(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 29/01/2022)

Dos mesmos que lhe trouxeram a série ‘O Afeganistão’, chega agora ‘A Ucrânia’. Em streaming.
Há quem deseje uma sequela de ‘O Afeganistão’, ou talvez um filme com a história do homem que depois de vender um rim e as filhas, continua a passar fome.
Há muitas histórias. Tendo oferecido o país aos talibãs, a América resolveu congelar o dinheiro afegão e assassinar um povo que vive em guerra, uma guerra que não é bem sua, e sim das potências, desde 1979.
Quando os russos, sempre eles, invadiram a terra bravia.
Como Hollywood muito bem sabe, é difícil arranjar vilões tão bons como os russos, ele é o sotaque, ele é a corpulência, ele é a truculência, ele é a máfia, com uma reputação de malevolência que excede a da clássica Mossad. Os russos dão uns bandidos formidáveis. Vimos John Kirby, o porta-voz do Pentágono que nos disse que os soldados do exército afegão iriam defender o país dos talibãs porque a América os tinha treinado e armado, a agitar o sabre sobre a Ucrânia. A Ucrânia tem uma história com os americanos, tanto republicanos como democratas. O filho de Biden, quando era toxicodependente e andava dentro e fora da rehab, estava na administração de uma empresa ucraniana (também estava numa empresa chinesa, luzindo o doirado nome Biden). Nem precisava de pôr os pés em Kiev. Na pandilha trumpista, Rudy Giuliani e o entumescido Paul Manafort, entre outros, serviam de mensageiros das negociatas entre Trump, “a Ucrânia é um grande país, tenho muitos amigos ucranianos”, e o multimilionário Victor Pinchuk. Assim que Zelensky substituiu Poroshenko, Trump renovou os votos de amizade e cooperação. Em telefonemas vários com o Presidente ucraniano tentou que a Ucrânia investigasse as ligações de Biden júnior de modo a ver-se livre do pai. Zelensky prometeu, as pressões vinham de muitos lados, a Ucrânia é um país muito pressionado. Podia tornar-se uma espécie de grande Jordânia, sustentada por abonos.
É também um dos países mais corruptos do mundo, onde tudo tem de ser pago com luvas, como qualquer ucraniano sem poder e sem dinheiro sabe. De um teste a uma consulta médica, em plena pandemia, o oficial de serviço estende a mão. Pois é a este país sem rei nem roque, tal como o Afeganistão do corrupto regime pró-americano em Cabul, que a União Europeia promete dar, ou “emprestar”, quase €2 mil milhões de ajuda, por causa da guerra. Imagina-se a quantidade de oficialato do regime que está a fazer contas ao enxoval. Este é o método preferido pela União quando os problemas surgem e não quer envolver-se nem incomodar o amigo americano. Despejar dinheiro e enviar uns burocratas de Bruxelas e meia dúzia de soldados. Foi assim com o Médio Oriente, foi assim com o Afeganistão, será assim com a Ucrânia. Não seria inteiramente mau este pacifismo conivente se não fosse o problema da NATO.
A NATO entrou em desgraça e falência depois da interferência na Líbia. Obama arrependeu-se mil vezes da mudança de regime manu militari que conduziu a Líbia a um território fora da lei. Tanto mais que os americanos perceberam que por cada caça decrépito da NATO voavam dez caças último modelo da América. E também percebeu que Cameron e Sarkozy, dois estadistas de meia tigela, tinham recebido dinheiro de Kadhafi para as campanhas e agora tentavam abafar o caso, quando o filho do líbio os denunciou. A NATO começou a estrebuchar, visto que sem os americanos não existe. O maior exército da União era o britânico, e a seguir o francês, ocupado com o day after da Líbia nos países do Sahel. A Alemanha, sabe-se porquê, abstém-se. Com a entrada em cena de Trump, na mão de Putin, a NATO viu-se ameaçada de extinção e míngua de fundos. Foi salva pela Ucrânia. Não admira que os mais belicistas desta refrega sejam os chefes da NATO, que clamam em furibundas conferências de imprensa a necessidade de abrir uma frente de guerra oriental.
