Governar para a confiança

(Ricardo Paes Mamede, in Diário de Notícias, 03/09/2019)

A confiança é fundamental para o desenvolvimento das economias. A ideia é tão intuitiva que dificilmente pode ser rebatida. Como muitas ideias intuitivas, é explorada à exaustão – muitas vezes para justificar o injustificável. Os governos devem promover a confiança, sim. O modo como isto se traduz em políticas específicas é menos óbvio do que parece.

Numa economia de mercado capitalista as decisões de investimento são tomadas por um conjunto alargado e disperso de agentes. A maioria deles aplica os seus recursos em novas actividades produtivas (ou endivida-se para o efeito junto de quem tem esses recursos) se e só se acreditar que os retornos dessa decisão compensarão o investimento num horizonte temporal não muito distante. Quando o futuro é muito incerto há menos gente disposta a arriscar. Por isso, a instabilidade e a imprevisibilidade são inimigas da actividade económica.

Esta conclusão tem um travo conservador óbvio. Levada ao extremo leva a que as transformações sociais relevantes sejam sempre adiadas, com receio da instabilidade que podem gerar.

O conservadorismo que decorre de endeusar a confiança tem associado três tipos de problemas. Primeiro, contribui para perpetuar injustiças que só podem ser combatidas através de mudanças sociais profundas. Segundo, tende a impedir soluções que seriam mais eficientes no médio e no longo prazos, apesar da incerteza que geram no imediato. Terceiro, mesmo na resposta aos problemas de curto prazo, sobrevalorizar a confiança pode ser uma resposta desastrosa aos problemas que as sociedades enfrentam.

O erro de sobrevalorizar a confiança dos investidores face a outras dimensões do funcionamento das economias e das sociedades ficou patente no modo como a União Europeia lidou com a crise internacional há uma década. A tese então dominante, a “austeridade expansionista”, defendia que a melhor forma de responder à crise seria a austeridade orçamental e a redução dos salários. Só assim, dizia-se, os governos transmitiriam aos investidores internacionais a sua determinação em pôr as suas economias em ordem. Foi esta tese que os governos portugueses (e muitos outros) seguiram entre 2010 e 2015.

O apelo à “fada da confiança”, como então lhe chamou Paul Krugman, teve como resultado uma recessão muito mais profunda e uma recuperação muito mais lenta na UE do que noutras geografias e noutros períodos. O pânico e a revolta que gerou na maioria das populações afectadas sobrepuseram-se a qualquer avaliação positiva que alguns actores financeiros podem ter feito da estratégia adoptada.

Inevitavelmente, o argumento da confiança será de novo esgrimido em Portugal até às eleições legislativas de Outubro. O facto de a taxa de juro da dívida pública portuguesa estar em mínimos históricos, sendo já inferior à do Estado espanhol, será apresentado como prova da confiança conquistada junto dos investidores internacionais. Sem surpresas, tal feito será atribuído à gestão das contas públicas do actual governo.

É aqui que uma ideia intuitiva se transforma em abuso de lógica. Sem dúvida que a responsabilidade orçamental é um indicador fundamental para os mercados financeiros, num mundo onde o financiamento dos Estados depende dos investidores privados internacionais. No entanto, como já aqui escrevi, a política financeira do governo é apenas um de vários factores explicativos para a evolução dos juros sobre a dívida pública portuguesa.

Para além disso, reduzir a importância da confiança ao comportamento dos actores financeiros é menosprezar o que sabemos sobre o funcionamento das sociedades. Os cientistas sociais enfatizam desde há muito o papel da confiança interpessoal e nas instituições como factor de coesão social e de estabilidade. O historiador Yuval Harari, no seu muito badalado Sapiens, refere-se às “ordens intersubjectivas” que asseguram a coordenação e a cooperação em sociedades complexas. Tais ordens, assentes em crenças e valores partilhados, incluem o sistema de leis e a ideia de nação, mas não só.

