode colocar Gaza num contexto histórico e épico como um evento que pode tornar o Primeiro-Ministro um líder formativo de grandeza e glória durante a guerra”.

Exagerado? Não necessariamente.

Netanyahu pode estar debatendo-se politicamente pela sobrevivência, mas também é um verdadeiro “crente”. Em seu livro Going to the Wars, o historiador Max Hastings escreve que Netanyahu lhe disse na década de 1970 que: “Na próxima guerra, se fizermos certo, teremos a chance de tirar todos os árabes de lá… Podemos limpar a Cisjordânia, resolver Jerusalém.”

E o que pensa o gabinete israelense sobre a “próxima guerra”? Pensa ‘Hezbullah’. Como observou recentemente um ministro, “depois do Hamas, passaremos a lidar com o Hezbollah”.

É precisamente a confluência de uma longa guerra em Gaza (de acordo com as linhas estabelecidas em 2006) e uma liderança israelense aparentemente com a intenção de provocar o Hizbullah a subir e a subir a escada rolante, que está a fazer com que luzes vermelhas pisquem dentro da Casa Branca, de acordo com o ex-diplomata israelense.

Na guerra de 2006 com o Hezbollah, todo o subúrbio urbano povoado de Beirute – Dahiya – foi arrasado. O General Eizenkot (que comandou as forças israelenses durante a guerra e agora é membro do ‘Gabinete de Guerra’ de Netanyahu) afirmou em 2008: “O que aconteceu no bairro Dahiya de Beirute em 2006 acontecerá em todas as aldeias de onde Israel for alvo de tiros… De do nosso ponto de vista, estas não são aldeias civis, são bases militares… Isto não é uma recomendação. Este é um plano. E foi aprovado.”

Daí o tratamento recebido por Gaza.

Não é provável que o Gabinete de Guerra israelita procure provocar uma invasão em grande escala de Israel pelo Hezbollah (o que representaria uma ameaça existencial); mas Netanyahu e o gabinete talvez gostassem de ver a atual troca de tiros na fronteira norte escalar até ao ponto em que os EUA se sintam compelidos a lançar alguns golpes de alerta sobre a infraestrutura militar do Hezbollah.

Com as FDI já atacando civis a 40 km dentro no Líbano (um carro com uma avó e as suas três sobrinhas foi incinerado na semana passada por um míssil das FDI), a preocupação dos EUA com a escalada é real.

É isto que preocupa a Casa Branca, afirma o diplomata. O Irã confirma que recebeu nada menos que três mensagens dos EUA num dia, dizendo a Teerã que os EUA não procuram guerra com o Irã. E um enviado americano, Amos Hochstein, tem feito rondas em Beirute insistindo que o Hezbollah não deve escalar em resposta aos ataques transfronteiriços israelenses.

“A relutância de Netanyahu em enunciar quaisquer ideias sobre o ‘dia seguinte’ em Gaza – e os grandes e ameaçadores desenvolvimentos crescentes no Líbano – estão criando uma ruptura entre as políticas dos EUA e de Israel, ao ponto de alguns na administração Biden e no Congresso começarem a pensar que Netanyahu está tentando arrastar os americanos para uma guerra com o Irã”.

“[Netanyahu] ‘não está interessado numa segunda frente no norte com o Hezbollah’”, diz o ex-funcionário, acrescentando, no entanto, que eles [na Casa Branca] acreditam que um ataque dos EUA contra as provocações do Irã poderia potencialmente transformar o desastre abjecto de Netanyahu numa espécie de triunfo estratégico.”

“Essa é a mesma lógica complicada que o guiou quando encorajou a sua alma gêmea, o então presidente Donald Trump, a retirar-se unilateralmente do acordo nuclear com o Irã em maio de 2018. Essa foi também a lógica subjacente à sua audiência no Congresso de 2002, encorajando os americanos a invadir Iraque, porque iria “estabilizar a região” e “repercutir” no Irã”.

Esses medos estão no cerne da “tragédia” que “tem que acontecer” – o sapo concordou muito cautelosamente em carregar o escorpião durante a travessia do rio, mas quer uma garantia de que, dada a natureza do escorpião, ele não picará seu benfeitor.

A administração Biden, da mesma forma, não confia em Netanyahu. Ela não deseja “ser picada” por ser arrastada para uma guerra pantanosa com o Irã.

A dor é palpável: o gabinete de Netanyahu está gradual e deliberadamente preparando o terreno para a armadilha à Administração Biden, manobrando para que Washington tenha pouca escolha a não ser juntar-se a Israel, caso a guerra se amplie.

Como em toda tragédia clássica, o desfecho surge porque os atores envolvidos fazem com que ela aconteça; eles não têm escolha a não ser fazer acontecer, porque essa é a natureza deles. “O primeiro-ministro israelense não apenas rejeita qualquer ideia ou pedido vindo de Washington; Netanyahu quer explicitamente que a guerra em Gaza continue indefinidamente, sem qualquer corolário político”, relata o ex-funcionário.

Consideremos também a definição explícita de Jake Sullivan das linhas vermelhas dos EUA: Não há reocupação de Gaza; nenhum deslocamento da sua população; nenhuma redução do seu território; nenhuma desconexão política com as autoridades da Cisjordânia; nenhuma alternativa de tomada de decisão, salvo apenas os palestinos – e nenhum regresso ao status quo ante.

