O direito — o nosso e o dos outros

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 24/03/2023)

Miguel Sousa Tavares

Se, de facto, a Rússia raptou 6000 crianças ucranianas e, à revelia dos seus pais, as levou para a Rússia, com o conhecimento ou o consentimento do Presidente russo, então Vladimir Putin pode ser indiciado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), órgão das Nações Unidas, sob a acusação de crime de “genocídio”, ao abrigo do artigo 5º, alínea e), dos seus estatutos, que reza o seguinte: “Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.” Porém, tal pressupõe previamente diligências de investigação, de prova, de notificação, de contraditório e de defesa que, nos termos do artigo 18, manifestamente não parecem ter sido feitas antes de, com todo o ribombar de canhões na imprensa internacional, o TPI ter declarado Putin “arguido” e contra ele ter emitido um mandado de captura que dizem ser válido em 142 países signatários dos seus estatutos, Portugal incluído — como pressurosamente informou ao país e ao mundo o ministro João Cravinho.

Mas, além dessa minudência processual, concorre ainda outra questão nada menor. Sucede que, não só a Rússia — para efeitos processuais definida como “outra parte” — não é signatária e membro do TPI como não o são também países como Israel, a Turquia, a Arábia Saudita ou os Estados Unidos. Et pour cause. Se o fossem, Israel cairia sob a alçada do artigo 7º, alínea j) — “Crimes contra a Humanidade”, por apartheid; a Arábia Saudita veria o seu príncipe regente, o que mandou cortar às postas o jornalista saudi-americano Khashoggi na embaixada saudita de Istambul, e a quem Biden foi visitar a Riade para lhe pedir em vão petróleo, acusado por “homicídio”, ao abrigo do artigo 7º, alínea a); Erdogan, a quem os outrora Estados de honra da Escandinávia agora mendigam um nihil obstat para que eles os deixe entrar na NATO, seria declarado cadastrado internacional nos termos do artigo 7º por todos os “crimes contra a Humanidade” que pratica à vista de todos contra a comunidade curda do seu país; a NATO, com os Estados Unidos à cabeça, e o ex-Presidente George W. Bush teriam de responder, de acordo com o artigo 8º, que reza sobre os “crimes de guerra”, sobre os 78 dias de bombardeamentos aéreos de Belgrado, onde morreram 2500 civis inocentes em troca de conseguir a rendição do criminoso de guerra Slobodan Milosevic, transportado em glória para ser julgado em Haia… pelo TPI, ou sobre a “Operação Choque e Pavor”, mais conhecida como a 2ª Guerra do Iraque, responsável por 100.000 mortos, quando um grupo de aliados dos americanos, incluindo Portugal, invadiu um país soberano para procurar armas que não existiam — ambas as operações sem mandato da ONU; e os Estados Unidos e três dos seus Presidentes, incluindo o actual, teriam de responder, nos termos do artigo 7º, alínea e), pelo crime de “prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais do direito internacional”. Porque Abu Ghraib (fechada em 2014) e Guantanamo são prisões ilegais, fora de quaisquer jurisdições reconhecidas, para onde os presos foram transportados clandestinamente (e com a cooperação portuguesa), depois de terem sido sequestrados nos seus países, e onde estão, alguns porventura inocentes, há dez ou doze anos, sem direito a advogados, a contactos com as famílias e a correspondência com o exterior, sem serem julgados ou condenados, a poderem ser torturados por ordem presidencial, e a poderem ficar ali até ao final da vida sem que nenhum tribunal se preocupe com eles.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Sim, Putin não é flor que se cheire. É mesmo um assassino, como disse Biden. Tem aquele hábito desagradável de se livrar dos seus adversários envenenando-os no estrangeiro ou fazendo-os suicidar-se saltando do alto de prédios na Rússia. Nisso, como em outras coisas, embora mais brandamente, segue a tradição dos czares russos que empalavam os seus inimigos fora das muralhas do Kremlin e ali os deixavam a agonizar para servirem de exemplo. Na guerra da Ucrânia, seguramente que, em Bucha e não só, os russos cometeram barbaridades.

Mas só quem não conheça a história da selvajaria secular dos eslavos e da barbaridade das guerras civis, como esta é, só quem ainda se deixe embalar pela narrativa unilateral que aqui, no Ocidente, nos é servida, é que pode acreditar que esta é uma guerra única: bandidos de um lado, anjinhos do outro. Às tantas, a Amnistia Internacional ousou quebrar timidamente essa unanimidade informativa e opinativa estabelecida como verdade única e logo foi trucidada e silenciada na Ucrânia e nas “democracias liberais”.

