A lavagem ao cérebro – escutas a conta-gotas

(Paulo Querido, in Facebook, 11/12 de Novembro de 2023)

Take I

Calculo que já todo o português, quer se interesse quer não, tem no email ou no Whatsapp o despacho de constituição de arguido do MP.

Mas por muito que se interesse, não vai querer ler assim. Que seca, ler palavreado de jurista. É muito mais fixe ler os títulos dos jornalistas feitos para nos manterem emocionalmente agarrados ao caso, em centenas e centenas de notícias extraídas do documento, por vezes relatando o mesmo parágrafo mas com palavras quentes diferentes, tudo o que permita dizer milhões de vezes “suspeição”.

É uma autêntica lavagem ao cérebro.

Chegámos a esta metodologia graças à ação combinada de duas instituições que tanto se arrogam de defensoras da democracia e cujo comportamento combinado está precisamente a fazer o oposto — a incendiar irresponsavelmente o espaço público.

Não estou a declarar culpabilidade. Não me compete. E, francamente, compreendo o frenesim e todas as justificações que os jornalistas (os únicos cujas lógicas conheço) dão a si próprios para adormecerem as consciências e dormirem de noite, depois do charro ou do uísque para terminar o dia exaustivo: é preciso ser produtivo e, pá, tudo é notícia e se eu não a der o outro jornal dá e fica com os pageviews.

Chegámos aqui juntos. Eles com a sua quota-parte de irresponsabilidade, nós com a nossa. Ponderação? Não há nada excitante em ser ponderado ou refletido, nem em avaliar as circunstâncias e o que efetivamente esteve em cima da mesa ou está em causa. As emoções fortes — é disso que vivemos! É disso que nos alimentamos. É isso que queremos: uma sequência de títulos, cada um mais incendiário que o anterior, não queremos nada ler o documento, ou tê-lo “mastigado” com ponderação, por gente com noção de responsabilidade e sobretudo a noção da realidade.

Aguenta-te como puderes com a lavagem ao cérebro. Que vai durar e durar e durar, com cada título que te exalta o coração e frita o cérebro a ser repetido pelos outros 20 jornais e televisões, de manhã à noite, dias a fio, e repetidas as suas palavras quentes pelos políticos interessados neste desgaste, nesta fuga da responsabilidade cívica, nesta fogueira em que arde o processo político democrático.

(Quanto mais leio o caso, seja direta seja indiretamente através da lavagem ao cérebro em curso nos media, mais cresce o sentimento de inutilidade, a ideia de que os investigadores vieram de Marte [ou do CH], a convicção de que não há ali nada de concreto em termos daquilo que me interessa, que é a prova de corrupção, a prova de crime público. É um arrazoado mal cozinhado das ligações entre pessoas e de descrições das práticas vulgares, até desejadas num ambiente em que as decisões demoram e tudo é demasiado lento para a prossecução das ideias e dos empreendimentos.)


Take II

Pobre direita. Isto é um carrossel de emoções e estados de alma capaz de atirar abaixo a mais sólida alma.

Num dia estão calmos e a tranquilizantes, a amaldiçoar o raio do Governo que lhes tirou o espaço todo.

No dia seguinte dá-se o golpe do MP e passam a um estado de absoluta euforia e excitação, crendo ter chegado o seu momento. No clímax da vertigem, Montenegro chega a declamar que “os portugueses” estão fartos do Governo, sem que um único português lhe tenha passado mandato para tal.

Dois dias passam e percebe-se que a “investigação” afinal não passou de um mal-amanhado cozinhado de opiniões sobre a condução dos assuntos do Estado por políticos e privados, que só com muito boa vontade nossa se qualifica como “suspeitas”, e nem cheiro, salvo seja, de um indício ou provazinha. Provazinha para ao menos levar a um juiz distraído. Nota, que prova, LOL, prova que não deixe dúvidas a um juiz atento, nem em sonhos.

Mais um dia, chegamos a domingo, os 70.000 euros sumiram da acusação, sabe-se que pelo menos numa das escutas o Costa não é o Costa do tiro ao alvo mas outro Costa, e o nervosismo toma conta da situação à direita, conforme documentam as intervenções destrambelhadas de opinadores geralmente sóbrios como Lobo Xavier, e as declarações contraditórias e arrefecidas dos raros nomes do “laranjal” que têm estado do lado do tresloucado Montenegro.

Repito o que escrevi há dias: ou o MP tem na manga uma prova do calibre da bomba atómica, ou nem com a autêntica lavagem ao cérebro nas televisões e jornais patrocinada pelos palácios de Belém e Palmela o PSD será capaz de vencer um PS, dura e injustamente atingido, mas ainda assim com mais competência pressentida pelo eleitorado do que as promessas populistas e anacrónicas do Montenegro que nem aos fiéis agradam, com aquela fixação nas donas de casa.


