O biombo moralista

(Francisco Louçã, in Público, 16/05/2017)

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Um dos curiosos e preocupantes argumentos dos que exigiram um voto incondicional em Macron e que nele anteciparam o sinal de uma Europa ressuscitada foi o apelo moralista. O que nos disseram é que se votaria em Macron por razões morais ou, para quem não tem o direito de voto em França, que teríamos de apoiar Macron por razões moralistas.

Sugiro que paremos um momento para pensar sobre este argumento moral. É que ele é fácil demais. É preguiçoso e é, ao mesmo tempo, arrogante. De facto, o argumento começou mal, oscilou entre a desvalorização do candidato (um dos seus apoiantes veio lembrar a lógica anterior do “ou o fascista ou o escroque”, o que não é elogio que se preze) ao mesmo tempo que se exigia que ele fosse amado, e a lógica aterradora (o voto moral), que também o desvaloriza pintando-o como o mal menor. Talvez por isso, a exigência moralista radicalizou-se num apelo ao apoio a Macron salvador da Europa, ressurreição também ela moralizadora, e é essa factura que vamos pagar.

Ora, moral e política são campos distintos da vida humana e é perigoso sobrepô-los na vida pública. De facto, proporem-nos uma posição política sob um argumento moral é uma forma de ditame que exclui a liberdade de decidir numa democracia, entre pessoas com ideias autónomas e diversas.

O que esta chantagem oculta é que, sim, há razões morais que determinam as acções de cada pessoa, mas isso não basta para uma decisão colectiva. Cada um e cada uma tem a sua moral, os seus valores e o seu modo de ver o comportamento desejável, até a forma de valorizar as expressões de sentimentos ou de apreciar a minha vida e a minha vida na comunidade em que vivo e, assim, os outros. Há portanto valores morais contra a injustiça, contra a mentira ou contra o fascismo, ou de defesa do direito dos refugiados, como há outros diversos. Mas a minha moral não é nem pode ser uma política, por que não pode ser imposta aos outros – os meus valores comprometem-me e justificam-me só a mim, não são mensuráveis numa escala em comparação com os dos outros. Não há uma moral pessoal superior a outra, o que podemos avaliar são as acções que se justificam por decisões e nada mais.

A política, portanto, é de um domínio distinto do da moral e tem mesmo de se separar dela na sua justificação, não por não haver razões íntimas para cada pessoa escolher o seu caminho, mas porque o caminho de toda a gente tem de ser escolhido entre toda a gente. Assim, eu não posso impor a minha moral como fundamento para a acção colectiva; a democracia, pelo contrário, é a forma de escolha cujo único fundamento é a escolha comum. Se uma moral fosse a lei da decisão, então estaríamos num regime autoritário. Só houve democracia quando as repúblicas se emanciparam da moral teocrática e começaram por afirmar a liberdade de crença, é conveniente não esquecer.

Sugiro portanto aos defensores moralistas de Macron que aliviem o seu diktat. Até porque este biombo só tem por função ocultar o rápido encarrilar do novo presidente no hollandismo que seria de esperar e que nada tem de moralista: ele faz a sua viagem inaugural a Berlim, ele quer uma parceria com Merkel, ele sugere rever os tratados europeus, ele rejeita a mutualização das dívidas, tudo já visto. Mas ele quer também governar com a direita em sua casa e, na Europa, quer instalar um ministro das finanças (que manda nos orçamentos nacionais? dispensa os parlamentos?) como os alemães já sugeriram, e quer até “convenções” em todos os países europeus a partir do início de 2018. Razões morais? Tudo esquecido, claro está. Política pura e dura.

Macron, ungido pela voz moralista de tantos apoiantes que adivinhavam nele o grande consenso e até mesmo a “esquerda” moderna, livra-se indiscretamente dessa aura de unanimismo e ei-lo a reconstituir a direita europeia para a política europeia que nos ameaça. Afinal, fez o que a sua natureza ditava – seguiu a sua moral.

