(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 21/02/2022)

A guerra deveria ter começado na quarta-feira e há um mês que Biden diz que está iminente. Washington dramatiza para que a Europa sinta que precisa da NATO. A aventura de Putin pode acabar mal. Com uma guerra real no terreno desde 2014, basta alguém ceder a uma provocação. Mas sabem o que significaria manter o domínio da Ucrânia? Ou o que acontece à economia russa se as sanções forem avassaladoras? Assistimos, por agora, a uma guerra de informação. A história ensinou-nos que a verdade é a primeira baixa. Aconselha-se cautela.
“A minha mãe preparou me umas papas de sarrabulho para o caminho, tomei um táxi e fui para a guerra. Cheguei à guerra eram sete horas da manhã, estava ainda fechada.” É mais ou menos nesta rábula de Raul Solnado, com texto original do espanhol Miguel Gila, que me tenho sentido na última semana.
Na última quarta-feira, findo o prazo que os serviços de informação norte-americanos deram para começar a guerra da Ucrânia, estive para fazer o mesmo que Miguel Sousa Tavares e garantir, para um texto que ia sair na sexta-feira, que ela não tinha começado. Faltou-me o arrojo, até por saber que qualquer incidente pode mudar tudo. Desde então, todos os dias, quase sem falhas, Joe Biden veio repetir o que diz há mais de um mês: que é agora que a guerra está mesmo, mesmo, mesmo iminente. A maior desde 1945, garante Boris Johnson. Num momento próximo do humor, o Ministério da Defesa britânico até tornou públicos, nas redes sociais, os planos de ataque russos.
A forma acrítica e excitada como a comunicação social (sobretudo as televisões) está a lidar com um conflito que por agora é de informação revela a sua incapacidade em cumprir a função de escrutínio. Nem o facto de não ter existido invasão na quarta-feira, como os EUA anunciaram, abalou a credibilidade da fonte desta informação. Pelo contrário, o erro foi tratado como uma estratégia inteligentíssima. Verdade seja dita, ela será sempre impossível de contradizer. Se a invasão acontecer, confirma-se. E isto serviu para unir os aliados europeus, que não repetirão o erro da Crimeia. Se não acontecer, foi porque estes avisos evitaram a guerra. Em tempos de “pós-verdade”, não podia haver melhor. Até porque não temos experiência de os EUA nos mentirem.
A estratégia só choca, do meu ponto de vista, com um problema: não negando que a coisa pode descambar, a invasão da Ucrânia mudaria a vida da Rússia na próxima década. Para muito pior. Putin é um criminoso, mas é um calculista. Se pretende invadir a Ucrânia (e essa é sempre uma possibilidade que não descarto, porque não tenho como o fazer), é um passo tão arriscado que terá sido muitíssimo ponderado. E não seria uma guerra de palavras e de contrainformação que o iria travar. Se não invadir é porque nunca o pensou fazer.
Sinto-me na ridícula situação de me ver compelido a condenar uma invasão que não aconteceu. Enquanto os que supostamente estão contra ela fazem, sozinhos, todo o discurso incendiário. O secretário britânico da Defesa, Ben Wallace, chegou a comparar os esforços diplomáticos para evitar o conflito ao acordo que permitiu à Alemanha anexar o País dos Sudetas, em 1938. Os apaziguadores que, coisa absurda, querem evitar uma guerra no coração da Europa, são uma nova versão de Chamberlain. Lembro-me desta comparação com os que se opuseram à guerra do Iraque. Uma ocupação que levou à desestabilização de todo o Médio Oriente e que ainda hoje é paga na Síria e na Europa, com vagas de refugiados. Ainda assim, nada comparado ao que aconteceria se houvesse uma guerra de grande escala na Ucrânia.
