Entretanto, a direita espanhola não passa pelos pingos da guerra

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 22/02/2022)

A guerra que ia começar na quarta-feira aconteceu na segunda-feira? Biden diz que não, que estava iminente e por horas, mas ainda não foi desta, pelo que ficou instalada a confusão dentro da Nato, enquanto, do outro lado, Putin explicou no discurso em modo torrencial como Lenine foi o culpado da Ucrânia e duas dezenas de pessoas se fizeram filmar comemorando na praça a declaração de independência de Donbass. A ameaçadora estratégia de tensão vai crescendo no meio da mediocridade das encenações.


Como seria de esperar, pelos pingos desta guerra anunciada, a militar como a mediática, vão passando poucas notícias. No entanto, há pelo menos um país que se ocupa de outros assuntos: em Espanha só se fala da guerra civil no Partido Popular. Depois da eleição antecipada em Castela e Leão, ganha pelo PP mas longe do seu objetivo da maioria absoluta (o centro e a esquerda recuaram, os liberais desapareceram e a extrema-direita ocupou o seu lugar), a querela incendiou-se, contrapondo quem defende um governo com o Vox e quem pretende preservar o espaço da direita tradicional.

Ora, apesar de ser esta a questão que vai decidir os contornos da proposta da direita para o futuro, o que não se esperava é que a luta pela liderança e pela escolha de alianças mobilizasse acusações de corrupção. Mas o facto é que Casado, o presidente do partido, que parece temer a aliança com a extrema-direita, encomendou uma investigação à sua principal opositora interna, Ayuso, presidente da Comunidade de Madrid e que já governa apoiada pela extrema-direita, e revelou que esta teria pago ao irmão uma comissão de 288 mil euros numa encomenda de máscaras Covid.

A comissão foi paga “no dia em que morreram 700 pessoas”, anunciou dramaticamente a direção do PP. Ayuso respondeu que a comissão foram só 56 mil euros e convocou uma manifestação de milhares de militantes em frente à sede do partido, exigindo a demissão de Casado. Vários barões do partido vieram apoiá-la e surgiram vozes a elogiar a forma como ela sustenta a sua família.

O surgimento de acusações de corrupção dentro do PP não é novidade e isso é um problema. O partido foi e continua a ser alvo de várias investigações judiciais. Foi na sequência de uma delas, o caso Gurtel, que foi aprovada a moção de censura que derrubou o governo Rajoy e abriu a porta a eleições que conduziriam ao governo do PSOE e do Podemos. O tesoureiro do partido, Bárcenas, foi condenado a 33 anos de prisão. Dois ex-presidentes da Câmara de Madrid estão a ser julgados. O que é novidade, no entanto, é que acusações deste tipo se tenham tornado o centro da disputa política de uma fação do partido contra outra, agravando os danos de uma batalha suicidária em que todos se condenam.

Se a direita espanhola chega a este ponto de confronto, é porque se sente que a divergência é insanável e as duas fações a interpretam como uma questão de vida ou morte. Nesse contexto, o possível afastamento de Casado, que pode vir a ser substituído por um aliado de Ayuso, o presidente galego, Feijóo, marcaria uma vitória histórica da extrema-direita que, a partir de então, teria o caminho aberto para ser parte integrante da proposta de governo das direitas.

Desse modo, o que em Portugal foi um aperitivo agiganta-se em Espanha para ser uma questão definidora do destino da direita. Só me espanta que, depois de Trump ter governado durante quatro anos o Estado mais poderoso do mundo, ainda haja quem pareça surpreendido com esta evolução vertiginosa em que as direitas europeias vão mobilizar todos os esqueletos do seu armário.


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