(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 24/11/2023)

O título acima é roubado a um livro de Aldous Huxley (“Eyeless in Gaza”), que, por sua vez, o roubou de um poema de Milton. Li-o há tanto tempo que só me lembro de que a história anda à volta de um aristocrata inglês que, depois de vaguear pela vida, entre a inutilidade e o diletantismo, se converte ao pacifismo — uma simples palavra hoje banida entre a gente civilizada que se ocupa de Gaza ou da Ucrânia. Huxley escreveu-o em 1936, antes de os nazis terem dizimado seis milhões de judeus no Holocausto e antes de os judeus terem submetido os palestinianos à Nakba, expulsando 800 mil da terra onde viviam há 15 séculos para aí criarem Israel.
De então para cá, desde 1948, viveram-se ali três quartos de século de guerras, de guerrilhas, de permanente instabilidade e de ódios mútuos insanáveis. As vítimas disso têm sido, em primeiro lugar e em dimensão muito diferente, palestinianos e judeus de Israel, mas todos, de certa maneira — na Europa, no Ocidente, no mundo árabe, em África —, têm sofrido os danos colaterais deste eterno conflito, que envolve apenas 10 milhões de pessoas, mas irredutíveis e cegas — sem olhos. É tempo de dizer basta. É tempo de o Ocidente, sobre quem pesa a tremenda responsabilidade política e moral do Holocausto e da Nakba, impor uma solução de paz e de futuro que seja justa e que seja viável. Ou o faz ou aceita definitivamente a falência de qualquer possibilidade de solução por via pacífica dos conflitos e a própria ideia nascida da Sociedade das Nações para tal. “Nunca mais” também nos diz respeito.
Comecemos então por tentar ver claro e falar claro neste ambiente de conceitos estilhaçados. O anti-semitismo, que persiste e persistirá como uma doença igual ao racismo e outras, não é, ao contrário do que alguns querem fazer crer, o mesmo que anti-sionismo, sobretudo na sua versão histórica, dos fundadores de Israel. E o anti-sionismo também não é o mesmo que a oposição à política de sistemática ocupação de terras e casas palestinianas por colonos israelitas, incentivados por um Governo de fanáticos religiosos e protegidos por um exército mais ocupado em defender a ilegalidade das ocupações do que em defender o país — como se viu em 7 de Outubro. Se o porta-voz do Hamas diz que o objectivo é correr com todos os judeus da Palestina, também um ministro de Netanyahu concebeu um plano com a “solução final” de expulsar os palestinianos de Gaza para o deserto do Sinai, e o Egipto que se ocupe deles. E outro, ainda mais radical, apresentou como solução perfeita despejar uma bomba nuclear táctica em Gaza — sendo suspenso por Netanyahu, numa original punição disciplinar transitória.
Denunciar a política criminosa do actual Governo de Israel e da maior parte dos seus antecessores para com os palestinianos não é justificar o terrorismo do Hamas ou outros, é simplesmente um acto de honestidade intelectual. Enquanto isto não for aceite por todos, não é possível avançar em direcção alguma.
Achar que Israel pode desrespeitar dezenas de resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas e continuar a ser tratado como um dos “nossos” equivale a renunciar à denúncia e ostracização dos países que deliberadamente vivem à margem da lei.
A seguir ao 7 de Outubro todos os dirigentes ocidentais correram a Telavive para manifestarem a sua solidariedade sem limites a Israel e ao seu Governo — na verdade, para lhe darem carta-branca para o “direito de legítima defesa” sem limites que todos sabiam que se iria seguir. Em nome da Europa e usurpando poderes de representação externa que não lhe cabem, Ursula von der Leyen incitou abertamente Israel à vingança e Macron chegou a oferecer forças militares para o ataque a Gaza. Paradoxalmente, foram os americanos os mais comedidos: Biden avisou os israelitas para não cometerem os mesmos erros que eles haviam cometido após o 11 de Setembro e desde cedo o secretário de Estado Antony Blinken multiplicou os esforços para que Israel não resvalasse para um excesso de legítima defesa que viraria as opiniões públicas contra si. Tudo em vão: o que hoje temos no terreno, e à vista de quem não feche os olhos, é um Estado terrorista a combater uma organização terrorista à custa de uma população civil e da destruição à bomba de prédios, hospitais, escolas, mesquitas e campos de refugiados. Chega a ser pornográfico ver a imprensa ocidental, com a CNN americana à cabeça, ainda e sempre ocupada em mostrar reportagens junto dos colonos israelitas da Cisjordânia, atacados pelo Hamas em 7 de Outubro. Não que esse acto extremo de barbárie possa ou deva ser esquecido, mas porque dele já tudo foi dito, visto e contado, uma e muitas vezes. Mas nada é contado sobre os 200 palestinianos, civis e agricultores, que desde 7 de Outubro foram mortos nessa mesma Cisjordânia às mãos de colonos ou das forças de defesa de Israel. E enquanto os jornalistas-vedetas da televisão americana fazem entrevistas pungentes com familiares dos mortos ou reféns israelitas, ali ao lado, em Gaza, os seus pares palestinianos morrem ou vêem as suas famílias mortas pelos bombardeamentos cegos da aviação israelita enquanto trabalham para mostrar ao mundo o outro lado da verdade. Morrem eles, morrem, até agora, mais de 100 trabalhadores da ONU, atacados em campos de refugiados ou escolas devidamente identificados como instalações da ONU, mas que para Israel são quartéis-generais do Hamas. Como os prédios, os bairros inteiros reduzidos a cinzas, como há muito não se via em guerra alguma, os hospitais transformados em campos de batalha de soldados contra médicos e crianças em incubadoras, como jamais se viu em guerra alguma. Cinco semanas de prazer sanguinário à solta, toda a mais sofisticada e cara parafernália de morte ao serviço da vingança de Israel, com um saldo de 14 mil mortos civis, cinco mil crianças assassinadas e uma fúria de morte tão insaciável que, mesmo para receber 50 dos seus reféns em troca de quatro ou cinco dias de pausa no massacre, quase metade do Governo israelita votou contra.