Tratando-se de Putin, um rufia que excede o vilão de James Bond, torna-se difícil discordar. Mas… para quê picar o urso que não se pode eliminar? Quando a glasnost vingou, os líderes russos tentaram a paz com a Europa e pediram apenas uma coisa, não humilhem a Rússia. Palavras de Ieltsin, que o Putin dos primórdios retomou. O Ocidente, inebriado com a vitória do capitalismo, fez orelhas moucas. O poder de Putin foi crescendo, e ninguém na Europa parecia interessado em travá-lo. O dinheiro russo foi muito bem recebido em Londres, e continua a ser, foi bem recebido na América, antes das sanções, foi bem recebido em todo o lado. Nós por cá, acabámos de vender um passaporte e uma nacionalidade a Abramovich depois de o Reino Unido a negar. Abramovich, o grande oligarca do clube dos oligarcas de Putin. O nosso inefável ministro dos Negócios Estrangeiros disse que era negócio limpo. O dinheiro russo foi bem recebido em Chipre, que se tornou uma colónia dos oligarcas e da lavagem do dinheiro, sem que a Europa, exceto naquela vez em que decidiu irritar-se e congelar os fundos, tivesse mostrado o ímpeto regenerador que mostrou com a Grécia e Portugal. No dia seguinte, e depois de uns telefonemas do Kremlin para Berlim, os aviões russos chegaram a Chipre para levar o dinheiro para Moscovo.
Tendo a mão na torneira do gás que impede o leste da Europa de morrer de frio, Putin sabe que a Alemanha não quer esta guerra. Sabe também que os americanos querem humilhá-lo e não será por causa de uma região perdida, Donbass, onde a guerra existe há muito tempo. A Ucrânia tem uma parte pró-russa e outra encostada ao dinheiro do Ocidente e ao bónus, e nunca será membro da NATO nem tem de ser. O convite de George Bush em 2008 foi tão lerdo como a sua política no Médio Oriente. Imaginem o México a aderir ao Pacto de Varsóvia. Picar o urso. O urso comeu-lhes o Presidente ao xadrez. Convém não subestimar Putin e a sua guerra secreta. Putin é perigoso, mas fazer da Ucrânia casus belli é ainda mais perigoso.
A América, assim que sai de uma guerra entra logo noutra. Não interessa ao complexo militar-industrial (sim, existe) ficar parado ou ter os brinquedos com ferrugem. Os países do Golfo Pérsico estão armados, a quem vender mais armas? Uma guerra bem longe da América e onde os europeus se sintam envolvidos é ideal porque a China não serve. Nem o antibelicista Biden consegue convencer um lóbi demasiado poderoso.
E decerto foi convencido que um inimigo externo unirá os divididos americanos. Ou servirá de distração. As televisões precisam de uma guerra, mais audiências. Resta saber como é que os republicanos reagirão, com Trump metido no imbróglio. Lindsay Graham tem andado calado.
E os europeus? A Espanha, enquanto discute o divórcio da infanta Cristina, manda dois “buques” e uns caças. A Dinamarca, uma fragata. A França napoleónica manda tropas para a Roménia e os Bálticos pedem mais armas, mais dinheiro. Portugal anda entretido com o gato “Zé Albino”. E a Alemanha sente que tem de pôr ordem no pedaço e mandar os diplomatas justificar o salário. Boris Johnson, entre dois copos e duas festarolas, talvez pudesse fumar o charuto de Churchill.
Com esta insanidade, digna dos ensaios de Gore Vidal, ou das comédias de Monty Python, quem ganha? A China. Com um grande sorriso amarelo. O Ocidente não ganha juízo.
Apenas não vê quem não quer. Excelente.