Netanyahu simplesmente rejeita todas estas “linhas” numa única frase: Israel, disse ele, supervisionaria e manteria “a responsabilidade geral pela segurança” por um período de tempo indefinido. De uma só vez, ele mina o objetivo final identificado pelos EUA, deixando-os à mercê dos ventos frios de um sentimento global e interno cada vez mais antipático, e as areias da ampulheta a esgotarem-se.

O “fim do jogo” de Smotrich é evidente: Netanyahu está construindo apoio interno popular para um novo ultimato silencioso para Gaza: “emigração ou aniquilação”. Isto é um anátema para a administração Biden. As décadas de diplomacia americana no Oriente Médio “foram por água abaixo”.

Washington observa com crescente desconforto a “escalada militar horizontal” em toda a região e interroga-se se Israel sobreviverá a este laço cada vez mais apertado. No entanto, os EUA têm apenas meios e tempo limitados para restringir Israel.

O apoio imediato de Biden a Israel está criando turbulência a nível interno e acarretando um preço político que – faltando um ano para as eleições – têm consequências. Talvez fosse “da natureza de Biden” que ele pudesse acreditar que poderia “abraçar” Israel para obedecer aos interesses dos EUA. No entanto, não está funcionando – deixando-o preso com um escorpião nas costas.

Alguns argumentam que a solução é simples: ameaçar cortar o fornecimento de munições ou o financiamento que flui para Israel. Parece simples. Constituiria uma “ameaça” poderosa; mas para que isso acontecesse, seria necessário que Biden enfrentasse o todo-poderoso “Lobby” e o seu forte controle sobre o Congresso. E esta não é uma competição que ele provavelmente venceria. O Congresso está solidamente com Israel.

Alguns sugerem que uma resolução do Conselho de Segurança da ONU [CSNU] poderia impor “um fim ao pesadelo de Gaza”. Mas Israel tem uma longa história de simplesmente ignorar tais resoluções (de 1967 a 1989, o Conselho de Segurança da ONU adoptou 131 resoluções abordando diretamente o conflito árabe-israelense, a maioria das quais teve pouco ou nenhum impacto). Na quarta-feira desta semana, o CSNU aprovou uma resolução apelando a pausas humanitárias. Os EUA abstiveram-se e, muito provavelmente, a resolução será ignorada.

Então, um apelo mundial por uma solução de dois Estados poderia ser melhor? Até agora não aconteceu. Sim, teoricamente o CSNU pode impor uma resolução, mas o Congresso dos EUA “enlouqueceria” se o fizesse e ameaçaria com força qualquer pessoa que tentasse implementá-la.

No entanto, dito sem rodeios, a retórica dos dois Estados não entende o essencial: não é apenas o mundo islâmico que está sofrendo uma furiosa transformação popular – Israel também está. Os israelenses estão zangados e passionais e, com uma maioria esmagadora, aprovam a aniquilação em Gaza.

A contextualização de Netanyahu da guerra de Gaza em termos absolutamente maniqueístas – luz versus escuridão; civilização versus barbárie; Gaza como sede do mal; todos os habitantes de Gaza são cúmplices do mal do Hamas: os palestinos como não-humanos – tudo isto está despertando emoções e memórias israelenses de uma ideologia ao estilo de 1948.

E isto não se limita à Direita – o sentimento popular em Israel está a mudar de liberal-secular para bíblico-escatológico.

O presidente do B’Tselem O Conselho Executivo, Orly Noy, escreveu um artigo – O Público Israelense Abraçou a Doutrina Smotrich – que sublinha como a internalização do “Plano Decisivo” de Smotrich se manifesta no apoio popular à política de “ emigração ou aniquilação” de Israel em Gaza:

“Há seis anos, Bezalel Smotrich, então um jovem membro do Knesset no seu primeiro mandato, publicou o seu pensamento sobre um fim de jogo para o conflito israelo-palestiniano… Em vez de manter a ilusão de que um acordo político é possível, argumentou ele, a questão deve ser resolvida unilateralmente de uma vez por todas.

[A solução Smotrich propôs oferecer] “aos 3 milhões de residentes palestinos uma escolha: renunciar às suas aspirações nacionais e continuar a viver nas suas terras num estatuto inferior, ou emigrar para o estrangeiro. Se, em vez disso, decidirem pegar em armas contra Israel, serão identificados como terroristas e o exército israelense começará a “matar aqueles que precisam de ser mortos”. Quando questionado numa reunião, na qual apresentou o seu plano a figuras religioso-sionistas, se ele também se referia a matar famílias, mulheres e crianças, Smotrich respondeu: “Na guerra como na guerra””.

Orly Noy argumenta que este pensamento não está simplesmente confinado ao Gabinete ou à Direita israelita – pelo contrário, tornou-se dominante. A mídia israelense e o discurso político mostram que, quando se trata do atual ataque das FDI a Gaza, grande parte do público israelense internalizou completamente a lógica do pensamento de Smotrich.

“Na verdade, a opinião pública israelense em relação a Gaza, onde a visão de Smotrich está sendo implementada com uma crueldade que mesmo ele pode não ter previsto, é agora ainda mais extrema do que o próprio texto do plano. Isto porque, na prática, Israel está retirando da agenda a primeira possibilidade que lhe é oferecida – de uma existência inferior e despalestinizada – que até 07 de outubro foi a opção escolhida pela maioria dos israelenses”.

A implicação desta ‘smotricização’ do público é que Israel – como um todo – está tornando-se radicalmente alérgico a qualquer forma de Estado palestino existente. O público, observa ela, passou agora a ver a recusa dos palestinos em submeter-se ao poder dos militares israelenses como uma ameaça existencial em si – e razão suficiente para o seu deslocamento.

Fonte aqui


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