A inutilidade da voz — Avanti popolo!

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 24/09/2022)

(Texto brilhante do Coronel Matos Gomes. Um grande bem-haja a uma das poucas vozes lúcidas que se consegue ir ouvindo na desmontagem da narrativa a que o “Império” nos vai sujeitando.

Estátua de Sal, 25/09/2022)


A Itália é reconhecida pelos seus cantores, clássicos e ligeiros, tenores, sopranos, meio sopranos, baixos.

A voz dos italianos e italianas brilha no canto, nas artes mas não brilha na política. A voz dos italianos não conta para a definição da política de Itália, da definição do papel da Itália na Europa e no Mundo.

No caso da política, a bela voz dos italianos vale tanto como a péssima voz (para mim) dos checos, ou eslovenos, ou neerlandeses, ou bascos. Não vale nada.

As eleições de amanhã em Itália são a prova de que a voz dos italianos, como a dos restantes europeus não tem qualquer valor. O governo italiano anterior caiu, como caíram dezenas desde o final da Segunda Guerra, e nada se alterou. Os italianos falaram, cantaram, votaram, mas quem determinou o que a Itália ia ser, quem determinou os negócios que gerariam fortunas, foram os banqueiros de Wall Street, os mafiosos da Sicília, os camorros de Nápoles, os industriais de Milão. Os italianos cantam, mas apenas lhes batem palmas, quanto ao resto seguem-se os negócios do costume. E foi assim que, cantando e comendo massa, os italianos viram nascer um inútil e caríssimo aeroporto intercontinental em Malpensa/Milão, construído por interesse da aliança das mafias da Liga do Norte e da Sicília e viram um comediante antecessor de Zelenski, um velho canastrão como Berllusconi ser primeiro ministro para tratar de negócios, como Trump nos Estados Unidos e Bolsonaro no Brasile agora Zelenski na Ucrânia.

A Itália dos surdos que não ouvem os seus cantores é o paradigma da orgia , dos bacanais em que se transformaram as ditas democracias europeias. Os povos cantam, bem ou mal, e os empresários das óperas mais ou menos bufas, dos coliseus e senados, mandam-lhes os filhos para guerras de que nem se dignam apresentar uma causa séria, que ultrapasse a que explica a vinda dos meninos no bico de uma cegonha. Vão, sem explicação, os adultos para o desemprego, as mães para as filas de supermercados e os velhos para asilos. Os jovens conduzem tuk-tuks ou motoretas com uma mochila de pizas e arroz chau-chau às costas, pagos a um euro por ração entregue ao domicilio. Gentes das cidades vêm-se expulsas das casas, gentes dos campos restam entre ruínas.

Parece que as sondagens dão a vantagem a uma senhora que aproveitou as receitas de Mussolini e os italianos continuam a cantar e a dar à manivela dos gramofones. O que fizeram os governantes anteriores perante o canto dos italianos? Enriqueceram, foram a Bruxelas, a Washington, mandaram um professor de economia formado nos Estados Unidos administrar o Banco Central Europeu, que em princípio tinha por missão desenvolver uma moeda que competisse com o dólar! Bela graça! E depois este foi nomeado chefe de governo, sem eleições, como já tinha acontecido com uma senhora inglesa — Theresa May, substituída por outro paraquedista sem coro nem decoro, Boris Johnson, e agora sucedido por uma antiga republicana convertida ao radicalismo bélico.

Os anteriores governos de Itália, como os da França, da Espanha, de Portugal, da antiga Holanda e da nova Chéquia não ouvem os povos cantar. E, sendo deliberadamente surdos, ou entendendo que os povos estão alegres e divertidos quando enfrentam os preços nas prateleiras, quando vêm os salários oferecidos a diplomados ao nível de um sem-abrigo, ou, pior, tomando os povos por estúpidos quando lhes metem verdades pela goela abaixo, como aos gansos.