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Teoria geral do comunicado – os que existem e os que faltam

(Miguel Romão, in Diário de Notícias, 10/11/2023)

O Presidente da República, apesar de se ter tomado, em pulsão templária, pelo ímpeto de zurzir sobre os infiéis da Terra Santa na semana anterior, enquanto salvava outras crianças, igualmente estrangeiras, mas cristãs, identicamente menores e de triste sina, através dos recursos do SNS, guardou um poucochinho de tempo para receber a Procuradora-Geral da República, na manhã de dia 7 de novembro, e ver em seguida, curiosa linha do tempo, ser divulgado pela Procuradoria-Geral o seguinte parágrafo:

“No decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do Primeiro-Ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto suprarreferido. Tais referências serão autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, por ser esse o foro competente”.

A análise psicanalítica dos comunicados da Procuradoria-Geral da República seria tema amplo para investigações. Do ponto de vista da factualidade, seguramente nada haverá a apontar. É difícil haver em Portugal quem não se reclame, ou tenha reclamado alto, um dia, desse enorme e ereto argumento de autoridade: “O Costa quer isto feito depressa!”. Eu próprio, mesmo em contexto doméstico, tive por vezes de me contrair, em esforço, perante a ameaça de me sair pela boca esse brocardo decisivo, com o santo nome incluído, pronto a levar-me a um calabouço ou, pelo menos, a um qualquer contrato público já minutado pelos estagiários que me pululam na copa, mais bem pagos do que qualquer assessor de ministro, desde logo em gomas.

Não duvido que um primeiro-ministro envolvido desta forma, numa investigação deste tipo, tem de se demitir da sua função. Mas, convenha-se, a ideia de legitimação da intervenção através de uma “invocação por suspeitos do nome” é todo um outro nível, efetivamente novo, de sujeição processual.

No direito penal que aprendi, havendo factos que indiciassem a prática de um crime, havia um inquérito e uma constituição, devida, como arguido, com os direitos e deveres processuais decorrentes dessa condição. Agora, pelos vistos, basta, a invocação de um nome e de uma eventual intervenção. Intervenção para quê? Para essa realidade, exótica, que será a de “desbloquear procedimentos”. Mas o que é isto de desbloquear procedimentos? Em que parte do Código do Procedimento Administrativo é que vem esta ilicitude? Será na parte de decidir? Não querendo ser desmancha-prazeres, mas sim, creio que grande parte da função de um primeiro-ministro, qualquer que ele seja, até António Costa, será a de “desbloquear procedimentos”. Ou seja, por a Administração a funcionar, a responder nos prazos legais, a defender direitos e expetativas legítimas de pessoas.

António Costa coligou-se com bandidos, até por si nomeados para o governo, e cometeu crimes? Venha então toda a força do Estado contra ele e os seus compinchas e seja julgado e condenado. Vá com os ossos para Évora, o crápula. José Sócrates foi constituído arguido há quase dez anos e assim continua, à espera de um julgamento. António Costa entra, pelos vistos, pela quota processualmente anterior – que é a nova fase processual do “alguém disse que ele disse e vamos escrever isso num comunicado”. Deve garantir-lhe, pelo menos, uns 15 anos de espera.

E, já agora, senhora Procuradora-Geral, para quando o comunicado, em relação ao senhor Presidente da República, respaldado no “conhecimento da invocação (…) do nome e da autoridade (…) e da sua intervenção para desbloquear procedimentos”, relativamente às meninas luso-brasileiras tratadas inopinadamente em Santa Maria, alegadamente de forma irregular, desde logo de acordo com os seus médicos? Afinal, parece que foram 4 milhões de euros de impostos…

O autor é Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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A propósito da demissão de António Costa

(António Garcia Pereira, in NoticiasOnline, 08/11/2023)

Os princípios – infelizmente tão desprezados, em nome do pragmatismo e da oportunidade de cada momento – devem ser sempre preservados e defendidos também, para não dizer sobretudo, nos momentos em que é mais difícil fazê-lo e relativamente às pessoas e às situações com que menos simpatizamos.

Assim, do ponto de vista jurídico-criminal, e também constitucional, há desde logo que sublinhar, e não permitir que seja desrespeitado, o basilar e constitucional princípio da presunção de inocência de todo o arguido até ao trânsito em julgado da decisão que o condene. Assim como devem ser repudiadas as detenções fora de flagrante delito e sem fundamento bastante (e antes destinadas ao espectáculo mediático), bem como a prática de levar um detido, seja ele quem for, perante o juiz de instrução para ser identificado, mas apenas (e desnecessariamente) perto do limite constitucional das 48 horas para, depois, o mesmo juiz invocar, nomeadamente, ter mais arguidos para interrogar e o devolver à cadeia, fazendo assim com que o arguido passe mais 1, 2 ou mesmo mais dias (e noites) privado da liberdade. Todas estas práticas são indignas de um Estado que se pretende “de Direito democrático”, e não é por serem mais ou menos generalizadas que elas se tornam legítimas!