As pessoas precisam de acreditar que a democracia contribui para traduzir a vontade colectiva, que o Estado está ao serviço de todos e nāo de uns poucos, que a justiça social orienta a acção das instituições públicas. Este é o tipo de confiança decisivo para o desenvolvimento a prazo das sociedades. A gestão prudente das contas públicas é apenas uma pequena parte de uma governação responsável. Quem governa deve ter a ambição de ir muito além disto.

*Economista e Professor do ISCTE-IUL

[O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.]

O ELEITORALISMO BOM E O ELEITORALISMO DOS VELHACOS

(In Blog O Jumento, 16/10/2018)

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Andam por aí algumas virgens armadas em debutantes neste baile em que está transformado o debate político sugerindo que este OE é eleitoralista. Claro que é eleitoralista, todos os OE são elaborados a pensar em eleições e desde os tempos de Salazar e Marcelo que, felizmente, os orçamentos são eleitoralistas. Há quem prefira governos que não têm de se preocupar com a realização de eleições, mas ainda bem que esses ainda não mandam e o governo de António Costa enfrenta eleições.

Mas dizer que em Portugal um OE que prevê um défice de 0,2% é eleitoralista não só dá vontade de rir, como são os críticos do governo que lhe estão a dar o mais poderoso dos argumentos eleitoralistas. Se um OE com aquele défice consegue margem para ter tantas medidas acusadas de eleitoralismo, então é porque o governo é mesmo bom.

Dar aumentos de pensões, de vencimentos, de investimentos na saúde, de redução do custo da energia, e ao mesmo tempo ter um OE equilibrado, é algo de muito bom na história de Portugal deve ser considerado um milagre; desde os tempos em que acabou o ouro do Brasil que não se via nada semelhante, nem no tempo do Salazar!

Mas seria bom que estes paspalhos se lembrassem da última vez que elogiaram um governo e um orçamento elaborado a pensar em eleições: que era muita generosidade o reembolso da sobretaxa, que um défice de 3% punha a Maria Luís ao lado do Salazar no pódium dos magos das finanças. Nesse tempo cortar salários, promover despedimentos e cortar pensões eram um bom motivo para votar num governo da extrema-direita chique.

Nesse tempo, essa extrema-direita chique, que agora está acoitada no Observador, não reparou que a antecipação das receitas fiscais de 2016 foi o truque usado para cumprir o défice, não sabiam que o bingo do reembolso da sobretaxa era batota eleitoral com cartas marcadas. Mas eles sabiam tão bem o que tinham montado para 2016, ano em que contavam governar e pedir um segundo resgate para poderem continuar a governar de acordo com a agenda da extrema-direita.

Quando Passos Coelho anunciou o diabo – e toda a extrema-direita estava à espera que o governo caísse sob o peso das contas públicas -, não falaram em OE eleitoralista, nem o OE de 2016, nem o de 2017. Agora sim, já deram pelo eleitoralismo, têm toda a razão, há um eleitoralismo bom e um eleitoralismo digno de velhacos.


Fonte aqui

Não foi para isto que se fez a “geringonça” 

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 29/03/2018) 

Daniel

Daniel Oliveira

O debate técnico sobre a integração ou não da recapitalização da Caixa Geral de Depósitos no défice não me faz mover um dedo sobre o teclado. É matéria que não diz nada sobre a realidade do país e das finanças públicas. Deixo o tema para os contabilistas que tomaram conta da política e dos jornais.

Mas os números do défice, esses, têm efeitos bastante reais. E a verdade é que atingimos o número histórico de 0,92% do PIB, abaixo das previsões do Governo, que já eram mais baixas do que nos era exigido. As previsões nunca pararam de mudar, sempre a baixar. Quando a primeira previsão foi apresentada, em outubro de 2016, era de 1,6%. Quando o programa de estabilidade foi apresentado, em abril de 2017, era de 1,5%. Quando o Orçamento de Estado foi apresentado, em outubro de 2017, desceu para 1,4%. As razões para as quedas foram a redução da despesa com juros da dívida e a subida das receitas por causa da retoma da economia e do emprego.