Temos, pois, Putin, como fugitivo internacional, segundo um critério judicial que se aplica a ele mas não a outros. E o que ganhamos com isso? Segundo uns crânios domésticos de Relações Internacionais e Direito Internacional que tenho escutado, ganhamos muito: agora o homem está diminuído, desprestigiado, acossado. E foi esse pobre e irrelevante homem, esse desprestigiado fugitivo a quem o ministro Cravinho e mais 141 dos seus homólogos prometem deitar a mão, que eu vi esta semana receber em Moscovo o outro homem que vai decidir os destinos do mundo: Xi Jinping. Aquele sobre quem, numa perfeita definição da imensa estupidez aonde nós, o Ocidente, chegámos, um comentador político chinês resumiu a mensagem dos Estados Unidos: “Ó Xi, diga lá ao Putin que vai deixar de o apoiar para que a seguir nós nos ocupemos de si sem ter a Rússia a apoiá-lo.” Caramba, e andam aqui os nossos mestres, professores doutores de Relações e Política Internacional, os auditores dos cursos de Defesa Nacional, os autores (que são sempre os mesmos, dê o mundo as voltas que der) dos Conceitos Estratégicos de Defesa Nacional, a elaborar consumadas teses sobre geoestratégia mundial e, afinal, um modesto comentador da TV chinesa resume tudo numa simples frase que transforma tudo o resto em absoluto ridículo!

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Como disse Aleksandar Vucic, Presidente da Sérvia, a consequência mais óbvia da declaração do TPI é que a Ucrânia fica sem interlocutor com quem negociar a paz. Mas não será isso justamente o que se pretende? Todas as tentativas de mediação surgidas até agora, por mais tímidas que fossem, foram descartadas à partida pelo Ocidente, por inviáveis ou não credíveis: a do Brasil, a da Turquia, a da China, a do Papa. Eufórico, o secretário-geral da NATO, Stoltenberg, já avisou que na próxima cimeira da organização, em Vilnius, vai pedir que o patamar dos 2% do PIB que cada membro tem de gastar com a defesa seja aumentado, e não faz segredo que a área de influência e futura actuação da NATO deve estender-se para a Ásia-Pacífico, assim acompanhando a sua nova Carta, não escrita, que é a de ser a extensão do braço armado dos Estados Unidos, aonde quer que ele vá. Quanto à Ucrânia, e como explicou Teresa de Sousa em recente artigo no “Público”, permaneceremos amarrados em duas posições inconciliáveis: o “campo da paz” e o campo da guerra — perdão, o “campo da justiça”. Sendo que, segundo ela, o campo da paz é-o “da paz a qualquer preço”, e o da “justiça” será então o da guerra a qualquer preço, visto que a justiça não tem preço. Mas eis que agora andam muito incomodados porque, depois de terem passado um ano a tecer loas ao inacreditável fortalecimento do Ocidente que o aventureirismo de Putin tinha proporcionado, olham à roda e vêm uma Europa economicamente destroçada e a China a ocupar paulatina e sabiamente todo o resto do mundo deixado para trás e que estranhamente não vê vantagem em “ocidentalizar-se” — para usar a expressão escandalizada de uma ex-embaixadora americana na NATO. Tudo isto vai acabar espantosamente mal para o Ocidente.

2 Já toda a gente percebeu que este plano governamental para a habitação foi feito em cima do joe­lho e fruto do desespero e da desesperança. É verdade, porém, que não se conhece nenhum outro em alternativa nem tal seria possível. Porque a situação actual não reflecte, de facto, uma crise de habitação, mas uma crise anterior, a montante e muito mais profunda, que nenhum plano de urgência resolverá num par de anos. Numa das muitas discussões que ocorrem, ouvi dizer que o problema estoirou porque, enquanto que até à última década se construíam 800.000 casas a cada dez anos, na última década só se construíram 100.000. Mas não é esse o problema: basta percorrer o país para ver que não faltam casas vazias em Portugal, mas se o Governo quiser deitar-lhes a mão, não encontrará ninguém que queira ir viver nelas.

Não há um problema de falta de casas em Portugal: há, sim, em Lisboa e no Porto e suas periferias. E esse problema chama-se desertificação e abandono do interior e começou a sério há 30 anos.

E sabem quem foi o primeiro responsável político por ele? Um senhor que ainda há dias fez um sermão à pátria, como sempre culpando os outros pelos problemas que ele, na altura, jurou ter deixado resolvidos para sempre. Esse mesmo: Aníbal Cavaco Silva. Há 30 anos — e porque na sua imensa incultura política não percebeu que a agricultura era muito mais do que um negócio de deve e haver —, Cavaco Silva começou por vender a agricultura portuguesa a Bruxelas por tuta e meia. Aí se iniciou o processo de morte do mundo rural e consequente êxodo para as cidades, acentuado depois pelo abandono, sempre subsidiado, das pescas, das indústrias extractivas, dos têxteis, sem nenhuma contrapartida oferecida a quem se quisesse estabelecer no interior e no vazio deixado. Desprezando o modelo europeu das cidades de média dimensão, Cavaco Silva abandonou também os caminhos de ferro e dedicou-se a construir auto-estradas para, como disse então Ribeiro Telles, os espanhóis colocarem cá mais depressa os produtos deles. Foi quando, seguindo sempre um critério rentabilista, se começaram a fechar hospitais e centros de saúde na província, tribunais, correios, escolas, tudo o que representasse a presença do Estado junto dos portugueses, que viviam num círculo vicioso de despovoamento. Apostou tudo nos serviços e no turismo, convidando os portugueses a virem viver para o Porto e Lisboa ou para trabalharem no Algarve, no Verão. Quem veio a seguir a ele continuou o mesmo caminho sem retorno para um país que hoje parece sem salvação à vista. E não foi por falta de avisos ou falta de estatísticas e relatórios crescentes do que se estava a passar. Foi porque, como sempre, nunca há tempo de pensar o país além da próxima eleição ou da próxima greve.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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Crimes de guerra