Do ponto de vista político, há, todavia, que assinalar que António Costa, quer enquanto Ministro da Justiça, quer enquanto Primeiro-Ministro, foi e é um dos principais responsáveis políticos pela criação do Processo Penal que hoje temos, e do desmesurado (e em larga medida incontrolado) poder que nele tem esse autêntico “Estado dentro do Estado” que é o Ministério Público. E ainda que António Costa demonstrou, por várias vezes, uma tão arrogante quanto evidente falta de cultura democrática. Para não ir mais longe, basta recordar a sua famigerada e lastimável frase (proferida contra aqueles que denunciavam a patente inconstitucionalidade de algumas das medidas governamentais adoptadas durante a pandemia da covid-19) de que iam “continuar a fazer assim, diga a Constituição o que disser!”, e também o modo como tratou de abafar o sinistro episódio da ilegal actuação do SIS para apreender o computador ao ex-assessor Frederico Pinheiro.

Mas António Costa é também responsável pelos “amigos do peito” de que se fez rodear e que sempre encobriu e protegeu até à última instância (de Diogo Lacerda Machado a João Galamba, passando por Eduardo Cabrita), tornando assim inevitável que quando aqueles, finalmente, fossem apanhados em investigações criminais relativas às diversas situações obscuras em que se envolveram, Costa acabasse por ficar nelas envolvido também.

Há muito que os negócios do lítio e do hidrogénio eram objecto de críticas e de denúncias, não apenas relativamente aos erros das decisões e opções tomadas (designadamente pelo desprezo pelo ambiente e pelos direitos das populações e pela própria falta de viabilidade económico-financeira), mas também pelo modo obscuro como os grandes interesses envolvidos em tais áreas acabaram sempre, e reiteradamente no meio de toda uma particular opacidade, por ser protegidos e favorecidos. E claro que o cabal esclarecimento de todas essas situações não poderia ser eternamente adiado e impedido pelo amordaçamento dos cidadãos e dos seus movimentos cívicos e pelo insulto e pela perseguição aos jornalistas que procuravam investigar tais matérias. E é o cabal esclarecimento dessas situações – que nunca ocorreu noutros casos, como os da destruição dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo e da privatização da TAP – que todos temos agora o elementar dever cívico de exigir às autoridades competentes para a investigação.

Por último – the last but not the least! – a forma como o Ministério Público e a sua dirigente máxima, a Procuradora-Geral da República Lucília Gago, com a “preciosa” e “científica” ajuda do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, envolveu António Costa no escândalo das publicitadas investigações e detenções também não pode passar em claro.

Por um lado, porque anunciar publicamente (como se fez no último parágrafo do comunicado de 07/11 da PGR) que, neste exacto contexto, foi instaurado no Supremo Tribunal de Justiça um inquérito-crime visando o Primeiro-Ministro tem tudo menos a correcção e equilíbrio que tal situação exigiria. Por outro, porque é absolutamente insólita a justificação publicamente apresentada para essa instauração de processo-crime contra o Primeiro-Ministro: “o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do Primeiro-Ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos (…)”.

Ou seja, ficámos assim a saber que, pelos vistos, para o Ministério Público, basta que um dado suspeito invoque o nome de uma terceira pessoa, nem que ela seja o Papa, para que logo se instaure um processo-crime contra este e para que se anuncie publicamente tal instauração!?…

E assim sendo, e tendo tal forma de actuação do Ministério Público conduzido – como era tão previsível quanto inevitável que conduzisse – à demissão do Primeiro-Ministro e à queda do Governo, não há agora alternativa a esta questão: ou as suspeitas do Ministério Público têm um mínimo de credibilidade e não podem deixar de, num processo justo e com as devidas garantias de defesa, conduzir a uma fundamentada acusação e depois a uma justa condenação, tendo António Costa que assumir as respectivas responsabilidades jurídico-penais e políticas; ou tudo isto não passou de autêntica “fumaça”, e o Ministério Público, a sua dirigente máxima e todos quantos com eles alinharam nesta operação de cerco e aniquilamento não poderão deixar de ser política e criminalmente responsabilizados pelos gravíssimos danos pessoais, sociais e políticos que causaram, até porque não é de todo admissível que, numa situação como esta (ou seja, se se vir que a pública imputação não tinha fundamento), o Ministério Público possa, num autêntico golpe de Estado, derrubar um Primeiro-Ministro e o seu Governo, sejam eles quais forem!

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