Os “democráticos” políticos italianos, não escutando as vozes “avanti popolo” que há anos os avisa , surgem gora preocupados com a possibilidade de uma ragazza sem peias dizer o que o povo quer ouvir — prometendo aos pobres serem ricos, aos ricos serem mais ricos, afogar os emigrantes, marimbar-se para a senhora literalmente aparecida numa azinheira em Bruxelas, e que anda desde Fevereiro passado a garantir aos pobres de espirito — nós — que isto de os europeus terem desenvolvido um sistema industrial sem energia nem matérias-primas é um milagre alemão, que ela promete repetir aos pastorinhos, após o corte do gás russo e das suas matérias-primas.

De facto, o milagre alemão (os milagres) foram o resultado das ideias friamente racionais de um senhor a alemão chamado Bismark, que convocou uma Conferencia em Berlim (1884/5) para os europeus irem a África sacar a energia e matérias-primas para sustentar o desenvolvimento e a boa vida dos europeus.

A senhora de jaqueta amarela e saiote azul nunca ouviu falar de colonialismo, mas promete sempre mais armas e mais sanções para castigar a Rússia às labaredas do Inferno. Bismark, muito mais sábio que a senhora Úrsula van der Leyen, não acreditou que seria possível industrializar a Europa sem energia nem matérias-primas. Mas a inevitabilidade de ser necessário energia barata e matérias-primas em quantidade para os europeus viverem na abundância em que vivem custou duas guerras mundiais e uma guerra quase eterna em África e na Asia. Não há milagres. Os povos têm de saber de onde lhes vem o que lhes assegura a existência e o seu modo de vida. São os povos que têm de decidir os sacrifícios que estão dispostos a suportar.

As eleições em Itália têm pois a única importância de revelar a irrelevância da vontade popular nos regimes que saíram da Segunda Guerra. Se nenhum político entendeu ser importante explicar aos cidadãos que o dinheiro que utiliza para comprar uma pizza ou uma bifana não tem qualquer valor real, que é fruto da imposição de um monopólio da reserva federal americana (FED) e que o sistema se baseia no truque inventado por Sófocles, um filósofo grego, há mais de dois mil anos, de substituir a prata dos dracmas por cobre, continuando os dracmas a valer como se fossem de prata.

Já agora, façam a experiência e perguntem ao ministério (mais mistério) das finanças o que é o fractional reserve lending, ou “empréstimo sem cobertura de um valor material”, o que significa emprestar mais dinheiro do que se tem em caixa e que é a a maior fraude de todos os tempos.

As eleições na Itália revelam que a voz dos europeus é tão escutada pelos seus dirigentes como a dos coreanos do norte e menos que os tenores do Scala de Milão. Mas dizem-nos que vivemos em democracia. Talvez. Pelo menos podemos escutar as árias de ópera que queremos, por enquanto e se não forem em russo. Claro.


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4 pensamentos sobre “A inutilidade da voz — Avanti popolo!

  1. Hoje os italianos foram votar pela primeira vez desde Berluscuni num novo governo eleito pelo povo, ou seja, pelos cidadãos… o chefe do governo, talvez. E já há muita excitação em Bruxelas e Berlim.
    Porque hoje os italianos poderão eleger um governo que colocará a Itália em primeiro lugar, não a UE, Bruxelas, os EUA ou a Rússia.

    Assim, a Itália, onde eles vivem, nasce e morre. Mas esta democracia não lhes convém, vimo-la ontem quando um “Presidente da Comissão não eleito” pelos eleitores da UE se pronunciou e ameaçou…. “votem a favor da UE… se os italianos não forem na “direcção certa”, então Bruxelas fará como com a Hungria e a Polónia”! Isto significa que os democratas serão transformados em anti-democratas e depois teremos de agir contra eles e sancioná-los!
    Por outras palavras, Bruxelas está a ameaçar abertamente os italianos!
    É assim que a União Europeia entende a democracia!

    Gostaria de compreender a indignação da geometria variável, Os verdadeiros neo-nazis de Mariupol foram elogiados e tratados como heróis quando foram vistos a chicotear um pai e uma filha amarrados a um poste que explicava que os falantes russo de Donbass eram castigados.. E agora estão indignados com o regresso do fascismo italiano, por isso vamos elogiá-los antes de os financiar e enviar-lhes armas, pergunto eu?