Como se sabe, apesar do aumento da carga fiscal, os impostos baixaram. É que as duas coisas não são a mesma coisa. Isto justifica-se com a recuperação do emprego e mais trabalhadores a descontar para a segurança social. As vozes críticas dizem que o Governo não fez nada, que foi a economia que permitiu baixar défice por via do aumento das receitas. Há qualquer coisa que escapou a estas pessoas sobre o que a esquerda dizia sobre a receita errada da austeridade. A tese era mesmo esta: que só o crescimento da economia permitia um crescimento da receita e que era assim mesmo que se equilibrariam as contas públicas.

Mas Rui Rio quer reduzir mais a despesa, para baixar impostos. Ao mesmo tempo que o PSD se queixa dos cortes na saúde e na educação. Há os dias em que o PSD quer menos Estado, que é quando falamos de impostos e défice. E há os dias em que o PSD quer mais Estado, que é quando falamos de serviços públicos. E assim se agrada ao cidadão contribuinte e ao cidadão utente sem nunca ter de fazer escolhas.

O saldo primário do Estado é de 3%, o segundo maior da Europa. Apesar da despesa em saúde e noutras áreas ter aumentado, os serviços estão em rutura. E, apesar de no último ano se ter recuperado alguma coisa, o investimento público continua em mínimos históricos. Para que o défice deixe de ser uma obsessão que esmaga tudo o resto, é preciso que António Costa tire as rédeas do Governo a Centeno e seja mesmo primeiro-ministro

Pois eu concordo com os dias em que o PSD está preocupado com a rutura dos serviços públicos. Não gosto de défices altos, porque eles comprometem o futuro. Mas não troco défices muitíssimo baixos pela recuperação de anos em desinvestimento no SNS ou a retoma do investimento público para apetrechar o país de instrumentos que permitam tornar a atual recuperação económica em mais do que uma fase passageira.

Se tirarmos as despesas com a dívida, o Estado está com um saldo positivo. O saldo primário do Estado é de 3%, o segundo maior da Europa. Isso quer dizer que está a tirar dinheiro à economia. Apesar da despesa em saúde e noutras áreas ter aumentado, os serviços estão em rutura. E, apesar de no último ano se ter recuperado alguma coisa, o investimento público deste governo continua em mínimos históricos. Ao mesmo tempo que se conseguem valores do défice muito abaixo do exigido pela Europa e do previsto pelo Governo. E já todos perceberam que será sempre abaixo do previsto, porque é assim que Centeno quer.

É importante não insistir numa divisão injusta dos méritos e falhanços. Mário Centeno não é o responsável pelo défice e Adalberto Campos Fernandes responsável pela situação aflitiva no SNS. Centeno é responsável pelas duas coisas. Era isso que o ministro da Saúde queria dizer quando disse, hoje no Parlamento, “somos todos Centeno”. E escusadamente responsável. Se há folga quando ainda estamos a recuperar de anos de cortes em serviços fundamentais para as pessoas e de uma redução insensata do investimento público é para isso, e não para preparar a carreira europeia com que Mário Centeno conta, que a folga deve ser usada. E seria bom que o resto da esquerda esquecesse por uns tempos as próximas eleições e não se ficasse apenas pelos rendimentos das pessoas, por mais importantes que eles sejam. Há aquele rendimento invisível e cujo investimento leva uns anos a sentir-se: SNS de qualidade, boa escola pública, investimento público com efeitos reprodutivos na economia.

Mas para que o défice deixe de ser uma obsessão que esmaga tudo o resto é preciso que António Costa tire as rédeas do Governo a Centeno e seja mesmo primeiro-ministro. É que não foi para fazer brilharetes em Bruxelas que se tirou Passos do poder. Foi para recuperar a vida das pessoas. O que, num governo de esquerda, não se pode sentir apenas nos seus salários.