(António Guerreiro, in Público, 12/08/2022)

António Guerreiro

O que são “crimes de guerra” — como os que têm sido apontados à Rússia, mas também à Ucrânia — no tempo da guerra técnica, da massificação e mecanização do combate conduzido a uma distância cada vez maior (que as aproximações não anulam) e em que a aniquilação e a destruição se tornaram eminentemente impessoais? A resposta é simples e dolorosa: a actual categorização de “crimes de guerra” não é mais do que um vestígio piedoso de uma ética que os mecanismos gigantescos da guerra actual tornaram completamente anacrónica: a ética guerreira fundada em regras que podiam ser as do ódio pelo inimigo, mas sem que, pelo menos num nível superestrutural, deixasse de haver a afirmação de outros valores.

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Não começou agora esta experiência da guerra em que tudo é reduzido à categoria de material, numa guerra de materiais e, num grau crescente, de armas imateriais. A Primeira Guerra Mundial foi muito traumática exactamente porque inaugurou esta nova forma de belicismo. E, num fragmento de Minima Moralia, Adorno sintetiza assim a lição da Segunda Guerra Mundial: “Se a filosofia da história de Hegel tivesse abrangido a nossa época, as bombas-robots que eram os V2 de Hitler teriam o seu lugar entre os factos empíricos que ele [Hegel] considerou que exprimem o estado alcançado pelo Espírito do mundo”. E, ampliando esta ideia de que o “espírito do mundo” pôde ser visto montado nas asas de um foguete sem cabeça, e não num cavalo (como o viu Hegel), Adorno tira a “satânica” conclusão de que o “sujeito” desapareceu — já não há piloto no avião, já não há uma pessoa detentora da arma. Muita energia foi gasta pelos sujeitos “para que já não exista o sujeito”, diz Adorno.

Não há exemplo mais eloquente deste desaparecimento do sujeito (e, sem sujeito, onde está a o crime e o criminoso de guerra?) do que a execução de um inimigo, sem protocolos judiciários e reduzido à condição de simples alvo vulnerável, mesmo que se esconda nos antípodas. Foi o que aconteceu recentemente ao líder da Al-Qaeda, o egípcio Ayman al-Zawahiri, morto por um drone, no Afeganistão.

Um drone, na definição técnica que podemos ler em Théorie du drone, de 2013, um livro essencial para percebermos as características das guerras actuais, da autoria de um investigador em filosofia no Centre National de la Recherce Scientifique chamado Grégoire Chamayou, é uma câmara voadora de alta resolução, telecomandada e equipada com um míssil. Chamayou também o designa como um OVNI, isto é, um objecto violento não identificado que pulveriza completamente as categorias clássicas que definiam a guerra, incluindo as próprias categorias de acção e lugar. O que é um lugar onde decorre a guerra e onde é que uma acção se realiza (a acção de matar, por exemplo) quando essa acção se estende entre pontos tão distantes como uma sede da CIA, em Washington, ou uma base militar no Nevada e uma aldeia do Afeganistão? O drone predador, que substitui a guerra por uma caça ao homem, fica evidentemente fora da equação dos “crimes de guerra”. É a arma da impunidade absoluta: mata sem que se cometa crime e sem que chegue a haver guerra. Do ponto de vista de um tradicional ethos militar, o drone é a arma dos cobardes: não requer bravura nem espírito de sacrifício e erradica totalmente a exposição à violência por parte de quem o comanda. Quem o usa é completamente invulnerável.

O livro de Chamayou encerra com um capítulo que avança com uma hipótese sinistra: a de que os drones passarão a ser telecomandados nos laboratórios de investigação militar por robots. Esta “robótica letal autónoma” não é ficção científica, é o resultado de todo o conhecimento e energia despendidos para que “já não exista o sujeito”, como previu Adorno. Os drones accionados e telecomandados por robots não requerem a presença do humano em nenhum momento da operação, nem acima dela. São as máquinas que tomam a decisão de matar, já não há ninguém a carregar no botão. Uma das vantagens desta robotização que expulsa o humano é que se tira o tapete a quem tem contestado a utilização dos drones. E os mais veementes nessa contestação, diz-nos Chamayou, nem sequer foram os pacifistas, foram os pilotos da aviação militar, os “cavaleiros do céu”, essa casta superior que de repente se viu desapossada da sua nobreza, baseada no ethos guerreiro, isto é, no heroísmo, na gravidade e na virilidade de que ele sempre se serviu.

“Crimes de guerra”? Que conversa tão antiga, tão mole, tão destituída de sentido quando percebemos o que é a guerra actual.



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