Macron é trendy

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 14/05/2017)

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Da necessidade de derrotar Le Pen nasceu um boneco. Mesmo tendo vencido com os votos da esquerda que o despreza e sendo o candidato que menos entusiasmava os seus próprios eleitores, o coro de papagaios que enche o eco televisivo transformou-o numa esperança. Ex-banqueiro, ex-relator de Sarkozy, ex-conselheiro de Hollande, ex-ministro de Valls, o oportunista saltitou até ao céu sem compromissos. “Eu reivindico a imaturidade e a inexperiência política”, gritou para uma plateia embrutecida pela aldrabice populista do candidato antissistema que o sistema adora. Fazer um caminho político passando por várias eleições é coisa “de um tempo antigo”, disse. E Macron é uma coisa do futuro, onde os partidos são startups e os presidentes melões por abrir. Jovem, belo, impecavelmente vestido, tudo nele é moderno. Em entrevistas sobre negócios usa, num inglês irrepreensível, os termos da moda. Tem a lábia de vendedor de oportunidades que deslumbra qualquer “colaborador” num fim de semana de team building. Faz parecer revolucionária a certeza de que tudo vai ficar um pouco pior. Tudo nele cheira bem. Cheira a Uber, que ele acredita ser uma excelente solução para os jovens desempregados, que não querem patrões, querem clientes. Macron não é um político. É uma app. Sempre em atualização.

Há uma esquerda que está fascinada com Macron. Carregou estes anos todos o fardo da gente pobre, feia e ignorante que lhe baralhava a pós-modernidade. Os fascistas que fiquem com esses medrosos do mundo. Agora há um povo limpo e novinho em folha: o “povo europeu”. Dito assim parecem muitos, mas trata-se de um grupo seleto. Uma vanguarda que se sabe do lado certo da História. Esta esquerda, cansada das contradições da vida que nos fazem perceber que o oprimido na fábrica pode ser opressor da mulher, trocou o socialismo pela “modernidade”. Que já não se aguenta a luta de classes, com os seus garrafões e as suas barrigas e as suas palavras de ordem monótonas. Como Macron não é nem racista nem homofóbico, muito pelo contrário, pode entregar a destruição do Estado social a um homem que pelo menos é civilizado. Esta esquerda pensa-se representante de uma nova geração e não compreende a injustiça de os jovens terem votado mais em Le Pen e Mélenchon do que no CEO da startup em marcha. Também há uma direita que adora Macron, mas isso é normal. Afinal de contas, ele é um ex-ministro socialista que diz que a França falhou porque não fez as reformas de Thatcher nos anos 80 e que se oferece para neutralizar os socialistas por muitos anos. Livre dos beatos de Fillon, ele trata do que interessa: do poder do dinheiro. Macron não deu um rosto humano ao neoliberalismo (palavra velha e descontinuada da esquerda mélenchista e frondeur), que isso seria pedir muito. Deu-lhe um rosto trendy. As “reformas estruturais” estão a usar-se imenso este ano.

Como muitos jovens eleitores franceses, que não acham que conduzir um carro por tuta e meia faça deles empreendedores, também não me impressiona este futuro.

Não terá grande glamour, mas a minha prioridade são os perdedores da globalização. Porque a democracia precisa de responder à sua zanga e porque o papel da esquerda é não deixar para trás a maioria. Macron, que nem é carne nem é peixe mas é seguramente um transgénico, representa tudo o que me enjoa nestes e noutros tempos.

A Culpa é do Mélenchon

(José Gusmão, in Ladrões de Bicicletas, 09/05/2017)

O tempo entre a 1ª e a 2ª voltas das Eleições presidenciais foi marcado por uma campanha, como tenho visto poucas, de ataque à única candidatura de esquerda que se atreveu a vencer, no meio do descalabro que foram os resultados. Sobre o que têm a dizer, à direita, os vários antifascistas de ocasião não me interessa particularmente falar. Pelo menos, até ouvir à direita portuguesa qualquer coisa contra o governo fascista efectivamente existente na Hungria, cujo partido continua a integrar o respeitável PPE, sem sobressalto de maior….


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