0,8%

(Miguel Castelo Branco in Facebook, 19/09/2023)

A guerra, tal como nos foi narrada desde o primeiro dia, foi descomplexificada, achatada e intencionalmente evacuada daquela riqueza de aspetos que faz de qualquer conflito um objeto poliédrico de muitas faces; logo, exigindo um grande número de abordagens de análise, de comparação e ponderações geopolíticas, históricas, demográficas, políticas, económicas e tecnológicas.

Compreende-se agora como foi possível embrutecer e manipular populações inteiras, fazendo-lhes crer que o conflito surgira do nada, sem antecedentes e causas precipitantes, um absurdo que teria um culpado singular (Putin) ou um culpado coletivo (os russos). Tratou-se, simplesmente, de apresentar esta guerra com o maniqueísmo mais esquemático – o agressor e o agredido, o autocrático e o democrático – sem explicitar, retirando da narrativa qualquer elemento que pudesse travar o passo a uma adesão emocional (ou seja, irracional) a uma causa apresentada como representando o bem.

Para tal, como acontecera antes nas guerras do Iraque, da Jugoslávia, da Síria e da Líbia, importava animalizar e absolutizar o mal, fazendo calar o contraditório, proibi-lo e perseguir pela censura e pela difamação quem ousasse exercitar um discurso mais razoável e complexo. Esse caminho acabaria por facilitar a imposição de um estado de espírito predisposto a aceitar a escalada e tornar impossível que a palavra paz pudesse ser proferida.

Foi assim possível lançar a Europa numa guerra económica da qual está a sair perdedora e, até, tornar aceitável e possível se necessário uma guerra nuclear, sem que os europeus se apercebessem que tal seria o fim da Europa.

Passam hoje 14 semanas sobre o início daquela que foi apresentada como a contraofensiva que destruiria a Rússia, o seu governo e, até, a Federação, partindo-a numa miríade de pequenos estados vassalos do Ocidente. Nada se passou, para além das quase 150.000 baixas entre mortos e feridos da Ucrânia. O avanço não se deu; pior ainda, dizimou o imenso parque tecnológico militar dito de ponta com o qual pensava a NATO demonstrar a superioridade dos seus meios.

Por 60.000 mortos, a ofensiva que iria tomar a Crimeia e atingir o Mar de Azov, conseguiu lançar mão de 0,8% do território russo da Ucrânia, pelo que são agora percetíveis na imprensa ocidental – e nas ruas das capitais europeias – os primeiros sintomas de saturação e indignação.

Os últimos fogachos da contraofensiva estão em linha com mais uma reunião em Ramstein. Como sempre, a guerra mediática de tik-tok’s e twitters desenvolve intensa campanha de sugestionamento para obter o adiamento do fim da guerra, mais doações e empréstimos. Depois do dia 21, assistiremos obviamente a uma nova narrativa e suspeitamos, até, que os mesmos arlequins que durante um ano e meio nos presentearam com estridências de guerra irão lentamente passar a um novo registo. A mudança, para merecer credibilidade, vai ser progressiva, de um “congelamento da guerra” à necessidade de entabular “talks about talks” com a Rússia para, finalmente, se aceitar ter a Ucrânia de trocar território por paz. Falta pouco.

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9 pensamentos sobre “0,8%

  1. Cá para mim isto está para lavar e durar. A população da Ucrânia está tão fanatizada como a da Alemanha nazi até porque os eventuais dissidentes sabem até terão o fim dos da Alemanha nazi se se atreverem a abrir o bico. O regime encarregou se das purgas desde 2014. Não se avança para uma guerra destas sem se assegurar que a oposição está morta, exilada ou na prisão. Não se, avança para uma guerra destas sem doutrinar bem a população com uma pretensa ideia de superioridade, nas escolas e nas ruas. Porque não tenhamos dúvidas, foi a ucrania quem começou isto. Ou alguém ainda acredita mesmo que aquelas explosões no Donbass, que se ouviam desde dia 16 de Fevereiro, eram da malta a festejar o reconhecimento da sua independência da Ucrânia por parte da Rússia, que, já agora, teve lugar no dia 20?
    Hoje teve lugar um ataque em larga escala a Crimeia. Era capaz de apostar que a coisa vai aquecer na zona da Ucrânia de onde os 11 aviões saíram. Mais uma vez serão os mauzoes dos russos a bombardear gente indefesa. Assim se doutrinam as populações também por cá a ponto de, como bem disse o articulista, a malta aceitar estas perdas económicas incalculáveis devido às sanções e, no limite, uma guerra nuclear. Nesta última não acredito, mas que a, Ucrânia ainda pode, apanhar uma barata quente, claro que pode assim a Rússia perceba ser a única maneira de deter os herdeiros de Napoleão e Hitler. A ver no que isto dá. Mas seria tudo bem mais fácil se percebessemos que o tempo em que traziamos ouro em troca de contas de vidro acabou e não volta mais.

  2. Mais do mesmo: a guerra auto-justifica o seu fim, independentemente do que levou ao seu início.
    Já viu antes e ver-se-ia mais a seguir.

    Antes já que mais tarde, e pelo tempo necessário, derrotar os impérios do medo.

  3. Felizmente também existem em Portugal pessoas como Miguel Castelo Branco.
    Por outro lado, assistimos ontem so nosso presidente demitir-se das suas responsabilidades como homem de Direito e mesmo como demcrata. Aconteceu no Conselho de Segurança da ONU, onde Marcelo Rebelo de Sousa acusou, sem pestanejar, a Rússia de ter cometido os crimes de Bucha. Como homem de Direito que pretende ser, cabia-lhe exigir veementemente a realização de uma investigação forence credível com a participação de peritos internacionais incluindo a Ucrânia e a Rússia.
    Como democrata, cabia-lhe respeitar o princípio da inocênvia até priva em contrário. Mas pelos vistos MRS prefere os métodos autocráticos. De que valem agora as suas autoproclamações de fé democrática, Caro Presidente?

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