O método policial do jornalismo

(António Guerreiro, in Público, 18/02/2022)

António Guerreiro

O episódio do estudante detido pela Polícia Judiciária “em flagrante delito” no local onde estava a preparar um acto terrorista (não uma cave, que sempre daria mais verosimilhança ao guião, mas um apartamento partilhado com outros estudantes) que iria perpetrar na sua faculdade deve ser levado muito a sério porque é quando a realidade é levada ao extremo da caricatura que ela melhor revela a sua verdade.

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O que se revela neste caso — e isso, sim, é muito sério — é o modo como se constrói um terrorista (os procedimentos policiais e retóricos que o dotam de uma figura) e como o terrorismo é hoje uma noção tão vaga e armadilhada que serve para designar qualquer fenómeno político ou criminoso e aplicar-se a qualquer pessoa que apresente alguns signos a que os métodos semiológicos de detecção policial e a cibervigilância dão um significado preciso. O terrorismo tornou-se um campo de alucinações e é hoje uma palavra-espantalho.

Para quem gosta de observar as estratégias fatais da reversibilidade, este é um caso exemplar: o “terrorista”, mesmo na prisão, mesmo sem ter pronunciado uma única palavra, acaba por nomear e objectivar quem o nomeou e objectivou. Para o caso, pouco interessa se no dia seguinte ele iria efectivamente passar ao acto com os meios de que dispunha (muito embora eles sejam manifestamente inadequados para a verosimilhança da história). O que interessa de facto é que a realidade, ou aquilo que nos foi relatado com um aspecto de ficção exactamente para produzir o efeito de real, fez-nos perceber, se não o sabíamos já, que o realismo, em matéria de terrorismo, não é uma questão de verdade.

O indivíduo foi detido porque tinha uma “intenção terrorista”, expressão que mostra bem que o terrorismo existe (sem dúvida que existe, temos provas suficientes de que não é uma fábula) a partir do momento em que nós creditamos a cena em que ele se realiza de uma certa pretensão, de uma certa vontade. Neste caso, segundo a polícia, a “intenção terrorista” era confirmada por actos preparatórios e por certas atitudes e hábitos que não se parecem, no entanto, com os dos fanáticos terroristas. Por exemplo, o facto de frequentar a dark web.

Esta informação introduziu um imaginário nocturno que veio alimentar imediatamente a seguir o modelo policial do trabalho jornalístico. Assim, o trabalho de construção do terrorista iniciado pela Polícia Judiciária é prosseguido e completado pelo jornalismo das televisões, coadjuvado por “especialistas” de múltiplas disciplinas.

O modelo policial do trabalho jornalístico (não confundamos isto com jornalismo de investigação) foi imediatamente activado para tentar descobrir a zona secreta e povoada de intenções terroristas daquele estudante de Informática. E o que se faz nestes casos? Tenta-se reconstituir a sua história de modo a que as “intenções terroristas” tenham lógica e ganhem sentido, seja por actos interpretáveis a posteriori, seja pela construção selvagem de um perfil psicológico.

O imaginário sombrio ou mesmo nocturno, alimentado pela referência à dark web, permite passar do modelo policial ao que já foi chamado “modelo paleontológico” do jornalismo. E então o trabalho jornalístico aproxima-se demasiado dos mecanismos com que se fabricam as teorias da conspiração, reconstituindo informações e opiniões segundo a lógica do puzzle. As peças vão encaixando até ganhar forma a figura que se quer construir ou que se acredita que, por dever de verdade, deve ser construída. E o que não se ajusta à teoria é rejeitado.

Muito antes de o conspiracionismo ter ao seu dispor as poderosas ferramentas que tem hoje, já Umberto Eco, enquanto semiólogo, se tinha ocupado desse fenómeno. Na sua perspectiva semiótica, o conspiracionismo é um modo de interpretação da realidade que se aplica a encontrar ligações entre signos aparentemente desligados, até formar com eles uma superior unidade de significação. O mundo seria assim um conjunto de signos cujo significado secreto, a decifrar, remete para outros signos, formando uma rede de conexões, analogias e correspondências escondidas que é preciso descobrir e saber ler. Esta semiologia alucinada, com os seus métodos indutivos, foi praticada pela Polícia Judiciária e depois por um certo tipo de jornalismo para o qual os meios espectaculares da televisão é uma condição indispensável.



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2 pensamentos sobre “O método policial do jornalismo

  1. Não ouvi ou li adjetivar de terrorismo o ato de queimar um bar em Vila Moura nem o do fulano que se barricou em Nelas( ?) e disparou sobre GNR e Bombeiros.
    Provavelmente porque para se ser terrorista é necessário ser-se … estudante universitário. Será ?

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