Não acredito nas esferas de influência, mas que las hay, las hay
É evidente que os russos estão a fazer tudo para espicaçar a excitação ocidental. A divertirem-se com ela. A usá-la e a desejarem que Biden continue a funcionar como megafone da sua pressão, para consumo externo e interno. Querem reconstruir o império soviético, alimentando a ideia de uma “grande Rússia”, que é sustentáculo ideológico do poder de Putin? Essa vontade está bem bem explicitada num longo ensaio do Presidente, com o título “Sobre a unidade história dos russos e ucranianos”. Depois de recuperarem a Crimeia, desejam conquistar as províncias ucranianas de maioria russa, onde, é bom recordar, a Ucrânia nunca cumpriu o que foi acordado? A votação na Duma para o reconhecimento da independência de Donbass abre essa possibilidade, mas pode não passar de mais uma provocação. Mas se assim for, o mais provável é reconhecerem a independência e, a pedido do novo poder reconhecido, entrarem no território, onde já têm militares desde 2014, quando isso for mais conveniente.
Ou então, a pressão de Putin, que ainda pode durar muito tempo (o prolongamento dos exercícios na Bielorrússia assim o fazem prever), serve para marcar uma nova posição da Rússia no sistema de segurança europeu. O desmantelamento do Pacto de Varsóvia e a reunificação da Alemanha tiveram como pressuposto negociado que a NATO nunca se expandia para leste. Expandiu. A questão é onde acaba essa expansão. Como os americanos nunca tolerariam que o México integrasse uma aliança hostil e não aceitaram mísseis em Cuba, os russos nunca tolerarão que o país estrategicamente mais sensível para si, com uma absoluta centralidade na sua História e com quem partilham 1580 quilómetros de fronteira, adira à NATO.
A Rússia tem o direito de impedir a integração de um país soberano na NATO? Não. Os países são livres de aderir às organizações que entenderem. E, já agora, os países dessas organizações também são livres de não os quererem lá. Durante a guerra fria, a Finlândia hibernou numa delicada neutralidade. E ainda hoje faz parte da UE, mas não da NATO, com quem mantém parceria. Não são princípios, é bom-senso. Discordando eu da existência de esferas de influência, “que las hay, las hay”. E tenho pouca paciência para ouvir discursos anti-imperialistas dos que defendem a manutenção de um sistema de segurança europeu que é um mero prolongamento dos interesses dos EUA.
Putin quer ter, e é inevitável que tenha, uma voz na segurança europeia. O facto de a Rússia ser um regime plutocrático e de extrema-direita não muda isto, assim como o facto de a China ser uma ditadura brutal não lhe retira relevância militar e económica. Se Putin não quer invadir a Ucrânia – e é extraordinário que essa possibilidade tenha sido posta de lado no debate público –, já conseguiu parte do que procurava. Um a um, os principais líderes europeus foram falar com ele. E os russos viram isso, sentindo que Moscovo voltou a ser respeitado ou temido pelo Ocidente. Não conta pouco para o seu poder interno.
Tornar a NATO indispensável
Se é isto que está em causa, Washington sabe-o. E, sabendo-o, dramatiza para que a Europa perceba que precisa da NATO e dos Estados Unidos mais do que nunca. Precisa que este risco de invasão e guerra seja tangível. A Ucrânia, com autonomia próxima de zero em relação aos Estados Unidos, acaba de exigir a clarificação dos prazos de adesão à NATO no momento mais sensível para o fazer. Isto depois de ter dados sinais opostos. A pressão vem de Washington.
Há quem defenda que, com esta dramatização crescente, os EUA pretendem matar o NordStream2 para diminuir a interdependência da Rússia com a Alemanha (e, portanto, com a Europa), mantendo-se indispensáveis, por via da NATO. Já dizia Hastings Ismay, primeiro secretário-geral da NATO: “manter os americanos dentro, os russos fora e os alemães em baixo.” Quem acha que isto só pode ser uma teoria da conspiração deve viver num mundo bastante simpático.
É bom recordar que não estamos apenas perante uma superpotência em declínio. São duas. A Rússia em decadência perigosa, os EUA em perda de influência evidente. Depois de Donald Trump ter virado as costas à Europa (Obama já tinha começado a fazê-lo, com um sorriso simpático), Washington deixou de ser um aliado fiável, até porque Biden não dá sinais de saúde política. Depois da derrota humilhante dos EUA no Afeganistão, a imagem externa é de fraqueza. E para se poderem concentrar no Pacífico, perante o inimigo verdadeiramente poderoso, os EUA precisam de recuperar a dependência dos aliados europeus no conflito latente com a Rússia, que se aproxima da China. Essa dependência já não é económica. Com a sombra trumpista, também a política se esvaneceu. Resta a militar, que tem de ser alimentada. Até porque, nesse campo, a Europa não existe como bloco autónomo dos EUA.
Como se ocupa a Ucrânia?
É evidente que esta aventura em que Putin se envolveu pode acabar muito mal para ele. Basta alguém ceder a uma provocação e pode ser impossível recuar sem perder a face e com ela o poder. Até porque se sobrepõe a esta guerra em potência outra real, que dura desde 2014, onde nacionalistas russos e ucranianos (e acreditem que nem uns nem outros representam os valores da democracia) se confrontam. Têm interesses próprios. Não estou, como não estão os jornalistas e comentadores que oiço na televisão, no terreno. E o terreno não é Kiev. Não faço ideia se vai haver uma guerra. O único esforço que posso fazer é racional. E vejo poucas pessoas a fazer esse exercício.
Alguém tem ideia do que significaria, para a Rússia, manter o domínio da Ucrânia, um território com 44 milhões de habitantes (dois terços deles bastante hostis) e uma área superior à da Península Ibérica? Alguém imaginou o que acontece à economia russa se as sanções forem realmente avassaladoras ou se for retirada do sistema SWIFT? Alguém se lembra que Putin tem eleições em 2024 e que mesmo com fraudes viu a oposição comunista subir nas últimas eleições? O que acham que lhe aconteceria se se envolvesse numa guerra que os estudos de opinião dizem não ser apoiada pela maioria dos russos, que sabem que ocupar toda a Ucrânia ou apenas o Donbass não é o mesmo que ocupar a Crimeia? Ou se tivesse de lidar com uma crise económica sem precedentes? O que é que, ao fim de tantos anos, ainda não aprenderam com o calculismo de Putin?
Não sei, porque quando as coisas chegam a um determinado ponto tudo pode acontecer, se esta guerra vai acontecer. Sei que assistimos, por agora, a uma guerra de informação. E que a História nos ensina que, nas guerras ou no que pode levar a elas, a verdade é a primeira baixa. A opinião pública é um peão neste conflito. E quem acredita que a comunicação social se consegue manter neutral devia ir aos arquivos dos jornais e das televisões no início de todas as guerras.
Se, a propósito deste conflito, querem discutir valores políticos e civilizacionais, desafio os que se propõem normalizar os maiores aliados de Putin na Europa a serem mais claros internamente. Depois disso, talvez ganhem o direito a defender guerras lá fora que não lhes merecem a coragem das palavras cá dentro. Se querem mesmo falar deste conflito, tentem olhar para a complexidade que ele tem, não para a simplicidade panfletária que gostariam que tivesse.
Cortaram-me o piu, os fanáticos dos popós! 🙁 E, então, sendo assim, lá vai a “Velha Chica” – https://youtu.be/792Mbz8ANEA
Obrigado, Eduarda.
Acabo divulgar alguns famiiares com crianças desta brava sociedade de consumo.
Não falar política, claro.
Felizmente há luar.
O Daniel Oliveira é bom rapaz mas sabe pouco de história (aliás como o Miguel Sousa Tavares).
Infelizmente não sabe que a chamada Crise dos Mísseis não começou em Cuba, mas sim na Turquia.
Os mísseis nucleares soviéticos foram instalados em Cuba em 1962 em resposta à instalação de mísseis nucleares norte-americanos na Turquia.
Com essa ação Nikita Kruschev conseguiu que os norte-americanos retirassem os seus mísseis em troca de igual ação dos soviéticos.
Faça um esforçozinho e cultive-se.
Não sou admirador de Putin mas acho não ser digno de um jornalista chamar alguém, sem provas, assassino. Muito menos um presidente dum país.
É curioso que não lhe vejo coragem para chamar assassino a qualquer dos últimos 4 presidentes dos Estados Unidos, quando as provas dessa afirmação são inumeráveis.
Será que tem medo de perder o emprego? Ou de levar algum empurrão de um agente da CIA?
Bom comentário.