    Existe uma espécie de separatismo parlamentar na União Europeia e isto é um sinal de que a democracia da União Europeia está a criar uma divisão dentro da própria UE, mostra que não existe uma União Europeia mas sim duas Uniões Europeias (a primeira com uma visão Macron e “Merkel” da UE e a outra com uma visão Le Pen e Salvini da UE). Esta divisão parlamentar da União Europeia vai tornar-nos cada vez mais frágeis.

    Tudo isto é verdade, mas não uma linha, nem uma palavra para dizer que a União Europeia, como entidade política, empurra todos os países para o fascismo, ou pós-fascismo, ou liberalismo extremo, ou ainda para o liberalismo.
    Mario Dragui, de quem todos gostam tanto, super Mario, o enviado de Bruxelas para limpar tudo, empurrou milhões de italianos para a extrema-direita.
    Quando vimos a Grécia e Portugal!

    Alemanha , França , Europa de Leste …

    O mesmo fenómeno: difusão e ascensão do Extrema Direita .

    Mesmo mecanismo : desigualdades , miséria , perda total de confiança nas Instituições e na Classe Governante .

    Num contexto de colapso económico : Alemanha, 1929 …

    Nada de novo debaixo do Sol !

    Seria bom dar um passo atrás e fazer uma análise que saia das guerras partidárias, de facto vemos que muitos países europeus estão a regressar da Europa que tomou muito poder em todas as áreas e isto contra a soberania dos Estados. O povo apercebe-se disso, vemos isso com a Grã-Bretanha e o Brexit, mas também com países como a Polónia ou a Hungria que “desobedecem” às injunções europeias especialmente sobre as questões da imigração, mas também ao poderoso lobby da minoria LGBT, Wok, etc. Como explicar então a ascensão dos partidos da extrema direita??

    Mas não há tempo para reconhecer que a ascensão destes partidos de direita na Europa é apenas a causa de um fracasso e de uma interferência destes supostos partidos de centro-esquerda. A situação italiana não é diferente da situação portuguesa.

    Aqueles que falam de democracia são os mesmos que contestam o resultado das urnas e até a vontade do povo, querendo fazer-nos acreditar que só o partido das suas ideias detém a verdade, mas vemos todos os dias os efeitos nocivos e nojentos, e sim o medo de perder as suas vantagens faz com que digam todos os absurdos estéreis, aqueles que são para o regime vindouro passaram pelas vossas políticas em silêncio e sofrimento para que vós, que sois democratas (por palavras), aceiteis a mudança, o país e o povo não são propriedade vossa.

    Quanto mais a corrupção e as máfias pressionam os políticos tradicionais, e encorajar liberdades odiosas e não naturais, mais as populações os odeiam e apoiam a extrema-direita.

  2. “União Europeia” é a designação, em newspeak, de IV Reich. E agora temos um IV Reich com as pernas partidas, arrastando as tíbias imprestáveis, beijando o lobo que acolheu no quintal, ladrando furiosamente à caravana que passa, rosnando balidos desafinados, balindo belicosidades castradas e arrastando os borregos com ele. Isto vai acabar mal.

  3. Assino por baixo este texto brilhante do Carlos Matos Gomes, e também a nota da EstátuaDeSal. Tudo dito, nada a acrescentar. Quando (já não é um “se” ) a Le Pen governar também a França, o VOX em Espanha, e a AfD na Alemanha, repetir-se-á o choro dos “democratas liberais”, meras lágrimas de crocodilo de quem está contente após tantas décadas a ignorar a voz de tantos povos, sabe que o Fascismo garante a continuidade do seu Capitalismo selvagem, e usa a sua máquina de propaganda NeoLiberal para espezinhar alternativas democráticas de Esquerda, os sindicatos, os Direitos Laborais, o Estado Social, a Soberania, a independência monetária, a Autodeterminação, e agora também a paz dentro do nosso continente.

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