Como pode a Europa assistir a tudo isto sem uma condenação conjunta e violenta de Israel em nome dos princípios que advoga e apregoa algures e noutras circunstâncias? Quando, por exemplo, perante a morte de quatro palestinianos/portugueses, apanhados por um bombardeamento israelita na “zona de segurança” do Sul de Gaza, para onde o Governo de Israel mandou os palestinianos fugirem, o nosso MNE diz que telefonou ao seu homólogo israelita e manifestou-lhe o seu “desgosto”, de que quantos mais desgostos destes precisarão os dirigentes europeus até que a vergonha, pelo menos, os reduza ao silêncio cúmplice? Aquilo que, no final, deixarão para a história.
2 Segundo o editorial do Expresso, eu, no meu “tom assertivo e tantas vezes polémico”, teria defendido “o fim da independência funcional do Ministério Público (MP)”. Assertivo e polémico, vá que não vá, durmo bem com isso. Mas, quanto ao resto, é preciso rigor nas palavras: como resulta claríssimo do meu último texto, eu não defendi “o fim da independência funcional do MP”, mas sim o fim da sua autonomia funcional. O que faz toda a diferença e, não por acaso, tive ocasião de ler e ouvir esta semana vários entendidos criarem deliberadamente a confusão entre os dois conceitos, com o fim óbvio de concluírem que quem critica a total autonomia funcional do MP — a faculdade de qualquer procurador agir livremente sem dar satisfações internas a ninguém — está, no fundo, a defender a intromissão do poder político na investigação criminal. A conclusão é absurda e intelectualmente desonesta, mas é para isso mesmo que se cria a confusão. Para ajudar a ver claro dou um exemplo extraído da Operação Influencer. Como é sabido, os procuradores levaram ao juiz de instrução uma súmula (“indiciação”) das suspeitas contra os arguidos, na qual fundamentavam até pedidos de prisão preventiva — todos recusados pelo juiz. E entre os factos que melhor alicerçavam os indícios de crimes estavam três, todos relevantes, mas falsos e resultantes de erros imperdoáveis: num, um dos arguidos dizia que ia falar com António Costa e Silva, mas o MP chamava-lhe António Costa, primeiro-ministro; no outro, era marcada uma reunião entre o chefe de gabinete do PM e um dos arguidos, não para o Palácio de S. Bento, local de trabalho do primeiro, mas para a sede do PS, e no outro uma portaria supostamente feita à medida por uma empresa privada e para satisfazer os seus interesses e adoptada pelo Governo afinal estava errada e não tinha nada a ver com o assunto. Não estivesse a defesa dos arguidos atenta e dado com os erros, e era assim que o processo teria sido apresentado ao juiz. Um processo tão importante que acabou por determinar a queda do Governo e a convocação de eleições antecipadas. Ora, tivesse isto acontecido numa empresa privada, num dossiê trabalhado durante quatro anos, e os autores dos erros poderiam começar a procurar trabalho noutro lado. Mas aqui não: em obediência ao sacrossanto princípio da sua autonomia funcional, eles limitam-se a recorrer da decisão e a verem reforçados os meios de investigação ao seu alcance, prosseguindo as suas carreiras como se nada fosse. O seu directo superior hierárquico não muge nem tuge e a PGR, dita responsável máxima do serviço, acha que não deve nem teme: não deve explicações nem teme consequências. Mas eu é que sou “assertivo”…
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia